Uma cidade que funciona como uma empresa: os governantes priorizam os compromissos com a iniciativa privada, usando a Copa do Mundo e as Olimpíadas como ferramentas para atrair investimentos e legitimar violações dos direitos humanos. É mais ou menos assim que o geógrafo carioca Felipe Andrade Vilela e Silva descreve o momento pelo qual seu querido Rio de Janeiro está passando na pesquisa “Os esportes como estratégia de transformação do espaço carioca: potencialidades e sustentabilidades de um legado espacial para a nova cidade olímpica”, desenvolvida na PUC-RJ. Nela, ele relembra cidades que deveriam ser um bom modelo para o Brasil. “Londres deu um bom exemplo de obras com acessibilidade, em áreas degradadas da cidade. Ao contrário, aqui do Rio de Janeiro as obras estão sendo feitas em áreas de expansão do mercado imobiliário”.
Para ele, os megaeventos no Brasil não têm nada a ver com a real função do esporte, que é educar, incluir e sociabilizar: “O esporte acaba muito mais como uma retórica e um instrumento de legitimação para tornar a cidade apta para o negócio. E quem é contra isso, que faz qualquer tipo de crítica logo é taxado de não patriota e não torcedor”.
Leia abaixo a entrevista e baixe a Pesquisa.
Por que você resolveu fazer essa pesquisa?
Eu sou do Rio, nasci e moro aqui. Desde 2004, o Rio passa por transformações no projeto urbanístico, transformações socioculturais que eu acredito que tenham fortes relações com o Panamericano de 2007 e com uma campanha para atrair o maior número possível de eventos para a cidade. Na minha pesquisa eu trato de megaeventos esportivos, mas acredito que eles não sejam o fim, mas um meio de transformar e preparar a cidade para os negócios. Para ela ser globalmente competitiva no mundo dos negócios, para atrair investimentos.
Os megaeventos seriam então uma ferramenta para isso…
Exatamente. Foquei nos megaeventos esportivos porque já abrangem muita coisa, aqui no Rio de Janeiro tem bastante material para analisar. Na pesquisa, eu fiz basicamente uma divisão entre a real função do esporte e os megaeventos como estratégia de transformação do espaço urbano carioca. Isso posto, a gente analisou as possibilidades e a sustentabilidade que o esporte e os megaeventos poderiam oferecer para a cidade. Ou seja, uma análise real e uma análise ideal de como o esporte poderia ter potencialidade como instrumento de educação e sociabilização.
E o que te chamou mais a atenção durante a pesquisa?
O esporte acaba muito mais como uma retórica e um instrumento de legitimação para tornar a cidade apta para o negócio, como eu disse antes. Outro dado que me chamou a atenção foi o uso do patriotismo, do “ser brasileiro” para apoiar a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil. Parece que quem é contra, que faz qualquer tipo de crítica, mesmo pensando numa melhor construção dos eventos, logo é taxado de não patriota, não torcedor.
É bacana isso que você falou sobre a diferença entre o que poderia ser deixado como legado esportivo e o que de fato vai acontecer…
O esporte na sua origem nasceu por uma demanda de um maior dinamismo, de uma melhor preparação física e até – dentro de uma sociedade de consumo – para o consumo do tempo livre. Em outro momento, o esporte é utilizado como ferramenta de educação e sociabilização. Esse esporte ainda existe e pode ser visto no Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil. Mas o discurso dos megaeventos é totalmente contrário a esses valores tradicionais. Visa a competição, transpondo isso para as cidades. Acaba virando uma guerra entre cidades para mostrar qual é a melhor, porque isso é uma forma de angariar investimentos.
Na pesquisa você também observa que estas grandes obras que estão sendo feitas na cidade desapropriam comunidades e mexem com a cultura local para algo efêmero, como a construção de lugares que vão hospedar atletas durante os eventos e que depois não terão mais utilidade…
Eu fui buscar o significado da palavra legado e ele fala em uma herança, uma coisa positiva que fica. Passando isso para a geografia, seria uma intervenção que dura muito tempo e tem impactos positivos. Para os jogos Panamericanos de 2007, tivemos uma série de intervenções pontuais, como o reforço da Força Nacional de Segurança Pública nas ruas só para aqueles 20 dias. No trânsito foram pintadas faixas azuis para auxiliar o tráfego, assim como aconteceu durante a Rio +20. Os megaeventos deveriam promover infraestrutura para a cidade como um todo, para todos os cidadãos, ligadas ou não ao esporte. A construção de um estádio é uma coisa duradoura, quase permanente. Mas como leva muito investimento do dinheiro público, tem pouca transparência no processo, pode ser privatizado – o que até poderia ser visto como uma coisa boa –passa a ser visto pelas pessoas de outra forma.
E essas intervenções pontuais são pensadas no todo? Ou o que se faz é uma colcha de retalhos?
É muito assustador. O Panamericano, apesar de ser um exemplo concreto, é só um pequeno parâmetro para a gente analisar. Não tinha grandes exigências. Já as Olimpíadas e a Copa do Mundo fazem inúmeras exigências, então parece que essas intervenções são o mínimo que a gente pode fazer para sediar esses eventos com sucesso. Mas associado a isso tem uma política pública no Rio de Janeiro, não só municipal mas estadual, de vê-los como uma “janela de oportunidade”. Uma favela, uma comunidade que esteja em uma área de grande valor para a expansão da especulação imobiliária é retirada com esse pretexto dos megaeventos. É algo estratégico, legitima remoções e qualquer outra violação de direitos humanos que em outro contexto seria no mínimo questionado.
E o que é a Geografia do Olimpismo?
Esse termo é do geografo da UERJ Gilmar Mascarenhas. Na verdade ele propõe uma subcampo dentro da geografia do esporte. A geografia do esporte analisa essa interação entre espaço, esporte e sociedade. Mas tratar de megaeventos não é tratar de esporte. Por isso a “Geografia do Olimpismo”, porque essa mudança no espaço físico, mudança de leis, uma série de adequações em nome do privilégio ou do carma que é sediar os megaeventos não se aplicam ao esporte como atividade física inclusiva, educadora.
O esporte usado como ferramenta do business, é isso que se chama “empresariamento urbano”?
O “empresariamento urbano” que o geógrafo inglês David Harvey coloca é exatamente isso: a transferência do debate público e político da cidade para o debate privado e até um gerenciamento empresarial da cidade. Aqui no Rio, a gente vê que os compromissos do prefeito e do governador vão mais de encontro ao interesses das empreiteiras, das imobiliárias, dos grandes bancos do que a uma demanda da população. O investimento em indústrias é crescente, mas o investimento em educação é estagnado. Então vemos essa inversão de prioridades.
O que você acha que poderia ser feito para que os megaeventos deixassem um legado positivo?
A gente tem uma série exemplos positivos e negativos de transformações das cidades que hospedaram megaeventos. O Brasil se coloca em uma situação estranha. Porque a postura que assume é a parecida com a da África do Sul: cumprir as exigências, arcar com o endividamento público, flexibilizar a legislação e não pensar nesse legado real. As Olimpíadas de Los Angeles em 1984 foram bancadas com dinheiro da iniciativa privada e foram os primeiros jogos olímpicos lucrativos. Na Copa do Mundo de 2006, a Alemanha não aceitou todas as exigências da Fifa, como as zonas de exclusão. Os bares ao redor dos estádios continuaram vendendo suas cervejas nacionais. Em Barcelona mal ou bem as Olimpíadas trouxeram transformações estruturais para a cidade, e parece que 90% dos investimentos foram feitos na infraestrutura e menos de 10% nos jogos em si. Londres também deu bom exemplo de obras com acessibilidade, em áreas degradadas da cidade. Ao contrário, aqui do Rio de Janeiro as obras estão sendo feitas em áreas de expansão do mercado imobiliário. O Brasil nem precisaria inventar, era só pegar exemplos que deram certo. E investir nas contrapartidas como por exemplo: a cada um milhão investido nos megaeventos, outro milhão poderia ser investido nos esportes de base, em centros culturais.