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Como uma offshore da Odebrecht investigada na Lava Jato participou do projeto que levou a remoções violentas, segregação social e enriquecimento da elite na capital angolana

Reportagem
7 de março de 2016
15:36
Este artigo tem mais de 8 ano

Há alguns meses o nome Osel Angola apareceu em meio às investigações da Lava Jato. Segundo os investigadores, a conta da empresa no Citibank em Nova York foi usada para transferir US$ 6,3 milhões em transações que acabaram beneficiando os ex-diretores da Petrobras Paulo Roberto e Renato Duque, numa operação de lavagem de dinheiro.

A Odebrecht Serviços no Exterior (Osel), com sede nas ilhas Cayman, é uma das muitas offshores do grupo empresarial. Manteve um escritório de representação em Angola entre 1985 e 2006, segundo a assessoria de imprensa do grupo, quando executou um único projeto: a urbanização da parte sul de Luanda. “Eu sei que é uma empresa do grupo Odebrecht e que assinou o contrato por ser uma empresa da organização, mas como se executou esse projeto em Angola e como foi essa relação não sei dizer pro senhor”, afirmou o superintendente da Odebrecht, Antônio Carlos Dahia Blando, em depoimento à Justiça Federal, em Curitiba.

Se na direção atual da Odebrecht em Angola a lembrança é parca, nas ruas do bairro das Gaiolas, uma comunidade que resistiu na área da monumental Talatona – como Luanda Sul é hoje conhecida –, a memória ainda é fresca. O difícil é conseguir ouvi-la em meio às ruas de terra, casas humildes e casarões coloridos, por causa do receio dos moradores. “Vivemos aí num país de medo. A permanência do poder já é bastante tempo e as pessoas reclamam. Então, quando você diz alguma coisa que não é de agrado do sistema, vão falar, ‘esse homem, onde que ele vive?’ Para levantar quem eu sou não custa nada”, justifica um homem ao negar a entrevista. O governo de José Eduardo dos Santos, principal cliente da Odebrecht, já dura 36 anos.

“Fica seguro”, responde outro. “Às vezes também é bom que o mundo saiba que existimos.”

Crianças no bairro das Gaiolas. Ao fundo, prédios de Luanda Sul (Foto: Eliza Capai/Agência Pública)

Nasce Luanda Sul

O projeto Luanda Sul foi pioneiro na reformulação urbana da capital, um processo marcado por expulsões forçadas e massivas e violências sistemáticas contra a população pobre e já traumatizada por duas décadas de guerra civil.

Tudo começou em 1994, quando a Odebrecht ainda engatinhava em Angola. A celebrada construção da hidrelétrica de Capanda, com financiamento brasileiro e russo, e a operação da primeira mina de diamantes haviam sido suspensas depois de serem invadidas pelas forças rebeldes da Unita, que disputavam o território com o MPLA, partido que está até hoje no poder.

Desenvolver a cidade de Luanda foi uma nova aposta da Odebrecht na vitória do MPLA. Durante a guerra civil, a capital viu uma explosão na sua população. Os que fugiam dos violentos combates no interior ocupavam terrenos vazios, eram acolhidos por moradores mais antigos ou camponeses que tinham lavras nos arredores da cidade. De 500 mil habitantes em 1975, a população mais que decuplicou, chegando a cerca de 7 milhões atualmente.

Em 1992, uma nova Lei de Terras determinou que toda terra pertence ao Estado, que pode revogar o direito de uso dos moradores para fins de “utilidade pública”. Pouco depois a guerra se acirrou; no final dos anos 90, aumentaram as ocupações de áreas pouco habitadas, como Luanda Sul. Aos olhos do governo do MPLA, essas ocupações eram ilegais – e seriam tratadas como tal.

Para sanar o problema, em 2 de junho de 1994 o governo provincial (estadual) de Luanda assinou com a Odebrecht Serviços no Exterior (Osel) um contrato para o “Desenvolvimento Urbano Autofinanciado” da capital, visando “inverter a tendência de ocupação desordenada e melhorar as condições urbanas”. Entre os objetivos estava “evitar as ocupações ilegais de terrenos, oferecendo alternativas planeadas e minimamente infraestruturadas”, de acordo com o decreto publicado no Diário da República.

A Odebrecht construiu infraestrutura urbana para o bairro de 1,6 mil hectares (água, luz, esgoto, avenidas) e recebeu em troca a cessão de direito de uso de terrenos, podendo até mesmo vendê-los. Foi a primeira parceria público-privada adotada no país, que na época era socialista. Com transferência de tecnologia da Odebrecht, a empreiteira ajudou ainda a formatar a empresa de capital misto Edurb – Empresa de Desenvolvimento Urbano –, encarregada de administrar o território, uma sociedade do governo provincial de Luanda com a construtora Prado Valladares, do engenheiro Lourenço Prado Valladares, que chegara a Angola poucos anos antes a convite da Odebrecht.

Avenida em Talatona, como é conhecido o bairro urbanizado de Luanda Sul (foto: Ampe Rogerio/Rede Angola)
Avenida em Talatona, como é conhecido o bairro urbanizado de Luanda Sul (foto: Ampe Rogerio/Rede Angola)

Por e-mail (confira aqui), Lourenço disse à Pública que a Osel mantinha um gestor no projeto, atuando junto com a Edurb até a conclusão do contrato, em 2011. Já o plano estratégico, partiu da sua empresa. “A Prado Valladares, em 1994, após apresentar ao governo de Luanda o Plano Estratégico para infraestruturação da expansão sul da cidade em questão, com seu respectivo sistema de governança, foi convidada para associar-se ao governo”, escreveu. “À Prado Valladares cabia conceber o Master Plan com os modelos de gestão e realização das respectivas infraestruturas. Com isso, pode-se dizer que a Edurb nasceu da concessão de ativos e de tecnologias de desenvolvimento urbano para atuar como elo entre o setor público e setor privado.”

No bairro das Gaiolas

Com o intuito de permitir a urbanização do sul de Luanda, a Edurb buscou “retomar” os espaços ocupados. Para ouvir essa história, a Pública esteve com André Augusto, vice-coordenador da ONG SOS Habitat, no bairro das Gaiolas, numa tarde seca de setembro, época do “cacimbo”, a estiagem.

As ruas de terra e as casas envelhecidas contrastam com os prédios envidraçados, que sintetizam o que é o vistoso bairro de Talatona, separado apenas por um muro. “Aqui não tem asfalto porque é zona do povo. O asfalto é só pra zona onde está o homem do governo, ou o homem que tem colaboração com o governo”, diz André ao caminhar pelas ruas da comunidade. A SOS Habitat foi formada em 2001 por vítimas de remoções como ele e é até hoje uma das mais atuantes (e perseguidas) ONGs angolanas. Com sua camisa velha, mas aprumada, para o dia de visitas a vítimas de demolições que não vê há muitos anos, ele explica que no fim da guerra, entre os anos 2000 e 2002, muitos moradores se instalaram no bairro das Gaiolas.

Criança no bairro das Gaiolas (Foto: Eliza Capai/Agência Pública)
Criança no bairro das Gaiolas (Foto: Eliza Capai/Agência Pública)

É essa a história de Adão Miguel Oliveira, de 53 anos. Ele comprou uma parcela das lavras onde antes as “mamas” locais plantavam mandiocais e se instalou com a família em 2001, um ano antes do fim do conflito. “A Edurb começou a vir aqui lá pra 2003, mas lá também não foi fácil, porque eles vinham na altura, partiam as casas, quer dizer, para permanecer aqui não foi fácil”, conta Adão. “Eles diziam que é uma reserva fundiária do Estado, começaram a vir aqui, a dizer que ‘não, vocês não têm direito de permanecer e têm que sair’. Não ofereceram nada. Eles só falaram que vão nos tirar daqui.”

André Augusto conta que o bairro foi alvo de repetidas demolições. “A Edurb demolia as casas da população para dar espaço às obras da Odebrecht. As pessoas levantavam umas paredes novamente, aí partiam novamente. Isto aconteceu entre 2004 a 2007. Foi em 2007 que eles pararam completamente de partir, de perseguir as pessoas”, diz ele.

Essas demolições faziam parte de uma onda de expulsões massivas que atingiram também o centro da cidade e foram denunciadas em dois relatórios contundentes da Anistia Internacional e da Human Rights Watch em 2007. De acordo com a Human Rights Watch, nos bairros das Gaiolas e Talatona (um antigo bairro popular com o mesmo nome pelo qual Luanda Sul é hoje conhecido), cerca de 2.610 famílias estavam em risco de perder suas casas. Na comunidade de Talatona, a ONG registrou durante sua pesquisa 14 casas demolidas.

Assim como em outros 16 bairros de Luanda, as demolições eram feitas sem que se apurasse se os moradores tinham ou não direito sobre a terra e “envolveram frequentemente intimidação, bem como violência e destruição desnecessárias, que originaram por vezes reações de confronto das pessoas que perderam as suas casas e os seus bens”, diz o relatório. As vítimas não recebiam informações sobre o motivo, a data do despejo ou o local de reassentamento. Eram apanhadas pelo que a ONG descreve como “despejos surpresa traumatizantes”, quando se deparavam com as bulldozers do governo e os caminhões que as levariam para longe dali.

Um documento da IFC – International Finance Corporation, braço do Banco Mundial que financia a iniciativa privada – afirma que, entre 1995 e 2005, 2 mil famílias foram removidas de Luanda Sul pela Edurb. Conforme o documento, 90% dos moradores eram “considerados pelo governo de Angola e pela Edurb como – tecnicamente ilegais – colonos informais, tendo ocupado Luanda Sul depois de a terra ter sido declarada fora do alcance para moradia”. Em 2005 a IFC deu um empréstimo de US$ 10 milhões para a Odebrecht Serviços no Exterior (Osel) fazer infraestruturas no projeto.

Lourenço Prado Valladares nega que tenha havido demolições. Ele diz que a região foi escolhida por “ser área totalmente desabitada, pelo fato de o terreno ser anteriormente utilizado para treinamento e exercícios militares e pequenas lavras”, e argumenta que os moradores vieram depois da construção das infraestruturas, principalmente da provisão de água. “Ocorreram pressões de populares para invasões nas proximidades destas infraestruturas com construções toscas utilizando-se chapas, plásticos, papelões etc.”, escreveu. Assim, conclui: “É importante que se diga que não houve realojamentos nem demolições de casas em Talatona, e sim um reassentamento nos bairros próximos a Talatona, denominados na época de Sapu e M’Bonde Chape. As lavras e pequenas benfeitorias rurais, preexistentes, foram devidamente indenizadas”. No total, foram adequadamente reassentadas cerca de 3.300 famílias, diz ele. O arquiteto enviou um arquivo mostrando o fluxo de trabalhos do projeto, que pode ser baixado aqui.

Chamem o brigadeiro

Na visão dos moradores do bairro das Gaiolas, a história é outra. Para eles, se a Edurb não conseguiu arrancá-los dali, isso se deve em parte a um senhor cujo sorriso não combina com o olhar sério e desconfiado. Brigadeiro reformado com boas relações no governo, Augusto Pedro Simão guarda na sua casa – uma das maiores do bairro – um enorme sofá de madeira entalhada, da época colonial, seu espólio pessoal.

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Augusto Pedro Simão, o Sr. Ringo, na sua casa no bairro das Gaiolas (Foto: Eliza Capai/Agência Pública)

Quando os moradores se viram acossados pela Edurb, convidaram o Sr. Ringo, como é conhecido, a se juntar à comunidade. Ele foi morar lá em 2005, quando a briga já estava conflagrada, e logo se tornou presidente da associação de moradores. Era, além de militar, um homem com instrução, que sabia ao menos ler. “Ali já não houve conversações amenas, já foi em termos de força, essa coisa toda, inclusive houve intervenção de ordem pública para repor a ordem”, lembra. Até a sua casa chegou a ser alvejada pelos tratores. “A Edurb veio à noite, partiram uma casa. Pensaram que fosse minha casa, como eu era o responsável [pela associação de moradores], foram partir, mas era de outra pessoa.”

Naquela altura, diz ele, “não havia negociações ou indenização”: “A única coisa que houve foi a título de ludibriar-nos, posso dizer assim. Nos sugeriram que conseguíssemos localizar um outro espaço. Só que lá encontramos uma situação caricata: já lá havia casas que tinham sido demolidas”, diz o Sr. Ringo. Ele refere-se ao Mbonde Chapé, área designada pela Edurb para reassentamento. Segundo a Human Rights Watch, também ali os moradores originais foram expulsos antes que o terreno fosse urbanizado pela Odebrecht. O relatório estima que, em 2006, aproximadamente 500 terrenos tivessem sido “ilegalmente tomados” ou estivessem sob ameaça. “Em Mbonde Chapé, vários terrenos foram despejados para a construção de uma área de realojamento”, diz o texto. Moradores despejados contaram aos pesquisadores que suas casas foram numeradas sem nenhuma explicação e demolidas em poucos dias. Além disso, as indenizações foram distribuídas de maneira desigual, sem avaliação do tamanho das casas ou benfeitorias, e sem nenhuma negociação. Uma camponesa que morava ali desde 1975 relatou: “Ficamos à espera. Quando ele [o representante do governo] chamou, rasgou um papel ao meio e pediu para assinar. Eu não quis assinar sem saber o valor. Era 30 mil kuanza [aproximadamente US$ 375]. Não aceitei. Quando fui lá para pagarem, já tinham destruído a minha lavra”.

No caso das Gaiolas, a SOS Habitat interveio e ajudou a coordenar protestos diante do escritório da Edurb e do governo provincial. A repercussão internacional dos relatórios da HRW e Anistia também ajudou. Em 2007, o poder público foi finalmente dissuadido, segundo o Sr. Ringo. “O nosso grupo mesmo era de oficiais de alta patente, e não era bom também que eles fizessem isso [demolir o bairro]. Havia alguns oficiais que já haviam feito algum serviço para a ordenação, então não era bom nos tirar…”, diz.

André Augusto, coordenador da SOS Habitat (Foto: Eliza Capai/Agência Pública)
André Augusto, vice-coordenador da SOS Habitat (Foto: Eliza Capai/Agência Pública)

“Não existe outra área onde outra empresa tenha feito tanto como aqui”, diz André Augusto. “Só que não temos informação de como as coisas funcionam porque aqui a informação é uma coisa muito fechada.” Ele faz questão de ressaltar que o conflito dos moradores foi com o governo provincial, não com a empreiteira. “Mas a nossa preocupação é que a Odebrecht tem atuado num comportamento omissionista. Ela acompanha os acontecimentos, mas finge que não aconteceu nada, e aí pega a obra, ganha o dinheiro e vai embora.”

Talatona é uma mina de ouro

Hoje, Luanda Sul não é nem sombra do que fez o projeto receber comendas internacionais como o Prêmio Dubai 2000, na Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (UNCHS) e o Prêmio Embaixador Estocolmo 2002, no Fórum sobre Cidades Sustentáveis. O bairro não “resolveu as imensas necessidades de comunidades de baixa renda e deslocadas pela guerra”, como prometido. Nas suas ruas, diferentemente do resto da cidade, quase não se vê gente – muito menos pobres. Com avenidas enormes de mão única, muitas delas circulares, só se pode andar de carro, já que o transporte público é inexistente; chegar de um ponto a outro demora um exagero. “A gente brinca que Talatona foi projetada por um estagiário”, repetiu algumas vezes um executivo da Odebrecht à reportagem. Prédios altos e envidraçados dividem espaço com largos condomínios fechados, com playgrounds, quadras de esporte, piscina e grama verde irrigada mesmo em plena época do cacimbo. Dentro do Bellas Shopping – o primeiro do país, construído pela Odebrecht – ou dos restaurantes, veem-se muito mais brancos do que em qualquer outro lugar de Luanda. Ali é o lar dos brancos, estrangeiros e poderosos de Angola.

A arquiteta portuguesa Sílvia Leiria Viegas, que durante seis anos estudou a urbanização de Luanda para sua tese de doutorado, Luanda, Cidade (im)previsível, pela Universidade de Lisboa, aponta uma divisão clara: a população pobre “não cabe” no conceito de cidade que está sendo construído em Luanda. “A ideia é: ‘queremos a cidade dos mais ricos, vamos fazê-la à imagem dos que têm mais dinheiro. Só quem vai a Luanda é que consegue entender a dimensão dos despejos e da periferização da pobreza, ou seja, os pobres estão para ser expulsos para o mais longe possível.”

Usando os terrenos concedidos pelo governo, a Odebrecht tornou-se a maior operadora do mercado imobiliário local, no qual uma casa em um condomínio fechado pode chegar a mais de US$ 4 milhões. Eduardo Mattos, diretor de Contrato da Odebrecht Infraestrutura, afirmou que a receita com empreendimentos imobiliários em Talatona foi de cerca de US$ 1 bilhão na última década. “Nós trouxemos para cá o conceito de condomínio-clube, que não existia. Todos esses nossos empreendimentos são condomínios fechados, com segurança, toda parte de instalações, geradores de energia, reserva de água etc., sempre com foco no público de alta renda ou até um público voltado às petrolíferas”, diz Mattos.

Alguns desses empreendimentos renderam divisas para pessoas do círculo do presidente José Eduardo dos Santos. A Odebrecht construiu para os funcionários da Chevron o condomínio Monte Belo, cujo valor imobiliário ultrapassa US$ 250 milhões, em parceria com a Sakus – Empreendimentos e Participações S.A. Segundo o jornalista investigativo angolano Rafael Marques, a Sakus pertence ao vice-presidente angolano, Manuel Vicente, e é administrada pelo seu enteado.

Enquanto construiu o condomínio Kizomba para funcionários da petroleira Esso, entre 2002 e 2006, a Odebrecht manteve contrato com a empresa de segurança Teleservice, de propriedade de alguns dos mais influentes generais do país – entre eles António dos Santos França N’Dalu, que foi duas vezes vice-ministro da Defesa e é tratado como “general dos generais”, um velho conhecido da empreiteira (leia mais aqui). Segundo Mattos, as casas no condomínio com quadras poliesportivas, piscina e pista de corrida podem chegar até US$ 4 milhões. Outras petroleiras como BP e Maisk têm casas ali, assim como a própria Odebrecht; é onde mora o seu diretor-superintendente.

“As pessoas que conseguiram casas nos condomínios de Luanda Sul são as que trabalham para os bancos, para os ministérios. A doação de habitações tornou-se um importante instrumento de cooptação política”, explica António Tomas, professor da Universidade de Stellenbosch, na África do Sul, e autor de um livro sobre o desenvolvimento urbano de Luanda. Segundo ele, esses condomínios acabaram virando um mecanismo de transferência de dinheiro do Estado para a elite angolana. “As casas em Luanda tornaram-se uma fórmula de enriquecimento. Muitas pessoas que eram membros do partido ou trabalhavam com o governo tinham residências deixadas pelos portugueses no centro da cidade. Quando a Odebrecht começou a construir Talatona e começaram a aparecer esses empreendimentos, muitas ganharam casas do Estado. Então colocaram as suas casas para alugar a preços altamente exorbitantes. As empresas que alugavam esperavam que esse favor abrisse portas”.

O jornalista Rafael Marques ilustra a prática com uma história pessoal. Um dia, estava em um avião e um executivo do ramo petrolífero confessou-lhe: “Estava sentado ao meu lado e embriagou-se; e disse que ele não conseguia perceber por que o apartamento em que ele vivia sozinho, de dois quartos, custava US$ 60 mil por mês. E a multinacional que alugou o seu apartamento, uma multinacional europeia, já tinha pago com dez anos de avanço. Esta multinacional não precisava pagar aos altos funcionários sem justificativa. Podia legalmente apresentar nas contas para auditoria que tinha alugado um apartamento a US$ 60 mil, porque o setor imobiliário é muito caro.”

Esse esquema permitiu, por um lado, o enriquecimento de muitos dos membros do governo e, por outro, tornou-se uma maneira de dar legalidade à corrupção. “Quando uma multinacional aluga uma casa a este valor, está não só a legitimar pagamentos altamente corruptos, mas também a legitimar o branqueamento dos capitais [lavagem de dinheiro], porque depois este indivíduo que pertence ao poder pode retirar seu dinheiro pro exterior com documentos devidamente verificados de que presta um serviço a uma multinacional”, analisa Rafael.

“Eu conheço muita gente que fez a vida através disso”, completa o professor António Tomas. “Mandaram seus filhos para estudar no exterior, fizeram investimentos… Isso é completamente corrupto, mas é uma corrupção altamente formalizada”.

Outras expulsões          

Depois de ter desenvolvido Luanda Sul, a Odebrecht construiu boa parte da Luanda que se vê hoje: a Estrada do Samba, as Vias Expressas, a Estrada do Golfe, a Autoestrada Periférica, a ampliação do Aeroporto 4 de Fevereiro. Alguns desses projetos levaram a mais remoções, como foi o caso da Estrada do Samba; outros ainda vão gerar, como o BRT, Bus Rapid Transport, com 53 quilômetros de extensão, que vai expulsar 7 mil famílias, segundo afirmou o ministro da Construção ao site Rede Angola.

No entanto, o processo mais longo e chocante é a destruição da Chicala, um musseque que desde a época da independência ocupava uma bonita parte da baía de Luanda. As demolições ocorrem há vários anos. Ali, ex-moradores e crianças montam barracas sobre os escombros para vender comida durante o dia. No seu lugar prevê-se a construção de hotéis de luxo e um calçadão com shopping a céu aberto e áreas verdes em frente ao mar.

A Odebrecht participa do projeto com as pontes sobre as valas e ponte do Km 7 – financiada pelo BNDES e concluída em 2012 – e obras de aterro hidráulico, proteção costeira, pavimentação, iluminação pública para Nova Marginal, que ainda não começaram. Mas a construção da Nova Marginal já foi usada como justificativa para a destruição do bairro de pescadores de Areia Branca, em 2013, na zona da Chicala, em uma bonita península diante do Mausoléu de Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola livre.

Mais uma vez, os moradores foram retirados sem nenhum aviso prévio e não receberam indenizações ou uma alternativa sequer, num processo que André Augusto classifica como o mais grave da história da SOS Habitat. “Integrantes da Casa Militar, da Polícia Militar e da administração de Luanda cercaram a comunidade por quatro dias. Não conseguiam sair nem entrar. As pessoas acabaram por perder todos os haveres que tinham no local, estoques de alimento, e começaram a ser perseguidas pela polícia. Esse sofrimento durou quase um mês. A situação abrandou, as pessoas encontraram um lugar por cima das plataformas de drenagem e até hoje estão morando ali, em casas de chapas de zinco”, diz ele. A violência é retratada no depoimento de Rosalina Kassoma, reproduzido neste programa da Rádio Eclésia e no vídeo da SOS Habitat:

Remoção Luanda from Agência Pública on Vimeo.

Até hoje a estrada não foi construída. No lugar do bairro, há alguns barracões militares e um grande vazio de areias brancas.

A Odebrecht participou também da outra face da reformulação de Luanda – e das expulsões massivas: a construção de um gigantesco projeto de moradia popular, o Zango, situado a 40 quilômetros do centro de Luanda. Dentro do Programa de Realojamento das Populações do governo angolano, iniciado em 2002, construiu 13,3 mil casas e 36,3 mil infraestruturas de água e energia elétrica para as unidades habitacionais – uma parte desse esforço recebeu financiamento de US$ 281 milhões do BNDES (saiba mais aqui). Para lá foram levadas mais de 200 mil pessoas, expulsas de diversos bairros centrais, “que se encontravam em situações precárias de vivência, expostas a situações de risco (encostas, valas etc.) ou em áreas de requalificação urbana”, segundo a assessoria de imprensa da Odebrecht.

Em uma breve visita ao Zango 4 com representantes da Odebrecht, em setembro do ano passado, a Pública ouviu dos moradores que as primeiras casas entregues não possuíam piso nem quintal. Mas esse é apenas um dos problemas. Um vídeo filmado em 2013 pela SOS Habitat mostra a situação precária: as ruas eram de terra, as casas não tinham reboco nem janelas suficientes. Os moradores, revoltados, relatam ter sido despejados ali, dez pessoas em cada casa, sem eletricidade nem água.

Moradoras em meio às demolições no bairro da Chicala (Foto: Eliza Capai/Agência Pública)

Em entrevista à Pública, Batista Mendonça, coordenador da Comissão de Moradores do Zango 4, diz que, embora o problema de falta de luz tenha sido razoavelmente sanado para os padrões caluandas – “Às vezes temos luz, às vezes a luz vai, mas mais tarde vem”–, a falta de água ainda é um problema recorrente. “A vida antes foi mais fácil porque as pessoas tavam a trabalhar próximo da cidade. Agora aqui no Zango tá muito difícil. As pessoas acordam aqui 4h para chegar na cidade 6h para trabalhar. Muita gente já perdeu o emprego através desse alojamento”, relata. Ele mesmo perdeu seu trabalho no dia 5 de fevereiro de 2012 – e lembra a data com exatidão. Quando chegou ali, não havia nem mesmo vans, ou “candongueiros”, que se aventurassem até o Zango 4: os moradores tinham de ir a pé até outro conjunto habitacional de onde saíam vans para a cidade. Hoje em dia, os candongueiros cobram até 50% a mais se está chovendo.

Durante a entrevista, o calor se mistura com o cheiro do lixo e as moscas interrompem o raciocínio de Batista. Há pilhas e pilhas de lixo ao lado das casas. “Desde 2012 já tinha uma empresa. Essa empresa não conseguiu recolher o lixo até hoje. Tá muito acumulado”, diz ele. Quando as pilhas estão muito altas, a população rateia um galão de gasolina para atear fogo – uma cena presenciada pela reportagem da Pública em diversos bairros pobres da capital angolana.

Fotógrafo:

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