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Checagem

Senador defende fim do horário de verão com exagero e dado inexistente

Proposta diz que medida provoca prejuízo de R$ 492 milhões no SUS e aumento de 25% no risco de infartos, mas estudos mostram outro cenário

Checagem
2 de março de 2018
13:30
Este artigo tem mais de 6 ano
Horário de verão provoca polêmica e alguns políticos defendem o seu fim.
Horário de verão provoca polêmica e alguns políticos defendem o fim da medida que atinge parte do país.

O horário de verão adotado nos estados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste está longe de ser unanimidade. A decisão de adiantar o relógio em uma hora – que recentemente durou de 16 de outubro a 17 de fevereiro – causa discórdia na sociedade, com reflexos no meio político e nas redes sociais. O governo federal chegou a discutir o fim da mudança no ano passado, com base em números que mostram tendência de redução na economia de energia durante o período. Por avaliar que poderia sofrer desgaste, o Palácio do Planalto recuou e decidiu manter a medida.

Uma publicação feita no Facebook do Senado Federal em 19 de fevereiro anunciou um projeto de lei do senador Airton Sandoval (MDB-SP), suplente do ministro Aloysio Nunes (PSDB-SP), que propõe suspender o horário de verão em todo o país. O post teve 8,9 mil reações e recebeu 1,3 mil comentários, tornando-se uma das mais populares da página no mês.

A proposta está na Comissão de Infraestrutura (CI) desde novembro do ano passado, aguardando o recebimento de emendas. Depois, seguirá para apreciação das Comissões de Assuntos Econômicos (CAE) e de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Há também projetos que tramitam na Câmara dos Deputados com o mesmo objetivo, de autoria dos deputados Mário de Oliveira (PSC-MG), Armando Abílio (PTB-PB) e Valdir Colatto (MDB-SC).

O Truco – projeto de fact-checking da Agência Pública – analisou a veracidade de dois trechos da justificativa da proposta que tramita no Senado. Os argumentos usados pelo senador fazem referência a problemas de saúde que podem ter conexão com o início do horário de verão e com o aumento do gasto público com despesas de saúde. No entanto, as frases utilizam dados que são impossíveis de provar ou exagerados.

O senador Airton Sandoval (PMDB-SP), autor de projeto em que pretende acabar com o horário de verão
O senador Airton Sandoval (MDB-SP), autor de projeto em que pretende acabar com o horário de verão

“Há estudos técnicos, em diversos países, que vinculam a adoção do horário de verão com o desenvolvimento de doenças. Já é comprovada a causalidade no aumento de infartos do miocárdio, principalmente na primeira semana do horário de verão, com incremento estatístico de 25% só na primeira semana.” – Airton Sandoval (MDB-SP), senador, em justificativa de projeto de lei

Exagerado

Um estudo científico norte-americano registrou aumento de 25% no número de infartos na segunda-feira imediatamente seguinte à implementação do horário de verão no país. O senador Airton Sandoval exagera, no entanto, ao usar esse dado para se referir à realidade brasileira. Aqui, o estudo mais completo sobre o assunto calculou que o aumento de mortes por infarto variou de 7% a 8,5% nos estados onde o horário de verão é adotado, de acordo com dados coletados no sistema DataSUS e referentes ao período entre 2008 e 2012.

A pesquisa feita nos Estados Unidos e publicada pelo Colégio Americano de Cardiologia analisou pacientes de hospitais não-federais do estado de Michigan. Concluiu-se que a alteração de uma hora no ciclo de sono era responsável por um aumento no estresse que, para pacientes com predisposição para problemas cardíacos, acarretou maior incidência de infartos do miocárdio. O aumento verificado foi de 25% na segunda-feira que sucede o final de semana de adoção do horário de verão.

O senador, que utiliza o dado de 25% do estudo americano, não destaca outras descobertas feitas pela pesquisa. O estudo também concluiu que o risco de infarto diminui 21% na segunda-feira após o final do horário de verão, quando o relógio é atrasado em uma hora. Além disso, Amneet Sandhu, cardiologista que liderou a pesquisa, explicou em entrevista à Reuters que, historicamente, ataques do coração ocorrem com mais frequência às segundas-feiras de manhã, provavelmente por conta do estresse relacionado ao início de uma nova semana de trabalho e das alterações inerentes ao ciclo de sono, que muitas vezes muda durante o final de semana. Críticos apontam que a pesquisa feita em Michigan não leva em conta o número de pessoas que sofre infarto e morre antes de chegar a ser internado em um hospital ou que busca atendimento em hospitais da rede federal.

No Brasil, o pesquisador Weily Toro, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), foi um dos primeiros a verificar a relação entre a incidência de infartos e a política de adiantamento do relógio. Em parceria com estudiosos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e inspirado por estudos como o feito em Michigan, Toro reuniu dados disponíveis no DataSUS, de 2008 a 2012, de todos os estados brasileiros. Ele verificou os registros de óbitos por ataques cardíacos 15 dias antes e 15 dias depois do início do horário de verão.

Seu estudo, publicado na revista americana Economics Letters em 2015, concluiu que o horário de verão aumenta o número de mortes por infarto agudo do miocárdio em 7% a 8,5% nas primeiras semanas após a mudança no relógio e que a incidência maior é entre as pessoas com mais de 60 anos de idade. Não houve alteração estatística nas localidades onde não foi adotada a mudança no relógio. “Em um período de sete dias teríamos 197 mortes a mais nos estados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste”, afirma Toro.

Em entrevista ao Truco, Claudia Roberta de Castro Moreno, professora de saúde ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e vice-presidente da Associação Brasileira do Sono, explica que a alteração de uma hora no relógio tem efeitos no organismo de toda a população submetida a isso. “O que muda são os efeitos em cada pessoa”, afirma. “Segundo um estudo feito aqui no Brasil, pelo menos um quarto das pessoas vai sentir os efeitos ao longo de todo o período em que o horário de verão está em vigor, enquanto a maioria da população consegue se ajustar em alguns dias ou semanas.” O dado vem de um estudo brasileiro publicado pelo National Center for Biotechnology Information.

O documento avaliou os efeitos da adoção do horário de verão na sensação de desconforto percebida pelos pacientes. Pelo menos um quarto dos participantes, submetidos a um teste online padronizado e utilizado em vários países, relataram desconfortos no sono que se prolongaram por toda a duração do horário de verão.

Moreno endossa a pesquisa feita em Michigan e esclarece que divergências no número apurado em cada país são esperadas. “Pesquisas que calculam o aumento no risco de desenvolvimento de câncer de pulmão em pacientes tabagistas também chegam a números bastante diferentes. Isso acontece porque o número vai mudar de acordo com a idade, o estilo de vida, o tempo de vida fumante dos pacientes que fazem parte de cada estudo. Em pesquisas que avaliam relações ainda mais sutis, como a do horário de verão, é claro que você terá percentuais que variam muito”, explica. “O que não se pode negar, nesses dois casos, é que a ciência já mostrou que há uma relação de causalidade.”


“Segundo estudos mais amplos relacionados ao tema, temos que, durante o
horário de verão, o SUS – Sistema Único de Saúde – sofre um aumento de cerca de R$ 492 milhões em despesas públicas com o atendimento e tratamento de diversas doenças agravadas pelo horário de verão” – Airton Sandoval (MDB-SP), senador, em
justificativa de projeto de lei

Impossível provar

Pesquisadores que estudam os efeitos do horário de verão na saúde pública desconhecem o dado apresentado pelo senador e ignoram a existência de qualquer estudo feito no país que calcule o gasto total do Sistema Único de Saúde (SUS) com todos os tratamentos e internações que podem ser relacionados ao horário de verão. Contudo, os especialistas afirmam que há, sim, um aumento no gasto público por conta da maior incidência de infartos, comprovada em pesquisas científicas feitas em diversos países.

O que não existe no Brasil, até o momento, é um estudo que meça o tamanho do aumento no gasto com atendimentos. Contatado pela reportagem, o gabinete do senador Sandoval não soube explicar como foi calculado o número. A frase foi classificada com o selo “Impossível provar”, já que não existem dados confiáveis – oficiais ou de outras fontes – que comprovem a afirmação.

O Truco procurou a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde, responsável pela gestão do SUS. Por telefone, a pasta negou que o sistema identifique um aumento nos gastos com atendimentos durante o horário de verão. “Não existe no Ministério da Saúde nenhum estudo que embase tal argumentação ou evidências que mostrem aumento nos gastos no período do horário de verão. As políticas públicas da pasta consideram que eventual aumento ou diminuição de internações não têm nenhuma relação com o horário de verão”, alega o ministério.

Apesar disso, o professor Weily Toro, da Unemat, que estuda os efeitos do horário de verão na saúde pública em parceria com a UFPE, garante que há efeitos no gasto com saúde pública. “Não há um estudo completo ainda. Vamos trabalhar este ano com pesquisadores da USP para verificar isso mais a fundo. Mas os dados preliminares apontam, desde já, que há, sim, um aumento no número de atendimentos e, consequentemente, no gasto. O que ainda precisa ser feito é a quantificação do aumento”, explica.

A professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e pesquisadora dos efeitos de alterações de sono na saúde Claudia Moreno concorda que há aumento nos gastos, mas também desconhece estudos que calculem o total. “É algo muito difícil de mensurar porque não existe uma doença chamada ‘alergia ao horário de verão’. São muitos os efeitos que a alteração no relógio pode provocar em pessoas que já têm predisposição a uma determinada condição. Mas, no momento do atendimento, é difícil vincular imediatamente o caso ao horário de verão”, avalia.

***

Procurada pela reportagem, a assessoria de comunicação do senador enviou seis fontes para as informações contidas nas frases selecionadas. A primeira é uma notícia do site brasileiro Show Me Tech que cita um estudo sueco mas não revela seu nome ou autores. A pesquisa, segundo o site, mostraria que “a ausência de noites bem dormidas aumenta o risco de ataques cardíacos nos primeiros três dias da semana, após o início do horário de verão”. Outro link enviado é de uma entrevista dada pelo médico e professor John Araújo ao programa Bem Estar, da Rede Globo, na qual ele afirma que a mudança de horário “tem o potencial de afetar o nosso organismo e ter impactos sobre bem-estar e saúde”.

Outras duas fontes citadas pela assessoria de imprensa trazem informações que não têm relação com os efeitos do horário de verão na saúde: a primeira é uma matéria da BBC sobre a economia energética alcançada no período e a outra fonte é uma pesquisa de opinião feita pelo jornal O Globo na qual 54% dos leitores se declararam a favor do fim do horário de verão. A assessoria citou ainda o estudo da Universidade do Estado do Mato Grosso, de Weily Machado, que não conclui que o aumento dos infartos é de 25%, como afirmou o senador.

Renato Araújo/ABr
Pedro França/Agência Senado

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