Sônia Maria de Jesus é uma mulher negra e surda de 50 anos que passou as últimas quatro décadas em situação de trabalho análogo à escravidão na casa de um desembargador de Santa Catarina, conforme foi constatado pelo Ministério do Trabalho e Polícia Federal. O caso de Sônia se tornou inspiração para o projeto de lei 3.351/2024, apelidado com o nome dela, que tramita na Câmara Federal. Porém, o próprio Ministério do Trabalho se posicionou contra a proposta.
O projeto de lei, da ex-deputada federal Carla Ayres (PT-SC), cria normas para atender e ressocializar trabalhadoras domésticas resgatadas em situação análoga à escravidão e de tráfico de pessoas. Conforme o texto, aos casos deverão ser aplicadas as disposições previstas na Lei Maria da Penha e nos estatutos da Igualdade Racial, da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência.
Na avaliação do setor de Análise Técnica do ministério, porém, a proposta poderia “gerar efeitos discriminatórios de desproteção” para outras vítimas, como homens também resgatados de trabalho doméstico ou mulheres resgatadas de outros contextos.
“O PL 3.351/2024, ao incidir apenas na combinação necessária entre resgate, mulher e trabalho doméstico, consolida um recorte de público-alvo demasiadamente restritivo e inadequado, e acaba deixando de lado tanto inúmeras mulheres que são resgatadas de condições similares, ou até piores, em outras atividades econômicas, quanto os muitos homens que são resgatados de semelhantes circunstâncias na mesma atividade doméstica”, diz o texto.
O documento reconhece que a maioria das vítimas do trabalho análogo à escravidão no ambiente doméstico é de mulheres, mas ressalta que há homens na mesma situação. De acordo com o ministério, 15 homens foram retirados da condição de escravizados em 2023, o que representa cerca de 30% dos casos daquele ano.
Dois servidores do Ministério do Trabalho que atuam na área afirmaram à Agência Pública, sob condição de anonimato, que o projeto de lei não iria retirar a proteção já garantida por lei a todas as vítimas de trabalho análogo à escravidão, mas ajudaria a conferir mais um grau de proteção ao grupo mais afetado pela escravidão doméstica. “A proposta, se fosse aprovada, funcionaria como a Lei Maria da Penha, que protege vítimas de violência doméstica, embora já existam leis que punem violência de forma geral”, explica uma das pessoas ouvidas.
Além disso, de acordo com os servidores, as condições de homens e mulheres resgatados de trabalho doméstico análogo à escravidão costumam ser diferentes. Segundo eles, a maioria dos homens ocupava funções como de caseiros de sítios ou outros serviços que não costumam ter tanto contato direto com os empregadores quanto as empregadas domésticas, que muitas vezes são tidas como “parte da família” – o que dificulta ainda mais o rompimento com a situação de escravidão.
Sônia, por exemplo, acabou voltando a morar na casa do desembargador após o resgate. A família dizia que ela “era como uma filha”, apesar de ela fazer trabalhos domésticos sem folga, não ter documentos de identificação até depois dos 40 anos e não ter aprendido língua brasileira de inclusão para conseguir se comunicar, de acordo com vários relatos colhidos durante a investigação.
Outro trecho questionado do projeto de lei estabelece que as ações administrativas e judiciais envolvendo trabalhadoras domésticas resgatadas devem seguir uma série de princípios, como dignidade da pessoa humana, saúde integral e plena ressocialização. Porém, segundo a nota técnica, inserir esses princípios como exigência legal poderia ter um efeito reverso, criando brechas para que os empregadores processados aleguem que a fiscalização desrespeitou algum deles, o que poderia levar à judicialização das ações fiscais.
O projeto de lei também propõe impedir que empregadores tentem iniciar processo de adoção da pessoa submetida ao trabalho forçado, entendendo que isso seria uma forma de atrapalhar a operação de resgate. No caso de Sônia, a família do desembargador fez o pedido para adotá-la formalmente após o processo de resgate. Na análise do ministério, o trecho contém “vício insanável de inconstitucionalidade por obstaculizar o direito de ação ou de pedido de tutela jurisdicional” assegurado pela Constituição.
A autora do projeto, Carla Ayres, disse em nota que está analisando os pontos levantados pelo Ministério e considerando eventuais ajustes para “fortalecer o texto sem comprometer seu mérito central”. “É importante ressaltar que o PL não retira nenhuma das proteções já garantidas por lei às vítimas de trabalho escravo, mas busca oferecer um grau adicional de proteção por meio da qualificação de condutas, da responsabilização de agentes exploradores e da visibilidade à realidade do trabalho doméstico escravizado”, ela disse.
A nota técnica deve ser analisada pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, onde o projeto se encontra atualmente, sob a relatoria da deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ). Depois, o texto deve ser analisado pelo plenário da Câmara e do Senado. O Ministério do Trabalho foi procurado, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.
A primeira vez que uma trabalhadora doméstica foi resgatada em situação análoga à escravidão ocorreu em 2017, na cidade de Rubim, em Minas Gerais. Até 2023, houve outros 129 resgates do mesmo tipo.
Atualização às 16:40 de 25/06/2025: Inserimos o retorno da ex-deputada federal Carla Ayres, autora do projeto de lei.