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Mesmo com a proibição constitucional, órgãos federais têm posição oposta sobre a validade de registrar processos minerários em território indígena. Atualmente, um terço dessas áreas na Amazônia Legal é cobiçado; o Pará é o campeão nacional

Reportagem
20 de junho de 2016
11:59
Este artigo tem mais de 8 ano

Atualmente, mesmo antes de qualquer regulamentação que trate especificamente da mineração em terras indígenas, um quarto delas registra processos minerários no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), autarquia ligada ao Ministério de Minas e Energia (MME), responsável pelas atividades mineradoras do país.

Levantamento da Pública com base em dados do Instituto Socioambiental (ISA) e do DNPM mostra que a mineração, uma atividade que sobrevive do proveito da terra, sobretudo a inexplorada, está cada vez mais atraída pelos territórios indígenas do Brasil. Na Amazônia Legal, por exemplo, região que engloba nove estados, um terço das áreas indígenas tem processos desse tipo, que vão do desejo de explorar ouro, diamante e chumbo a minérios como cassiterita, cobre e estanho. Nessa região, a proporção é de uma terra indígena para cada dez processos minerários. Campeão nacional, o Pará concentra 50% desses processos em TIs já identificadas oficialmente pela Funai.

Em algumas situações, áreas indígenas paraenses estão completamente cobertas pela cobiça da mineração, que, a despeito da recente queda dos preços das commodities, teve uma produção que praticamente dobrou na última década e fora fomentada, principalmente, por empresas como a Vale S.A., uma das maiores do mundo no setor e segunda colocada no ranking das empresas com mais processos minerários em TIs.

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O garimpo suja o Tapajós

Lideranças indígenas falaram sobre a questão durante o último Acampamento Terra Livre, mobilização indígena realizada em Brasília no mês passado. Os depoimentos evidenciam não só a preocupação com a mineração, mas com a invasão de garimpeiros, atividade também proibida a não índios. A invasão de terras indígenas em busca das riquezas naturais do território vem aumentando. Segundo os dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as ocorrências de violência contra o patrimônio dos indígenas subiram de 11 casos registrados em 2003 para 84 casos em 2014: aumento de mais de 600%. Segundo o Cimi, violência contra o patrimônio são invasões de terras indígenas para exploração ilegal de recursos naturais, posse da terra e danos diversos.

Maria Leuza Munduruku, liderança das mulheres Munduruku, conta que o garimpo vem sujando o rio Tapajós na terra Sawré Muybu. “Tem muita gente estranha vindo de outras cidades pra garimpar lá dentro. A gente perde o nosso peixe, e não dá pra comer porque fica muito sujo. A gente acaba não podendo viver como a gente sempre viveu”, denuncia. Na internet, numa rápida pesquisa, é possível achar sites que promovem o garimpo na região Norte. No blog Jornal do Ouro, o anúncio é didático: “Negociação de áreas e garimpos com ouro e diamantes no Tapajós. Quer comprar? Quer vender? Quer parceria?”. O responsável pelo blog, o geólogo Alain Lestra, uma espécie de despachante minerário, é um dos que mantêm interesse minerário na Sawré Muybu com autorização federal. Procurado, ele não retornou o contato.

O caso da Sawré Muybu é mesmo emblemático. Terra delimitada no ocaso da gestão Dilma Rousseff, em abril passado, os 178 mil hectares têm um histórico de longa espera pela demarcação. O relatório de identificação da área estava pronto desde setembro de 2013 e ficou engavetado por questões políticas, como revelou a ex-presidente da Funai Maria Augusta Assirati em entrevista exclusiva à Pública. Segundo o documento, 94 processos minerários incidiam sobre o território, 20 deles requeridos em 2013.

Localizada no município de Itaituba, a 1.300 km da capital Belém, a região sofre com o garimpo ilegal desde a década de 1980. As lideranças Munduruku denunciaram à reportagem em Brasília que a atividade garimpeira seguiria normalmente mesmo com a identificação da terra. Na ocasião, Maria Leuza afirmou esperar uma atitude da Funai. “Tem que mandar umas equipes para tirar essas pessoas que vêm fazendo garimpo ilegal.” Até o fechamento, a Funai não retornou o pedido de esclarecimento.

Atualmente, os processos minerários incidem em mais de 90% do território da Sawré Muybu. Pelo menos 20 desses processos são títulos de atividade minerária, como pesquisa e lavra garimpeira, caso do garimpo de ouro e diamante do geólogo Alain Lestra.

Por se tratar de um assunto espinhoso, é preciso esclarecer que um processo minerário se divide em interesses e títulos minerários. “Interesses” são requerimentos de pesquisa, bem como os de lavra garimpeira, e marcam prioridade do requerente, o que pressupõe uma expectativa de direito. Já os “títulos” abrangem as autorizações ou alvarás de pesquisa, requerimentos de lavra, concessões de lavra e licenciamento, ou seja, constituem direitos individuais concedidos pelo Poder Público.

Confusão sem fim

A mineração em terras indígenas está prevista no artigo 231 da Constituição Federal, mas só pode ser exercida se regulamentada por legislação específica, ainda inexistente. Por isso, qualquer atividade minerária em TIs é ilegal. Durante a apuração da reportagem, no entanto, uma questão gerou confusão entre órgãos federais: o que vai acontecer com os títulos de atividade minerária na recém-identificada Sawré Muybu?

Em uma dúzia de entrevistas com especialistas na questão, o consenso passou longe. Segundo o ex-servidor da Funai Nuno Nunes, que atuou até o ano passado como coordenador de Transporte e Mineração na Coordenação Geral de Licenciamento Ambiental, é preciso que os índios procurem o Ministério Público Federal para denunciar. “O DNPM tem que ser movido judicialmente para suspender essas concessões de lavra”, afirma. Ele esclarece que o sistema de alerta só é automático quando ocorre a homologação da terra, ou seja, quando há a chancela presidencial. “Quando homologa, todos os cartórios da região, todo o sistema burocrático reconhece”, diz. Para ele, a Funai já poderia ter enviado um ofício ao DNPM pedindo a suspensão desses títulos minerários.

Por outro lado, a superintendente substituta do DNPM no Pará, Adriana Pantoja, alega que a terra indígena ainda consta nos mapas da superintendência como delimitada e não identificada, tarefa de atualização que, segundo ela, cabe à sede do órgão, em Brasília.

Em 2014, procuradores do MPF-Pará recomendaram ao DNPM que indeferisse todos os requerimentos de pesquisa e lavra mineral que incidissem em terras indígenas, pela ausência da regulamentação do tema pelo Congresso. A Funai defende a mesma posição ao alegar em nota que a “atividade de mineração em terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, independente da fase do procedimento administrativo, é ilegal”.

Nesse ponto, novamente, os órgãos não se entendem com o DNPM. Falta consenso sobre a legalidade ou não de os títulos minerários incidirem em áreas indígenas, por exemplo, quando é emitida uma autorização de pesquisa.

L.D., servidor do DNPM no Pará, explicou, sob a condição de não ter seu nome revelado, que existem duas correntes de pensamento a respeito da mineração em áreas indígenas. “Uma que diz que é possível”, a qual ele pertence. “E outra que diz que não é possível”, argumenta. Para ele, se alguém requerer dentro de uma área indígena, o pedido deve ser indeferido, justamente por causa da falta de regulamentação. Mas o servidor pondera: “Entendo que o direito de pedir enquanto não se homologou a terra é facultado a qualquer pessoa. Agora, se ele será atendido ou não é outra coisa”, diz.

Um pedido de processo mineral, seja um título ou interesse, garante ao requerente a prioridade sobre a mineração na TI, o que poderá se transformar em lucro caso a regulamentação seja aprovada no Congresso. Além disso, nessa circunstância, o título pode ser especulado em bolsas de valores. “Isso é mercado futuro, de commodities. Com um título desses, o cara consegue especular na Bolsa de Chicago, que negocia o futuro”, diz Nuno Nunes.

“Olho grande” do PL 1.610/96

“Vai sobrar o que agora?”, pergunta Mário Nicácio, índio do povo Wapichana, e coordenador-geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), que se diz preocupado com o PL 1.610/1996, que pretende regulamentar a mineração em terras indígenas.

O autor do PL, o senador Romero Jucá (PMDB), já foi presidente da Funai no governo José Sarney (1985-1990) e ex-governador biônico de Roraima. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), enquanto era presidente da Funai (1986-1988), Jucá estimulou a invasão garimpeira em terras dos Yanomami, o que o relatório classificou como “caso mais flagrante de apoio do poder público à invasão garimpeira”. Em maio, Jucá foi o primeiro ministro do governo interino de Michel Temer a cair após ser pego em um grampo da Operação Lava Jato.

Atualmente, o PL 1.610 tramita em regime de prioridade na Câmara e precisa ser aprovado pelas comissões de mérito da Casa para ir à sanção presidencial, sem passar pelo plenário. A única pendência é que o conteúdo seja analisado por uma comissão especial eleita em junho do ano passado, presidida pelo deputado Índio da Costa (PSD-RJ), mas nenhuma deliberação foi realizada até o momento. O relator da matéria, Édio Lopes (PR), integra a Frente Parlamentar Agropecuária, declaradamente anti-indígena.

Em caso de sanção do PL 1.610, a mineração passaria a ser legal nas terras indígenas mediante consulta e o repasse de uma porcentagem dos lucros aos índios. No entanto, o movimento indígena vê o PL com preocupação. “Temos grande preocupação com esse PL 1.610. A gente acha que ele vem mais para entender os interesses dos empresários que querem fazer mineração nas terras do que dos povos indígenas”, avalia Sônia Guajajara, coordenadora geral da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “O direito de exploração mineral não quer dizer a obrigação. Não estamos tirando nenhum direito dos índios, e sim ampliando. Os que quiserem autorizar a exploração em suas terras terão suas terras exploradas”, afirmou Índio da Costa à época de sua eleição para a presidência da comissão. Procurado, o deputado não retornou os contatos.

Márcio Santilli, do Instituto Socioambiental (ISA), afirma que o projeto vem na esteira da chamada “reprimarização” da economia brasileira, sobretudo nas exportações. Em linha gerais, o que ele quer dizer é que nos últimos anos a economia tem passado a depender mais da exploração de commodities, como o minério de ferro e outros. “Esse quadro vem implicando um fortalecimento de setores da sociedade e da economia que têm uma maior contradição com a destinação de terras para fins socioambientais, como as terras indígenas. E está muito ligado a esses projetos que voltaram à tona no Congresso Nacional”, analisa, referindo-se também a outros atos legislativos que afetam a pauta indígena, como a PEC 215, que transfere ao Congresso a decisão final sobre a demarcação das TIs.

O movimento indigenista defende que a regulamentação da mineração em TIs seja apreciada com o Estatuto das Sociedades Indígenas (PL 2.057/1991), já aprovado em comissão especial em 1994 e parado desde então na Câmara Federal.

Diante da indefinição da pauta, vários indígenas continuam apreensivos. “Eles sabem que as nossas reservas têm riqueza. Que é a madeira, o ouro, o sal, o ferro. É por causa disso que eles têm o olho muito grande sobre as terras indígenas da Amazônia. Onde tem terra indígena tem floresta, tem riqueza. Como é que vão ficar nossas terras se as empresas entrarem ainda mais? Vão terminar de destruir tudo de vez”, desabafa Antônio Pereira, do povo Munduruku Cara Preta, do Pará.

Davi Kopenawa, uma das maiores lideranças dos Yanomami, avaliou num manifesto lançado em 2014 que a mineração não é como o garimpo. “A mineração precisa de estradas para transportar os minérios, precisa de grandes áreas para guardar a produção, precisa de locais para alojar os funcionários, o que fará grandes buracos na terra, e não deixarão a nossa floresta voltar a se recuperar”, escreveu. “Quando os minérios mais valiosos terminarem e as mineradoras forem embora, o que acontecerá com os trabalhadores que foram até a terra indígena? Quando transformarem e produzirem minério, quais são os resíduos que podem contaminar nossa terra por muito tempo?”

Garimpo: a maldição dos Yanomami

Um estudo publicado no início do ano pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) revelou que algumas aldeias Yanomami de Roraima chegam a ter 92% das pessoas examinadas contaminadas por mercúrio, usado na mineração do ouro, o que pode acarretar, entre outras enfermidades, doenças cardíacas e neuromotoras. Segundo o ISA, estima-se que 5 mil garimpeiros atuem nessa TI, que sofre há décadas com a invasão de suas terras.

“Todo ano a polícia vai, retira e destrói o garimpo. Mas chega no outro ano está tudo lá de novo. O garimpo está atrapalhando muito o desenvolvimento da comunidade. Há um sério risco de vida daquela população”, afirmou Mário Nicácio, índio do povo Wapichana. “É preciso agora descobrir quem está financiando esse garimpo para acabar com essa onda de invasões”, sugere.

O problema não é novo. Entre 1986 e 1990, ao menos 20% da população morreu em função de doenças e violências causadas por 45 mil garimpeiros. Nos anos 1990, no episódio chamado de Massacre de Haximu, o primeiro caso julgado pela Justiça brasileira no qual os réus foram condenados por genocídio, garimpeiros invadiram uma aldeia Yanomami e assassinaram a tiros e golpes de facão 16 indígenas, entre eles idosos, mulheres e crianças. Atualmente, Roraima tem interesses minerários em terras indígenas que cobrem toda a extensão das terras Araçá, Barata/Livramento e Boqueirão.

Fotógrafo:

Fontes consultadas para os dados dos infográficos e reportagem: Instituto Socioambiental (ISA); Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM); Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE); Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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