Pouco antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) votar a limitação do foro privilegiado em 23 de novembro, o ministro Gilmar Mendes criticou outras instâncias do poder Judiciário. De acordo com ele, há muita “lenda urbana” sobre a questão do foro – o STF, responsável por julgamentos nesses casos, tem sido criticado por demorar muito em suas decisões. Como contraponto, Mendes citou dados que apontariam a ineficiência da Justiça criminal no país.
O Truco – projeto de fact-checking da Agência Pública – analisou três frases do ministro para saber se as afirmações estão corretas. A assessoria de imprensa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), presidido por Mendes, foi procurada e informou as fontes em que ele se baseou: o Inqueritômetro, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), e a Estratégia Nacional de Segurança Pública. Também foi citado como referência o artigo “Políticas Públicas de Segurança Violência e Punição no Brasil” (2000-2016), de Marcelo da Silveira Campos e Marcos César Alvarez, publicado no livro Sociologia Brasileira Hoje, da Ateliê Editorial (2017). Veja, a seguir, o resultado da análise.
“Nós temos uma das Justiças criminais mais ineficientes do mundo.”
Dados encontrados pelo Truco confirmam a afirmação, feita por Gilmar Mendes, de que a Justiça criminal brasileira está entre as mais ineficientes do mundo. Uma organização independente, o Projeto Mundial de Justiça (World Justice Project, ou WJP), elabora anualmente um ranking mundial comparativo para identificar como o sistema funciona em cada lugar. São analisados oito fatores divididos em 44 aspectos, que vão desde a existência de corrupção até a percepção da garantia dos direitos civis de forma igualitária para todos os cidadãos. O desempenho do Brasil em Justiça criminal está realmente entre os piores do mundo.
Para elaborar a lista, o WJP aplica questionários em cerca de mil pessoas em cada país, entre especialistas e moradores de diferentes classes sociais e regiões. A ideia é garantir um universo representativo que possa diagnosticar o funcionamento da Justiça em cada lugar. Empresas especializadas fazem o trabalho e analisam as informações. Cada critério recebe uma nota, que vai de zero a 1. Quanto mais próximo de 1, melhor é o desempenho.
A última edição do ranking, de 2016, coloca o Brasil como o 52º em um ranking de 113 países e um índice de 0,55, se analisados todos os quesitos: Limitações ao poder governamental; Ausência de corrupção; Governo aberto; Direitos fundamentais; Ordem e segurança; Imposição regulatória; Justiça civil; e Justiça criminal). Se forem consideradas apenas as nações da mesma região (30), fica na 15ª posição. Analisados apenas os países com mesmo nível econômico, está em 14º de 37. Os três recortes mostram um desempenho mediano.
O pior resultado do Brasil está justamente em Justiça criminal, que ficou com um índice de 0,39. Quando considerado somente esse item, o país cai para o 78º lugar entre os 113. Já na avaliação entre nações de mesmo nível econômico, fica em 25º dentre 37 que foram analisadas. Dentro dos subitens desse quesito, a imparcialidade do sistema (0,20) e a eficiência do sistema prisional (0,21) foram os que tiveram menor pontuação. A eficiência das investigações também teve um péssimo resultado (0,31), juntamente com a garantia do processo legal e dos direitos dos acusados (0,34).
“Só 8% dos homicídios, esse dado é do CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público], são revelados no Brasil.”
Gilmar Mendes afirmou ainda que somente 8% dos casos de homicídio no Brasil são resolvidos. O Truco já checou uma frase que usava um dado semelhante, do senador Wilder Morais (PP-GO). O parlamentar é autor do Estatuto do Armamento, projeto de revogação do Estatuto do Desarmamento. Morais justificou a sua proposta afirmando que a taxa de solução de homicídios no Brasil é baixa, em torno de 5% e 8%. O Truco verificou a afirmação na época e classificou-a como falsa. Por isso, a frase de Mendes recebe o mesmo selo.
A assessoria de Mendes afirmou que os dados sobre homicídios tiveram como base o Inqueritômetro, ferramenta online do CNMP. O site traz números sobre inquéritos de homicídios em 2007, 2008 e 2009, mas não indica o resultado dos processos nesses casos. O CNMP informou que atualmente não existe nenhum número atualizado sobre a taxa de solução ou o total de número de homicídios no país. Só é possível consultar as informações sobre feminicídio e os registros sobre mortes decorrentes de intervenção policial.
Um documento do CNMP cita o dado de 8%, que é atribuído a uma pesquisa da Associação Brasileira de Criminalística de 2011. A entidade, contudo, diz que a origem do número é o livro O Inquérito Policial no Brasil: uma pesquisa empírica, organizado por Michel Misse, que analisa os inquéritos policiais e o universo da investigação da Polícia Judiciária de quatro estados e do Distrito Federal, com exclusão da Polícia Federal. Foram selecionadas as capitais do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre e o Distrito Federal.
Misse disse ao Truco que não existe taxa nacional de solução de homicídios. “Ela é citada como base em diferentes pesquisas, mas é impossível estabelecê-la pelo simples motivo de que não temos no Brasil sequer uma taxa nacional de homicídios de base jurídica. A única base com que contamos é o DataSUS, do Ministério da Saúde. Há aproximações como a do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] e até hoje só a vejo sendo repetida. No meu trabalho, encontramos uma taxa média para cinco capitais entre 10% e 15%. Mas não é uma taxa nacional.”
O Ministério da Justiça elaborou o estudo “A investigação dos Homicídios no Brasil”, onde é possível consultar as informações sobre as taxas de esclarecimentos de homicídios em diferentes estados. Contudo, a pasta não possui dados nacionais padronizados sobre o assunto.
Ao ser comunicada sobre a classificação da frase como falsa, a assessoria de Mendes afirmou que não concorda com o resultado da checagem. Isso porque o dado se baseia em um documento oficial do CNMP. A apuração mostra, no entanto, que a informação usada pelo CNMP não tem respaldo em nenhum estudo científico.
Como são resolvidos os homicídios | |||
Pesquisa | UF | Período | Taxa de esclarecimento |
Soares et al. (1996) | RJ | 1992 | 8 % |
Rifiotis (2007) | SC | 2000-2006 | 43 % |
Ratton e Cireno (2007) | PE | 2003-2005 | 15 % |
Misse e Vargas (2007) | RJ | 2000-2005 | 14 % |
Sapori (2007) | MG | 2000-2005 | 15 % |
Costa (2010) | DF | 2003-2007 | 69 % |
Fontes: Ribeiro (2009) e Costa (2010)
“Nós deixamos prescrever crime de júri, homicídio e tentativa de homicídio dolosos, prescrição de 20 anos. Isso tudo na primeira instância.”
Em sua frase, o ministro do STF diz que é comum ocorrer a prescrição do crime de homicídio doloso no Brasil – ou seja, passado o prazo de 20 anos, o delito não pode mais ser julgado se ainda não se tiver chegado a uma sentença. Embora não existam dados nacionais consolidados, estatísticas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostram que, em Belo Horizonte, 45,2% dos processos de homicídios intencionais registrados entre 2003 e 2013 prescreveram.
Um relatório do CNJ revela ainda que a maioria dos tribunais estaduais não cumpriu a meta de julgar, até o fim de 2012, todos os processos de homicídio doloso instruídos até 2007, o que mostra que muitos casos ainda estão sujeitos a prescrição. A frase de Gilmar Mendes foi classificada como verdadeira, uma vez que dados mostram que diversos casos de homicídio doloso não chegam a julgamento por prescreverem.
Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do ministro citou duas fontes para a frase. A primeira é o relatório da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública. O documento detalha uma das metas estabelecidas pelo CNJ para aplacar a lentidão da Justiça brasileira. O objetivo era julgar, até o fim de 2012, todos os processos de homicídio doloso instruídos até 2007 no Brasil. Os processos instruídos são aqueles que já estão prontos para serem julgados por tribunais de júri, formados por cidadãos comuns.
Em março de 2013 foram divulgados os primeiros resultados das metas sugeridas aos tribunais. Apenas o Tribunal de Justiça de Sergipe cumpriu à risca a instrução do CNJ. Dos outros 27 tribunais, oito julgaram menos da metade dos processos desse tipo. Segundo o CNJ, das 25.917 ações penais prontas para a análise do tribunal do júri em todos os estados brasileiros, foram julgadas apenas 14.786, o que representa 57,05% do montante. Apesar disso, o documento não avalia a quantidade de processos que prescreveram por conta da demora no julgamento. Diz apenas quantos não foram julgados dentro do prazo determinado pelo CNJ – e que, portanto, ainda estão sujeitos à prescrição.
A segunda fonte citada pela assessoria de imprensa de Gilmar Mendes é o artigo “Políticas Públicas de Segurança Violência e Punição no Brasil” de Marcelo da Silveira Campos e Marcos César Alvarez, publicado no livro Sociologia Brasileira Hoje. O artigo cita um estudo que analisa as informações policiais e judiciais sobre casos de homicídio ocorridos no estado de São Paulo entre 1991 e 1998. O texto, de autoria da pesquisadora Ludmilla Ribeiro, conclui que, “do total de homicídios registrados pela Polícia Civil, apenas 22% se transformaram em processos; 14% alcançaram a fase de sentença; e 8% resultaram em uma condenação à pena privativa de liberdade”. Não há dados, no artigo, de quantos casos não chegaram à fase de sentença por conta de prescrição.
O Truco não localizou dados recentes sobre prescrição de crimes de homicídio em âmbito nacional. No entanto, há pesquisas locais, como a feita pelo Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da UFMG, que provam a existência de diversos processos prescritos. O estudo publicado em março de 2017 analisou, por amostragem, os processos finalizados em Belo Horizonte entre 2003 e 2013. A chamada “extinção de punibilidade” aconteceu em 45,2% deles. Desses, 80% deixaram de ser válidos por prescrição, e o restante, por morte do réu. Apenas 24,5% dos casos estudados resultaram em condenação dos réus.
Outra pesquisa feita pelo Crisp, publicada em 2014, mediu o tempo do processo de homicídio doloso em cinco capitais brasileiras. O estudo não calcula quantos processos prescreveram em cada capital, mas conclui que “um dos maiores problemas do fluxo de homicídio doloso é a prescrição”. Segundo o documento, em Goiânia, 22,3% dos processos baixados em 2013 prescreveram. Dentre os processos avaliados em todas as cinco capitais, 92 prescreveram após a votação do júri popular, quando o magistrado deve verificar se a pena pode ou não ser aplicada ao réu.