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Na penitenciária de Bangu, ex-soldado da PMERJ Rodrigo Nogueira Batista fala sobre cultura violenta da corporação, corrupção dos oficiais e o revanchismo entre policiais e criminosos

Entrevista
20 de julho de 2015
09:00
Este artigo tem mais de 9 ano

Com quase dois metros de altura, mais de 100 quilos entre músculo e alguma gordura, o ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Rodrigo Nogueira Batista, de 33 anos, é um “monstro” como a gíria popular classifica os brutamontes do tamanho dele. A orelha esquerda estourada pelos tatames de jiu-jitsu e o nariz meio torto ajudam a compor a figura do ex-PM preso em Bangu 6 (Penitenciária Lemos de Brito). Essa prisão, destinada prioritariamente a ex-policiais, bombeiros, agentes penitenciários e milicianos, faz parte do Complexo Penitenciário de Bangu, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro. Preso desde novembro de 2009, Rodrigo foi condenado pela Justiça Militar a 18 anos por furto qualificado, extorsão mediante sequestro e atentado violento ao pudor e a 12 anos e 8 meses no Tribunal do Júri por tentativa de homicídio triplamente qualificado.

O ex-soldado da PM, Rodrigo Nogueira, preso em Bangu 6 desde 2009, durante entrevista a Agência Pública, fala de seu livro “Como nascem os monstros”. (Foto: Bel Pedrosa)

Segundo a condenação judicial, Rodrigo e seu então parceiro, o cabo Marcelo Machado Carneiro, abordaram a vendedora ambulante Helena Moreira na descida do Morro de São Carlos, onde ela morava. Ela iria à estação de metrô Estácio, no bairro do Estácio de Sá, Rio de Janeiro, e levava na bolsa R$ 1.750. Os policiais a revistaram, roubaram a quantia em dinheiro e sequestraram Helena pensando que ela fosse mulher de algum traficante. Segundo a decisão do juiz Jorge Luiz Le Cocq D’Oliveira, os PMs mantiveram a vendedora sob cárcere privado por quatro horas, onde ela foi agredida e “constrangida a praticar atos libidinosos” antes de ser atingida por um tiro de fuzil no rosto, que teria sido disparado por Rodrigo. Ainda segundo a sentença, a vítima se fingiu de morta após a sessão de tortura e foi à delegacia dar queixa. Rodrigo recorreu da sentença no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ele afirma não ter cometido o crime pelo qual foi condenado, mas diz com todas as letras que “não é inocente”,  cometeu “outros erros” como policial, que ele não quer detalhar para não complicar sua situação.

Ele é autor do livro “Como Nascem os Monstros”, da Editora Topbooks, um brutal “romance de não-ficção”, em que mistura suas próprias histórias às histórias de outros colegas, casos de repercussão na crônica policial e “causos” da corporação. No livro, Rodrigo descreve com consistência a transformação de um jovem comum, com vagos ideais de defesa da sociedade e combate ao crime, em um criminoso fardado que usa de sua posição para matar, sequestrar, extorquir e prestar serviços à milícia. O resultado é um quadro aterrador de achaque de oficiais aos recrutas, corrupção dos batalhões e uma ácida interpretação da visão da sociedade em relação à polícia.

“Nenhum, eu digo e afirmo, nenhum recruta sai do CFAP [Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças] pronto para empunhar uma arma no meio da rua”, afirma categoricamente o ex-PM. Mas logo ele vai aprender que tem que pagar para tirar férias, para ficar nos melhores postos da corporação e assistir aos oficiais lucrando com a venda de policiamento. “No Morro dos Macacos, ninguém entrava sem autorização do comando. Se um carro fosse roubado, e o bandido fugisse com o veículo para o interior da comunidade, sorte dele (…). Acredite, se um policial adentrar uma comunidade sem autorização do comando, não importa o motivo, ele responderá por descumprimento de ordem. O morro que está ‘arregado’ não tem tiro nem morte, basta estar com o carnê em dia”, denuncia.

“Posso garantir que, ao ingressar na corporação, ninguém acredita que um dia vai sequestrar alguém, roubar seu dinheiro, matar essa pessoa e atear fogo ao corpo. Pode até ter uma vontadezinha de atirar em algum bandido (…), mas pensar em tamanha crueldade é impossível”, narra Rodrigo no livro. “Embaixo da casca monstruosa que envolve esse tipo de criminoso, o policial militar que erra, também havia (há?) um homem que um dia estudou, passou no concurso, se formou, fez um juramento e marchava com garbo. Deu orgulho à sua família e, pelo menos uma vez, arriscou morrer pela sociedade.”

Tenho diante de mim um monstro: alguém condenado por um crime hediondo, mas, na própria metáfora de Rodrigo, alguém que também é produto de mecanismos cruéis de uma corporação cruel. Ligo o gravador. Essa é a versão dele.

Como você entrou na Polícia Militar?

Entrei na Marinha com 18 anos, fui aprendiz de marinheiro em Santa Catarina. Sempre gostei muito da vida militar. Logo no começo eu já me desiludi com o militarismo na Marinha. Eu sentia falta de realmente me sentir útil. Quando eu tive que escolher uma especialização na Marinha, não consegui passar nos exames para mergulhador. Sobraram algumas áreas bem ruins e aí resolvi fazer o curso da polícia. Passei no primeiro concurso que eu fiz, pedi baixa da Marinha e fiquei aguardando. No fim, eu fui pra polícia.

Mais uma vez veio a desilusão. Assim que nós nos apresentamos lá no CFAP (Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia Militar), onde a maioria dos praças são treinados. O CFAP deveria ser um centro de excelência, mas para você ter uma ideia, no primeiro dia não teve nem almoço pros recrutas. No primeiro dia tivemos só meio expediente e o comando já liberou todo mundo.

Você conta no livro que ali começou uma degradação de um rapaz que tinha um ideal, queria defender a sociedade, e começou a tomar contato com a violência e a corrupção na corporação. Como foi isso pra você?

O processo de perversão começa no início da formação. Quando cheguei no CFAP, o primeiro contato quando a gente sai do campo para a companhia é um caminho cercado por árvores. Do alto daquelas árvores, os policiais antigos começavam a disparar tiros de festim e soltar bombas. O camarada que deveria ser treinado desde o início pra policiar, já começa a ser apresentado a uma guerra. Dentro do CFAP, a cultura dos instrutores não é formar policiais. É formar combatentes. E aí é que tá o problema: você formar um combatente para trabalhar numa coisa tão complexa quanto o aspecto social que ele vai ser inserido. Um dia o policial tá trabalhando com um mendigo, no outro com um juiz, no outro com um assassino, no outro com um estuprador. Para você preparar um combatente para trabalhar nesse contexto, é muito delicado. Demora muito. Se isso não for muito bem feito você acaba criando monstros.

As instruções, as aulas que são ministradas no CFAP desde o início elas começam a mudar o viés do camarada. A minha turma não teve nem aula de direito penal, não teve aula de direito constitucional, não teve aula de filosofia, de sociologia. A gente chegava na sala de aula, sentava, o instrutor falava meia dúzia de anedotas da história da polícia militar e o resto é contando caso (matou fulano, prendeu ciclano). Dentro do próprio ambiente ali, os outros oficiais que coordenavam o curso só tinham um objetivo: deixar o cara aguerrido, endurecido, fazer esse recrudescimento da moral do indivíduo para ele não demonstrar piedade, covardia. Eles acreditam que se o camarada endurecer bastante ele pode preservar a própria vida com isso. Mas isso é ruim: você cria um cachorrinho bitolado que não consegue enxergar as coisas ao redor como elas são.

Depois de alguns meses no CFAP, o recruta vai estagiar e trabalhar com os antigos na rua. Como na época era verão, existiam as chamadas Operações Verão. Eles colocam o policial antigo armado e dois ou três “bolas-de-ferro”, como eles chamam os recrutas, justamente por dificultar a movimentação do antigo. Geralmente, os batalhões que recebem esse efetivo do CFAP são os litorâneos. Aí a gente foi pro 31º, no Recreio, 23º, que é o Leblon, 19º, Botafogo, 2º, Copacabana… Eu ficava um pouquinho em cada um.

No período de praia, por exemplo, a gente chegava e o antigo ficava angustiado com a nossa presença porque queria pegar o dinheiro do flanelinha, do cara que vende mate, da padaria. Outro exemplo: uma das instruções que os oficiais davam antes do efetivo sair pro policiamento era: “olha, vocês podem fazer o que quiserem, pega o pivete, bate, quebra o cassetete, dá porrada no flanelinha. Só não deixa ninguém filmar e nem tirar foto. O resto é com a gente. Cuidado em quem vocês vão bater, com o que vocês vão fazer e tchau e benção”. A minha turma partiu pro estágio com dois meses de CFAP, dois meses tendo meio expediente e depois rua. E aí, meu camarada, a barbárie imperava: pivete roubando, maconheiro… Quando caía na mão era só porrada e muito gás de pimenta. Foi ali que eu tive contato com as técnicas de tortura que a Polícia Militar procede aí em várias ocasiões. Você vê agora o caso do Amarildo. O modus operandi vai se repetindo, evoluindo, até que toma uma proporção mundial. Eu conheci aqueles recrutas que participaram do caso Amarildo lá no presídio da Polícia Militar e eles foram formados depois do meu livro. O último parágrafo do meu livro diz que os portões do presídio da polícia militar estarão sempre abertos para receber cada novo monstro nascente. E que venha o próximo. E continuam nascendo os monstros, um atrás do outro. Aqueles policiais que participaram do caso Amarildo, pelo menos de acordo com o que o inquérito está investigando eles estão fazendo as mesmas práticas que eu já fazia, que o meu recrutamento já fazia, que outros fizeram bem antes de mim e que já vem de muitos anos. Vem de uma cultura.

Como um policial aprende a torturar?

É no dia a dia mesmo. O nosso direito dificulta o trabalho do policial em certos aspectos. Por exemplo, um pivete roubou uma coisa de um turista e correu. O policial corre atrás do pivete e pega o pivete. Quando ele consegue chegar no pivete, ele já jogou o que ele roubou fora e ele é menor de idade, não pode ser encaminhado para a delegacia. Porra, mas o policial sabe que ele roubou. E aí entra o revanchismo, a hora da vingança. Primeiro lugarzinho separado que tiver (cabine, atrás de um prédio, dentro dos postos do guarda-vidas) é a hora da válvula de escape. E eu posso assegurar para você: da minha turma do CFAP, de dez que se formaram comigo, nove jamais pensaram que passariam por um processo de desumanização tão grande. O camarada começa a ver um pivete levando choque, spray de pimenta no ânus, no escroto, dentro da boca e não sente pena nenhuma. Pelo contrário, ele ri, acha engraçado.

E tem um motivo: se nesse momento que o mais antigo pegou o pivete e começa a fazer isso, se você ficar sentido, comovido por aquela prática, pode ter certeza que vai virar comédia no batalhão, vai ser tido como fraco. Vai ser tido como inapto para o serviço policial. E aí você vai começar a ser destacado, a ser visto como um elemento discordante desse ideal que a tropa criou. Se eu tô com você, mas você não tem disposição pra bancar o que eu tô fazendo com um vagabundo, na hora que der merda é você que vai roer a corda. Na hora que o vagabundo me der tiro, você não vai ter peito pra meter tiro nele. No fim, você vai ser afastado: vai ficar no rancho, na faxina ou em algum baseamento a noite toda.

Você vai formando e selecionando por esse critério. Se você é duro, você vai trabalhar na patrulha, no GAT (Grupamento de Ações Táticas), na Patamo (Patrulhamento Tático Móvel)… Agora você que é mais sensato, que não vai se permitir determinadas coisas, não tem condições de você trabalhar nos serviços mais importantes. Não tem como o camarada sentar no GAT se não estiver disposto a matar ninguém. Não tem como. E não é matar só o cara que tá com a arma na mão ali, é matar porque a guarnição chega a essa conclusão: “Não, aquele cara ali a gente tem que matar.” Aí é cerol mesmo. Se você não estiver disposto a participar disso aí, tu não vai sentar no GAT, não vai sentar numa patrulha nunca.

No livro, você descreve o constante clima de guerra e revanchismo entre policiais e traficantes e conta a história do recruta Sampaio…

É uma das partes verídicas do meu livro, fiz questão de chamar a atenção pra esse caso do Sampaio. Quem sabe para a família também ler e sentir que alguém lembrou dele. Esse caso foi muito sério… Foi pesado pra caraca… [Rodrigo chora]. No livro eu coloco que o protagonista conhecia, mas não tinha muita intimidade com o Sampaio. Eu particularmente conhecia bem o Sampaio. Um dia eu cheguei para trabalhar no CFAP, tava de serviço na guarda. Era sexta-feira de carnaval. Quando eu cheguei, já ouvi a notícia que o Sampaio tinha sido assassinado com 19 tiros, lá em Caxias [Duque de Caxias, município da região metropolitana do Rio]. O Sampaio era filho caçula de uma família relativamente grande, tinha vários irmãos, a mãe dele era uma senhora bem velhinha. Era pra ele estar de serviço comigo naquele dia. Ele ia todo dia pro CFAP de ônibus. Naquele dia, ele ia de carona com um outro companheiro lá do CFAP. Ele tava ali parado no ponto de ônibus, esperando o cara passar de carro e passaram alguns bondes de vagabundos voltando do baile. Ele morava numa área onde tinha traficantes, mas, como ele era recruta e cria da área, ele achou que teria uma tolerância com a presença dele pelo menos até ele se formar e conseguir sair. Ele tava no ponto às cinco da manhã, os vagabundos voltavam do baile e alguém o reconheceu. Eles fizeram a volta e começaram a atirar nele ali. Ele correu, correu muito, quase 800 metros. E foi cair lá perto de uma ruazinha de barro com 19 tiros de calibre .380. Todos eles nas costas. Todos.

A gente já chegou no CFAP com essa notícia próximo a nossa formatura. Aí pediram voluntários para a guarda fúnebre e eu fui pro enterro dele. Foi uma representação da polícia lá. E pô, bicho, ali eu vi como… [Rodrigo chora novamente]. Se eu tava rachado, ali foi o ponto de quebra. Pô cara, ele tinha 19 anos. 19 anos…

O ex-soldado da PM, Rodrigo Nogueira, preso em Bangu 6 desde 2009, durante entrevista a Agência Pública, fala de seu livro “Como nascem os monstros”. Chora ao falar de Sampaio, recruta que foi morto aos 19 anos. (Foto: Bel Pedrosa)

Como o clima de guerra entre criminosos e policiais influencia na formação do policial no dia a dia?

Depois que eu vi o Sampaio no caixão lá com flores até o pescoço, só a cara pra fora, a família dele chorando… O comandante do CFAP nem quis ir ao enterro, nenhum oficial foi. A kombi que a gente usou pra levar o corpo até o enterro, a gente teve que empurrar porque não funcionava. Depois que eu vi esse descaso todo, eu pensava: “porra, o Sampaio morreu. Tomou 19 tiros. Não é possível que vai ficar por isso mesmo”. Não teve uma palestra de alguém pra conversar com a gente, não teve um inquérito, não teve nada. Ninguém sabe até hoje quem deu 19 tiros num recruta que estava desarmado. Ninguém sabe. Ali eu pensei: “se eu der mole, vai ser um contra um e de caixão livre. Alguém vai ter que pagar, isso aqui não vai ficar de graça não. Vou ter que escolher de que lado que eu tô.” E nós nos formamos, e eu fui começar a trabalhar na rua.

Quando eu cheguei no batalhão, eu não poderia trabalhar numa coisa que fosse muito perigosa. Eles colocaram a gente num serviço de P.O, que é o Policiamento Ostensivo a pé. Eu trabalhei muito na área da Tijuca. Naquela época não tinha UPP ainda, não existia. Então a Tijuca, agora é menos, mas era uma região muito complicada de se trabalhar pela quantidade de morros ao redor. Eu trabalhava na rua 28 de setembro e no fim dessa rua era o Morro dos Macacos, que era o único morro da facção criminosa ADA (Amigos dos Amigos) em uma área cercada pelo Comando Vermelho. Era um morro muito forte, os bandidos eram muito aguerridos no combate. Não tinham medo de matar polícia, de dar tiro em polícia. É uma área onde passa muito ladrão, principalmente do Jacarezinho. Eles vinham de lá, atravessavam o túnel Noel Rosa, roubavam na 28 de setembro e voltavam pro Jacarezinho, mudavam de área de batalhão e era difícil de pegar. Ali, bicho, meio dia eu já dei tiro nos outros ali em saidinha de banco. A primeira vez que eu disparei a minha arma de fogo foi assim, meio dia e pouco, no Itaú da 28 de setembro. Tinha acabado de assumir o serviço. A gente vinha de ônibus até a 28 de setembro, eu pus os pés na rua e um camarada apontou: “Tão roubando, tão roubando”. Aí eu vi um cara saindo do banco e sentando na moto. Já puxei a arma, falei pra ele parar, e o garupa se encolheu. Aí o motorista acelerou e eu atirei. Só que eu errei e o cara escapou. Ali eu vi que o troço é de verdade, que se der mole, fechar o olho, vai ser baleado. Aconteceu também quando o Borrachinha foi baleado [episódio descrito no livro]. O Borrachinha tomou um tiro de .380 no meio do olho, foi pro hospital. E não passava uma semana sem que alguém próximo a mim tivesse levado um tiro. Policial que era baleado quando tentavam assaltar…. Quando eu tava na patrulha todo dia tinha. Todo dia, quando eu tava trabalhando na DPO, e com o rádio e eu escutava: “Prioridade, prioridade. Assalto em tal rua” é porque algum vagabundo tinha dado tiro em patrulha e tava correndo. O GAT quando entrava no Morro dos Macacos, eu tava patrulhando em volta e só ficava escutando o pau roncando lá. E eu só ficava pensando: “pô cara, eu tenho que ir pra lá, quero ir pra lá, quero dar tiro”.  E agora que eu tive tempo pra parar e pensar eu fico vendo como isso é absurdo. É absurdo.

Eu via essas coisas acontecerem. Rajada de fuzil uma da tarde nos Macacos, seis horas da tarde o cara descarregando uma nove milímetros em cima da patrulha pra poder fugir. Eu via isso acontecendo. Agora eu penso como isso é surreal, é uma guerra. Essa banalização do confronto entre polícia e bandido é singular no Rio de Janeiro.

O criminoso aqui no Rio de Janeiro não tem receio de dar tiro no policial, nenhum receio. Não tem receio de jogar uma granada em cima do policial que entra numa favela. Tem noção do que é isso? Escutar uma granada explodindo e você saber que é pra você? Bicho, isso deixa qualquer um pirado. Você tá passando com a sua patrulha e de repente você escuta os tiros atrás. O cara fica louco. Bicho, você dentro de um blindado, parece que você tá no Iraque ou na Síria cara. Quando você embica de blindado dentro de um acesso à favela, é tiro batendo no vidro, na lataria. Granada explodindo. Não tem como o cara não ficar louco. Isso cria um stress no policial que tá ali direto, que fica difícil do policial equacionar isso na cabeça dele. Você imagina uma escala de 24 horas por 72 de descanso. Então o cara chega na segunda-feira, vai trabalhar. Entra no blindado, bota colete, fuzil, carregador e vai pra favela. Troca tiro, leva tiro, mata um, dois, vai pra delegacia levar a ocorrência. Vão pro batalhão. Passa terça, quarta, quinta. Sexta-feira ele entra, vai pra favela de novo, troca tiro de novo, mata mais um. Não tem como se conservar são.

O monstro é uma metáfora desse processo de desumanização pelo qual o camarada passa na lida diária do trabalho. Por mais que o cara ele tenha tendências homicidas, seja violento, tenha caráter duvidoso antes de entrar na Polícia Militar, quando ele entra isso tudo é potencializado. É a hora disso extravasar. Essa lida contínua com situações de confronto, morte e violência tem que ser encarada de maneira séria pelos gestores da Polícia Militar. A gente tem que parar e pensar: a quem interessa deixar que esse bando de alienados fique na rua matando e levando tiros. A quem interessa isso?

No livro você também comenta sobre a participação dos oficiais nesse ciclo de violência e corrupção e chega até mesmo a chamá-los de “chefes de quadrilha”. Você diz que eles estão no comando disso tudo. Como isso acontece?

É o coronelismo moderno. No militarismo, não tem como uma coisa seja ela boa ou errada continuar sem a anuência de quem tá no comando. Se eu e você estamos na patrulha e a gente começa a agir de uma maneira que está desagrando o comando, ele vai tirar a gente da patrulha. Se eu e você estamos na patrulha, trocando tiros, matando gente e a gente continua na patrulha, é porque o comando quer que a gente continue. Dentro da estrutura da Polícia Militar, o coronel, o comandante do batalhão é que coordena todo esse esquema que mantém a área do batalhão em funcionamento. Toda área de batalhão no Rio de Janeiro tem ponto de táxi, tem clínica de aborto, tem tráfico de drogas, tem oficina de desmanche, tem jogo do bicho. Essas atividades só podem ocorrer enquanto o policial não vai lá e manda parar. Por que o policial não vai lá pra impedir? Porque ele tem determinação pra não ir. Posso garantir pra você que qualquer policial do Rio de Janeiro que fechar uma banca de bicho na área do batalhão dele, no outro dia ele tá em outro batalhão. Isso se não estiver em outra cidade. E ainda pega fama de “rebelde”, de “problemático”.

Há algum tempo teve uma comoção muito grande por conta de uma menina que foi fazer um aborto e faleceu, a Jandira. Todo mundo sabia onde era aquela clínica de aborto. Por que aquela clínica não foi fechada? Se a patrulha for lá e fechar a clínica de aborto, o coronel vai querer saber porque fechou a clínica. “Ah, teve reclamação”. Ok, mas a clínica manda dinheiro pro batalhão pra continuar funcionando. Se o policial se meter nesse esquema, ele vai sofrer algum tipo de consequência. Não é consequência de morte, violência, não. É consequência administrativa. Vai ser encostado de alguma forma e daqui uma semana a clínica vai estar funcionando de novo, pode ter certeza.

No batalhão, você tem a administração da lavradura militar e tem as companhias. O comandante da companhia é quem vai definir que tipo de serviço existe dentro das companhias (se o cara vai trabalhar na patrulha, na Patamo, nas cabines…) A patrulha é considerada um serviço bom. Te deixa móvel, você consegue se movimentar bastante dentro da área do batalhão e tem possibilidade de ganhos. Você pode extorquir o usuário de drogas, você pode pegar um ladrão, tomar a arma dele e ficar com o dinheiro dele e vender a arma. É diferente do serviço baseado, que você tem que ficar parado no mesmo lugar o dia todo. Pra você trabalhar nessa patrulha, você tem que ser indicado pelo comandante de companhia, pois é ele quem determina onde cada um vai ficar. Você foi indicado, beleza, vai trabalhar na patrulha. Pra você se manter na patrulha, você vai ter que dar alguma coisa pro comandante de companhia. Porque tem alguém atrás de você que tá querendo ir pra patrulha também. Na minha época, todo mundo que trabalhava na patrulha pagava cem reais por mês pra continuar na patrulha. Cem meu e cem do comandante da patrulha. Toda sexta-feira à noite, o comandante da companhia pegava duzentos reais de cada patrulha, de quem tava de serviço à noite. Isso da patrulha. Mas ele também pega de quem tá trabalhando num subsetor, também pega 200 reais do cara que tava na cabine, mais um dinheiro do camarada que trabalha no trânsito. Quando você vai ver no final do mês, esse pedagiozinho dá uma soma boa pro comandante de companhia.

Se o cara que tá no serviço, por exemplo, a patrulha, não quiser pagar, OK. Ele só não vai ficar na patrulha, vai ser deslocado pra outro serviço. Esse pedágio é uma forma do comandante receber um dinheiro e se blindar. Ele não precisa disputar na rua o dinheiro que ele vai receber, ele recebe dentro do batalhão. É um tipo de achaque e corrupção muito difícil de ser descoberto porque um policial dificilmente vai dizer que o comandante tá extorquindo ele. Dificilmente vai dizer, dificilmente vai conseguir provar e vai sobrar pra ele.

Por que dificilmente ele vai dizer?

Porque  se ele falar pro comandante do batalhão que o comandante da companhia tá pedindo cem reais pra ele continuar na patrulha, a primeira coisa que o comandante do batalhão vai dizer é: “você não tá mais na patrulha”. Ele pode tentar produzir provas, colocar uma câmera escondida, tentar ir mais a fundo. Mas aí, meu camarada, ele tá assinando a própria sentença de morte. Aí você tá querendo prejudicar o comandante da companhia, tá querendo prender o cara. Entre a própria tropa é visto como ofensivo, como uma coisa péssima. Isso não vai acontecer nunca.

Esse é só mais um exemplo. Quer outro? Pra você tirar férias, você tem que pagar o sargenteante. Olha que absurdo. Esse dinheiro é dividido entre o sargenteante, que é um sargento, e o capitão que é comandante de companhia. Isso tá no filme lá, no Tropa de Elite, não é mais novidade pra ninguém. Mas não para por aí não. Se você não quer mais trabalhar, você pode chegar no oficial e falar que não quer mais trabalhar. Ele vai falar: “Ok, todo mês o seu salário fica pra mim”. Aí o sargenteante te coloca numa escala fantasma. Ou seja, você não existe mais no batalhão. Você não precisa mais colocar os pés no batalhão. Isso é bom pro cara que trabalha na milícia, no jogo do bicho. O camarada que, por exemplo, tá trabalhando na banca do jogo do bicho. Recebe lá cinco mil por semana pra trabalhar no jogo do bicho. Ir pro batalhão pra ele é ruim porque ele perde o dia de trabalho dele no bicho. Então ele pega o salário dele de dois mil reais, deposita na conta do comandante de companhia e não aparece mais no batalhão. Fica só trabalhando no jogo do bicho. Pra ele é mais jogo, porque ele não precisa mais se expor, não precisa botar farda, ter horário, fazer a barba. O interessante pra ele é a carteira de policial e o porte da arma. Isso é muito comum, é fácil de se constatar. Qualquer promotor de justiça que chegar no batalhão de surpresa e disser: “bom dia, eu quero o efetivo do batalhão e a escala de serviço”. Ele vai encontrar, no mínimo, cinco, seis fantasmas. Em qualquer batalhão do Rio de Janeiro. Isso é batata.

Esses esquemas todos nos batalhões da Polícia Militar são muito antigos. Eles fazem parte de uma cultura da polícia. Acabar com esses esquemas todos vai demandar uma coisa muito complicada, que seria tirar o poder das mãos dos coronéis.

Por isso você defende a desmilitarização?

É um primeiro passo. Quando você vê um soldado policiando, alguma coisa já tá errada. Ou o camarada é soldado, ou é policial. Ele pode até ser um soldado policial dentro do quartel, mas não na rua. O soldado tem uma premissa que é o quê? Matar o inimigo. O soldado é formado para eliminar o inimigo e o policial não, pelo menos não deveria. O policial, ao contrário do que se acredita em boa parte da sociedade carioca, ele não foi feito pra matar ninguém. O policial não tem inimigo. O camarada que hoje tá dando tiro no policial, ontem pode ter estudado com ele, pode ter frequentado os mesmos lugares que ele. O criminoso é resultado da nossa sociedade, do nosso contexto. O crime é um fato social e o policial não pode enxergar o criminoso como um inimigo. Não é pra matá-lo. Prendeu, leva pra lei tomar as providências dela. Mas o que se convencionou acreditar é justamente o oposto.

O coronel, os oficiais, acumulam muito poder em uma figura só. O coronel tem uma área de influência enorme dentro do batalhão dele, ele determina muitas coisas. E o soldado não pode questionar o coronel. O soldado não pode entrar na sala do coronel e falar assim: “Coronel, por que eu não posso abordar aquela van pirata que tá passando ali?” Porque isso já constitui uma transgressão disciplinar. Desde o legalismo do militarismo, até as regras subjetivas que regem a relação entre subordinados e superiores hierárquicos, tudo serve para impedir o camarada de pensar. Ele não pode virar pro comandante e falar: “capitão, não vou pra rua porque o colete tá vencido”. Não pode. Ele pode reclamar do colete, mas não pode reclamar para o capitão que é quem resolveria. Quando você tira o militarismo e coloca os profissionais de segurança em nível equivalente, se o profissional de segurança questionar o coronel por que ele teve que voltar das férias pra trabalhar, o coronel não vai poder responder: “você tá indo porque eu quero. Porque eu tô determinando que você vá. E se você não for, vai ficar preso à disposição”.

Você vê que essa confusão de atribuições entre soldado e policial, elas não se resolvem de maneira fácil. As coisas continuam acontecendo aos olhos  de todo mundo e ninguém faz nada.  Por exemplo, aquele pessoal que tava voltando de uma festa dentro do HB20 branco e que foram perseguidos por uma patrulha. Não teve um estalinho, uma bombinha, nada que viesse do HB20 pra patrulha e o cara deu 15 tiros de fuzil no carro, num carro em fuga. Só poderia acontecer na cabeça de um soldado, na cabeça de um policial não aconteceria nunca. Um policial iria correr atrás, cercar. Mas ele não ia dar tiro em quem não tá dando tiro nele. Só na cabeça do soldado, que acha que tá na guerra e acha que se não atirar primeiro vai levar tiro. O cara foi lá, deu a sirene e o carro acelerou pra fugir da polícia. “Ah, é bandido, vou dar tiro”. Podia ser alguém bêbado, podia estar todo mundo fazendo uma suruba dentro do carro, podia ter uma cachaça no carro e o cara estar com medo de ser pego, o cara podia não ter habilitação, o cara podia ser surdo… São milhões de coisas, mas o cara não para pra analisar essas coisas porque ele não foi condicionado pra pensar, a contextualizar o tipo de serviço que ele tá fazendo. Ele foi treinado pra quê? Acelerou, correu, bala!

Aquelas crianças que tavam brincando na rua, filmando, um correu atrás do outro. Daqui a pouco é tiro pra todo lado e o garoto caiu agonizando. Sabe por que? Preto e pobre correndo na favela é bala. Depois a gente vê o que é. Foi o soldado sobrepujando o policial de novo. Ele tava entrando num território conflagrado. Ele entrou lá pra prender ou pra matar? Pra matar, pô. Se ele tivesse entrado pra prender, a primeira coisa que ele ia fazer quando viu o menino correndo era gritar pra ele parar.

A nossa sociedade carioca, principalmente da região metropolitana, criou, até por sofrer muito com os assaltos e tudo mais, um pensamento torto. Quando um policial vai lá e mata um bandido, a sociedade faz o quê? Aplaude. Toda vez que o policial entra em confronto, mata um cara que tava fazendo o arrastão a sociedade aplaude e estimula. Só que o policial militar tem que entender que quando ele errar a sociedade não vai aplaudir não. A sociedade vai sentar pra formar o tribunal do júri e vai condená-lo sem a menor vergonha. Mas ao mesmo tempo, criou-se essa cultura de que o policial tem que matar.

Tem uma frase sua no livro que até vai nesse sentido, quando você escreve: “O PM só vale o mal que ele pode causar”. Como é que o PM enxerga essa hipocrisia da sociedade que às vezes exige o policial e às vezes o monstro?

Se o PM andar com uma roupa humilde, pegar ônibus pra trabalhar,  se ele não andar demonstrando que tá armado, ele vai ser encarado por aquelas pessoas que o conhecem como um policial bobão que não faz mal pra ninguém. Agora, se ele tá dentro de um Fusion, com uma pistola enorme na cintura, com roupa de marca, cordão de ouro no pescoço e mete a porrada em quem tá fazendo merda perto da casa dele. Se ele se torna algo que realmente traz risco, ele se torna valorizado. “Ih, pô, não mexe com o fulano não. Ele é polícia”. Há uma glamourização desse estado desumanizado. A sociedade valoriza mais o monstro do que o policial e é por isso que ele tá nascendo o tempo todo.

As nossas próprias autoridades políticas valorizam a criação dos monstros, mas tem que ter alguém pra eu apontar o dedo na hora que tiver dando merda. As autoridades querem que existam monstros e tem vários exemplos disso. Você lembra do caso do Matemático, que foi perseguido pelo helicóptero? O camarada de helicóptero com uma M60, atirando em um carro em fuga que não deu um tiro nele. Enquanto isso, a esteira de tiros batendo nos muros das casas, nos carros estacionados, em tudo que é lugar. Aquilo ali é o exemplo da hipocrisia e de como as nossas autoridades são parciais. Se fosse uma Patamo fazendo isso, os policiais iriam todos presos. Mas como foi o helicóptero, tá tudo tranquilo. Agora, me diz a diferença entre o cara do helicóptero e os caras do HB20? Não tem diferença nenhuma. Mas o tratamento foi bem diferente. “Ah, aquele PM ali que atirou no carro em fuga, errou. Mas o cara do helicóptero, não, vamos proteger ele porque alguém tem que fazer esse tipo de merda.”

O Estado quer que alguns profissionais façam sim esse tipo de serviço sujo. Como fizeram com o Matemático, como fizeram com o Bem-te-vi na Rocinha, mas sempre que a coisa começa a chamar muita atenção, eles entregam alguns pra serem açoitados. E com isso a gente vai empurrando. E não enfrentamos nenhum problema.

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“Qualquer promotor de justiça que chegar no batalhão de surpresa e disser: “bom dia, eu quero o efetivo do batalhão e a escala de serviço”. Ele vai encontrar, no mínimo, cinco, seis fantasmas. Em qualquer batalhão do Rio de Janeiro. Isso é batata”, denuncia Rodrigo (Foto: Bel Pedrosa)

O seu livro chegou a ser proibido no BEP (Batalhão Especial Prisional, prisão para policiais militares).

A Polícia Militar não gostou do livro, tanto que ele foi censurado. Eu me ressinto um pouco de não ter previsto isso. Eu até imaginava que teria algum tipo de represália. Depois de escrever o livro, eu pensei em segurar ele e lançar quando eu saísse da prisão. Mas as coisas não se resolveram, eu já tava com o livro pronto, a editora tinha gostado e tava querendo publicar. Aí eu lancei o livro enquanto ainda tava no presídio da Polícia Militar. Foi a pior coisa que eu fiz. Escrever um livro falando mal da Polícia Militar dentro do presídio da Polícia Militar, que que tu imagina que pode ter acontecido?

Cara, quando o livro foi lançado, minha esposa levou 30 exemplares pra distribuir lá no BEP, pra alguns amigos. Eu ia dar pra rapaziada que sabia que eu tinha escrito o livro e queria ler. Quando ela chegou, não deixaram ela entrar com o livro. “Ah, mas por que não pode entrar com o livro?” “Ordem do comando, não pode entrar com esse livro no presídio.” Minha esposa ficou nervosa e foi lá no plantão do Ministério Público no centro do Rio pra contar o que aconteceu, que o livro foi censurado. Ela contou que  o Elite da Tropa, por exemplo, pode entrar, o livro que o capitão escreveu. Mas o livro que o ex-soldado escreveu não pode. Aí ela foi e relatou isso lá pro Ministério Público e depois de alguns dias o MP oficiou o comando da Polícia Militar solicitando informações sobre o porque da censura prévia. O comando deu lá as explicações dele.

Dois dias depois, de madrugada, aconteceu. Entraram quatro policiais, pelo que eu pude perceber, na minha cela, todo mundo com roupa do BOPE, touca ninja, sem identificação. Entraram na minha cela, me acordaram e eu fui pro saco, tomei choque. Saco e choque pra caramba. E eles falaram: “Manda lá a tua esposa retirar a denúncia do Ministério Público, se não tu vai amanhecer suicidado aqui dentro. Na próxima vez que a gente voltar, vai ser pra você se suicidar, entendeu bem?”. Como não entender um recado desse? A minha esposa não foi mais lá, retirou a denúncia e o assunto morreu, ficou por isso mesmo. Eu falei com a minha advogada e ela foi, procurou gente pra denunciar, mas ninguém quis ouvir.

O Comando da Polícia Militar se doeu mesmo comigo, tomou como uma coisa pessoal que poderia trazer algum tipo de incômodo pra eles lá em cima. É impressionante como ainda hoje você incomoda se você falar o que você pensa, se você falar a verdade.

Teve uma livraria, uma rede de varejo que, por conta do lançamento do livro, queria fazer uma noite de lançamento. Eles queriam fazer o lançamento do livro, falaram com a minha editora e tudo mais. A Justiça autorizou a minha ida até a livraria pra poder fazer a noite de lançamento. Só que, no despacho, o juiz determinou que ficava a critério da Polícia Militar providenciar a escolta pra que eu fosse até o local de lançamento no dia tal, hora tal, pra fazer o lançamento do livro. Só que no dia, a escolta não pode me levar porque ficou empenhada em outra atividade. Ou seja, o comandante providenciou a escolta, mas no dia disse que não tinha escolta pra me levar. A tentativa era essa, de calar, de evitar que eu falasse.

Em que ponto se perde o policial e se ganha o monstro?

São vários pontos de quebra. Pra mim foi a morte do Sampaio. Quando eu vi o Sampaio morto, um recruta de 19 anos morto com 19 tiros pelas costas. Ali eu falei: “É guerra e se alguém atentar contra minha vida, eu vou tacar bala também”. Ali foi que eu percebi a crueza da morte. Essa lida diária com a violência constante é que causa a desumanização. Com a corrupção também, mas ela se torna parte do processo da violência. Porque pra você conseguir pegar o arrego do traficante, você tem que subir o morro e dar tiro nele. Se não o traficante não vai te pagar nada. Traficante não paga pra quem tá baseado na entrada do morro, porque quem tá baseado na entrada do morro não atrapalha o movimento da boca. Essa desumanização vem primeiro com a violência, depois vem com os benefícios pecuniários que você pode ter quando os outros querem evitar a violência. Primeiro eu vou lá, entro no morro, entupo o traficante de bala. Vai descer um, dois, três mortos. Na semana que vem o traficante vai pagar pra não descer mais três mortos. A corrupção é consequência desse estado de violência que o policial tá sujeito o tempo todo. O policial militar tá o tempo todo oprimido: na folga dele ele tá oprimido, tem receio de ser reconhecido, assassinado. Pra mim esse ponto de quebra foi perceber que eu estava no meio de uma guerra de verdade. E como o Sampaio, depois vi muitos outros amigos morrendo, fui a muitos enterros, funerais. Mas aí eu já estava mais recrudescido. Tem outro caso que eu conto é o de dois policiais assassinados numa cabine, no Andaraí, o sargento Marco Aurélio e o cabo Peterson. Eles chegaram pra trabalhar, de manhã cedo, e lá na cabine Caçapava o vagabundo matou os dois de .45. O cara fugiu sem levar nada. Cheguei lá pra ver e tava o sargento Marco Aurélio sem a parte de cima da cabeça e o Peterson tava todo cheio de tiros no tórax.

Muita gente da minha turma morreu, tá presa, foi excluída. E a fábrica de monstros tá aberta, continua lá. Eles vão preenchendo. Sempre tem gente querendo entrar por causa dessa glamourização do monstro. Todo concurso da PM é 100 mil inscritos, 80 mil inscritos. É muita gente, pô. A relação candidato/vaga é paralela a vários cursos aí da UERJ. A fábrica tá aberta e muita gente quer entrar nela, mas a gente vê que tá tudo errado.

Esta reportagem foi financiada coletivamente e escolhida pelos doadores do crowdfunding #ReportagemPública2015. Saiba mais

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