Uma série de conflitos que coloca em risco indígenas Kanela do Araguaia em Luciara (MT) mobiliza setores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Defensoria Pública da União (DPU).
A cacica e professora indígena Kanela Elessandra Abreu Guimarães e o marido, Rodrigo Lopes Alencar, foram detidos no último dia 22 em uma terra que, segundo eles, pertence à União e será destinada aos Kanela. A Polícia Militar alegou que a ação foi baseada em ordens judiciais de reintegração de posse que teriam sido apresentadas pelo suposto dono da terra. Órgãos federais consultados pela Agência Pública, contudo, apontam que ainda não há certeza jurídica de que a área seria uma propriedade privada.
Os indígenas afirmam que a Funai, após análise de dados sobre o território, havia concordado que eles ocupassem uma área nos limites do que seriam terras da União. O lote reivindicado é de cerca de 6 mil hectares que seriam parte da Gleba Tapirapé I. A delegacia de polícia de São Félix do Araguaia (MT), a 43 km de Luciara, registrou, em janeiro e em abril, boletins de ocorrência a pedido de dois homens que afirmaram ser donos das terras ocupadas pelos indígenas.
Em entrevista à Pública, a cacica afirmou que, em janeiro, os Kanela receberam ameaças de um morador não indígena que se dizia proprietário ou arrendatário da área. Horas depois, tiros foram disparados contra o acampamento de dez indígenas por dois homens em uma moto. No último dia 22, a PM deteve a cacica e seu marido.
“Esse ano já é a segunda vez que pessoas invadem a área da União, onde ficamos, dizendo que é área particular. Agora foi a Polícia Militar de Luciara nos abordando, eu e meu esposo, dizendo que a gente estava invadindo. E nos levou detidos”, disse a cacica à Pública durante o Acampamento Terra Livre (ATL) em Brasília, o maior evento indígena do país. Elessandra afirmou que foi liberada em São Félix “porque não havia cela no município”, mas que o marido ficou na cadeia pública por uma noite e uma tarde até ser liberado “cheio de restrições, como se fosse um bandido”.
Um adolescente Kanela de 13 anos também foi apreendido no dia em que o casal foi detido sob suspeita de ter dado tiros de espingarda contra os policiais. A arma em questão, segundo a polícia, era de chumbinho, havia sido modificada para projéteis calibre .22 e teria sido encontrada com seis munições intactas. Ninguém se feriu e o adolescente foi liberado no dia seguinte.
Elessandra disse que o casal não influenciou o adolescente e que ele estaria assustado desde o ataque a tiros ocorrido em janeiro, em que um dos alvos, foi o pai dele. O menino negou ter efetuado os disparos.
A cacica disse ainda que três barracos dos indígenas foram incendiados duas vezes neste ano por desconhecidos. “Nós, povos indígenas, não temos proteção. Quando chamamos a polícia, a polícia fala que o carro está atolando, que não tem como chegar lá na terra. Mas, a mando da fazenda, chegou logo em seguida”, afirmou.
O comandante da guarnição da PM que promoveu a abordagem, cabo Nathan Klusener Resende, afirmou em vídeo que a terra seria particular, “uma área sólida”, e classificou como “emboscada” a ação do adolescente apreendido. “Amanhã ou depois vai sair notícias [sic] de que a Polícia Militar foi truculenta, que a Polícia Militar tirou de uma gleba pessoas inocentes. Inocentes que tentaram contra a nossa vida, tá? Tentaram nos matar, então estou fazendo isso aqui em resposta”, disse o cabo da PM.
Funai e DPU querem proteção aos Kanela
A Funai decidiu pedir celeridade sobre a área à Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária das Terras Públicas Federais Rurais, órgão sob coordenação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) retomado em setembro passado pelo governo Lula 3. Na ocasião, o governo divulgou a intenção de “ampliar a destinação de terras, priorizando políticas públicas de conservação ambiental e o uso social da terra”.
O defensor público federal em Cuiabá (MT) Renan Sotto Mayor disse que o órgão acompanha com apreensão a situação em Luciara e que pediu informações à Polícia Civil e a outros setores do governo estadual. A DPU abriu um procedimento de assistência jurídica e vai pedir que a Secretaria de Segurança Pública proteja a comunidade indígena.
“Será necessário fazer um estudo cadastral a respeito dessa gleba para verificar se há títulos ilegalmente sobrepostos à área pública federal, pois no estado de Mato Grosso é muito comum a grilagem de terras públicas federais. Se não são terras particulares, vamos verificar se podem de fato ser destinadas ao povo Kanela e, principalmente, fazer alertas às autoridades a fim de evitar que continue esse clima de violência”, disse Sotto Mayor.
Procurada pela Pública, a assessoria de imprensa da PM de Mato Grosso informou que, segundo o boletim de ocorrência, “os suspeitos foram presos em flagrante por esbulho possessório e porte ilegal de arma após invadirem uma área de propriedade privada”. Segundo a PM, “as prisões ocorreram em uma área particular, reintegrada judicialmente no ano de 2021 e com mandado de manutenção de posse vigente”. Em resposta ao pedido para que apresentasse cópia da ordem judicial que teria motivado a ação, a assessoria sugeriu, por e-mail, “que procure a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de Mato Grosso” e afirmou: “não temos competência para divulgarmos documentos do Poder Judiciário”.
Sobre as ameaças narradas pelos indígenas Kanela, a PM respondeu que “não recebeu denúncias sobre supostos conflitos além das prisões realizadas no dia 22 de abril, investigações policiais são conduzidas pela Polícia Judiciária Civil”.