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Três homens presos pelo mesmo crime. Pelo menos duas vidas destruídas por falhas e descaso que vão da investigação policial à condenação judicial

Reportagem
11 de agosto de 2016
13:27
Este artigo tem mais de 7 ano

29 de março de 2012. C. D. F. reduz a marcha do carro, prestes a ganhar acesso à rotatória localizada entre as ruas Francisco Deslandes e Vitório Marçola, bairro Anchieta, região centro-sul de Belo Horizonte. Saiu de casa rumo ao trabalho, mas naquela manhã o destino seria outro. Literalmente.

Seu olhar percorre uma banca de jornal próxima e imediatamente o tempo volta para junho de 1997. Reconheceu a magreza, a pele morena, o olhar, as sobrancelhas marcantes e o bigode negro. Seu coração quis sair do peito. Ligou para o pai, enquanto se concentrava na direção. “Você tem certeza, filha?”, indagou assustado. A moça seguiu Pedro Meyer Ferreira Guimarães até ele entrar em um prédio. Estacionou o carro por perto e, chorando sobre o volante, aguardou.

A partir daquele momento, duas longas injustiças do Poder Judiciário de Minas Gerais seriam reconhecidas.

18 de agosto de 1995. O artista plástico Eugênio Fiúza de Queiroz, 45 anos, caminhava com uma mulher em uma praça do bairro Colégio Batista, nordeste da cidade. Por volta das 19h30 foi abordado e intimado por dois homens, policiais à paisana, que investigavam, entre outros tantos, um caso de estupro ocorrido na noite anterior naquela região. As características físicas de Eugênio batiam com as que estavam procurando. Moreno, ele trajava calça jeans, uma blusa social de manga longa e usava um bigode grosso. Eugênio não deu muita importância e, antes de partir, disse à namorada para o esperar por ali, já que retornaria em breve. Só viveria outra noite em liberdade 17 anos depois.

1º de abril de 1997. O porteiro Paulo Antônio da Silva, 51 anos, faz um aceno de bom-dia para o morador que entra pela garagem do prédio na rua Bernardino Sena Figueiredo, bairro Cidade Nova, nordeste de Belo Horizonte. Eram 7h, o final do seu turno de serviço. Penteou os cabelos e o bigode e bateu seu cartão de ponto. Já na rua, viu que de dentro de uma viatura de polícia saíam dois policiais civis que o intimaram a acompanhá-los para uma averiguação. Foi informado de que seria detido para investigação sobre um caso de estupro ocorrido em janeiro daquele ano, a três quarteirões de distância do local em que trabalhava. Simplório, venceu a vergonha pela ignorância e emendou: “Desculpa, mas o que significa a palavra ‘estupro’, doutor?”.

Em busca de um culpado

Pelo menos 15 casos de estupro foram denunciados à Polícia Civil ao longo dos anos 1990, envolvendo mulheres entre 8 e 19 anos residentes do bairro Cidade Nova, em Belo Horizonte. As respostas só chegariam com 17 anos de atraso, vindas de outro local da cidade, o bairro Anchieta.

As vítimas apresentavam as mesmas características: crianças e adolescentes brancas, encontradas brincando perto de casa ou nas portarias de seus prédios. Eram abordadas despretensiosamente pelo ofensor, que ganhava a atenção delas com perguntas triviais. Quando decidia atacar dentro dos prédios, esperava até que alguém deixasse alguma brecha para entrar ou convencia as próprias garotas a abrir o portão. Elas então eram ameaçadas e levadas às escadas de incêndio ou garagens, onde os estupros ocorriam sob a mira de um revólver. Ao final, o estuprador tinha o hábito de perguntar a algumas delas se haviam gostado do abuso e fugir correndo.

Paulo, Pedro e Eugênio à época dos crimes (Foto Divulgação Polícia Civil & Luiz Guilherme de Almeida)
Paulo, Pedro e Eugênio à época dos crimes (Foto Divulgação Polícia Civil & Luiz Guilherme de Almeida)

Além de vítimas e circunstâncias semelhantes em que se davam os ataques, os relatos apontavam para um mesmo homem. Vestia calça jeans, camisa de malha ou social manga longa, bonés e óculos Ray-Ban estilo aviador. Os cabelos lisos e o bigode cheio chamavam atenção, assim como o queixo afunilado e as maçãs do rosto. Tinha porte físico médio, 1,70 metro de altura, magro e moreno.

Uma série de erros com terríveis consequências na vida do artista plástico Eugênio e do porteiro Paulo Antônio se iniciaria ali.

Dois homens condenados pelo mesmo crime

As características físicas de Eugênio, o primeiro dos dois a ser detido sob a suspeita de ser o estuprador em série, coincidiam com as descritas pelas vítimas sobre o agressor. Nos primeiros 19 dias de detenção na Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher, ele foi reconhecido por oito vítimas acionadas pela equipe de investigação para o processo de reconhecimento, tornando-se o único indiciado nos oito casos de estupros sem autoria esclarecida que estavam sendo apurados pela delegacia. Eugênio sempre alegou inocência. Contra ele, nenhuma prova técnica ou científica fora recolhida. Sua semelhança física com o criminoso e o reconhecimento feito pelas vítimas foram o suficiente para jogá-lo na prisão.

A polícia comemorava enfim a resposta ao clamor da sociedade belo-horizontina. O estuprador havia sido identificado e preso, rapidamente julgado e condenado por cinco acusações a uma pena somada de 37 anos em regime fechado.

Mas os estupros continuaram ocorrendo mesmo com Eugênio preso. E o mais inquietante: na mesma região, com idêntico modus operandi e perfil do agressor descrito pelas vítimas anteriormente. Quase dois anos depois, a Polícia Civil prenderia outro homem, que também se declarava inocente da mesma acusação de estupro.

Ironicamente, Paulo foi detido no dia da mentira. Foi levado à mesma Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher e informado de que era suspeito de ter estuprado uma jovem em 26 de janeiro de 1997, a três quarteirões de onde fora preso pela polícia. Tal como Eugênio, ele preenchia todos os detalhes físicos do então agressor. Paulo imediatamente alegou inocência e apresentou um álibi forte: naquela data, realmente estava nas proximidades do crime, mas trabalhava normalmente, com seu ponto batido e depoimentos dos moradores do prédio para comprovar.

Mesmo assim ele passou a noite na cadeia e só foi liberado pela manhã. Às 14h, porém, a polícia estava na porta de sua casa, agora para prendê-lo oficialmente. Na delegacia, foi reconhecido pela vítima. Enquanto permanecia detido, outras três com casos em aberto entre 1994 e 1997 foram acionadas para fazer o reconhecimento.

Como acontecera dois anos antes com Eugênio, não havia sequer uma prova material ou científica contra Paulo, apenas o reconhecimento. Ele foi julgado por duas acusações e condenado a 16 anos de reclusão em regime fechado.

O lapso temporal é de 15 anos…

A vítima e o carrasco

C.D.F. enxugou as lágrimas. O destino a colocava novamente diante do homem que a violentara. Cada detalhe daquele rosto, cada fragmento do horror seguiam vivos em sua memória. Sentiu outra vez o odor da escadaria para onde fora arrastada. Lembrou-se da sensação do chão gelado nas costas enquanto era obrigada pelo homem a despir-se e a deitar-se. Para uma vítima de crime sexual, nada jamais se apaga.

Sua coragem em reviver o passado foi fundamental. Seu pai reestabeleceu os contatos com a polícia, que chegou até o endereço no bairro Anchieta e deteve o ex-bancário Pedro Meyer Ferreira Guimarães.

Com a repercussão da prisão, outras 15 mulheres procuraram espontaneamente a Polícia Civil nas semanas seguintes e também o reconheceram como sendo o homem que as estuprara anos atrás. Entre elas, cinco das que haviam reconhecido há 15 anos tanto Eugênio (quatro) quanto Paulo (uma) afirmavam agora, convictas, que o estuprador era Pedro, não eles, e exigiram mudar oficialmente seus depoimentos. Tal circunstância uniria de vez os casos, e os questionamentos foram inevitáveis.

As muitas peças de um intrincado caso renasceram. Evidenciariam um estranho universo de falhas de investigação, inconsistências e condutas questionáveis de todas as partes envolvidas, que conduziram o Poder Judiciário de Minas Gerais a condenar dois homens inocentes pelos mesmos crimes, sem maiores provas. Longe dali, idosos e ainda cumprindo as respectivas penas, Eugênio e Paulo nem imaginavam que, com um atraso cruel, havia chegado a hora pela qual esperavam.

Anatomia das injustiças

A prisão de Pedro Meyer foi primordial para que o caso do “Maníaco do Anchieta”– como ficou conhecido devido ao local de sua prisão – fosse reaberto. Até lá, dois homens condenados pelo mesmo crime, alegando inocência, permaneciam presos.

Desde o início a Polícia Civil tinha conhecimento da situação, já que as investigações e prisões tanto de Eugênio quanto de Paulo foram conduzidas pela mesma Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher. Dada a ampla repercussão que o caso adquiriu desde que o primeiro “maníaco” foi detido, esperava-se que a polícia fizesse a possível ligação entre os casos. Os indiciamentos ocorreram sem que a remota correlação fosse estabelecida entre eles. A reportagem da Pública apurou que, entre os anos de 1995 e 1998, o efetivo da Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher não sofreu maiores reformulações em seu quadro, o que reforça a possibilidade de que as mesmas equipes tenham trabalhado nos dois inquéritos.

A prisão do ex-bancário reabriu o campo para os questionamentos, revelando irregularidades cometidas contra Eugênio e Paulo durante o processo que os jogou injustamente na prisão. Finalmente os advogados de defesa de ambos conseguiram ligar os três casos, revelando a injustiça sofrida por seus clientes.

Eugênio Fiúza de Queiroz: 18 anos de prisão

Em 18 de agosto de 1995, Eugênio foi interrogado e mantido sob custódia. A menor F. F. S., de 12 anos, que havia sido estuprada na noite anterior, chegou até o local na companhia do pai e a colega U. C. D. (de 11 anos), também presente no ataque. Ambas fizeram um primeiro reconhecimento, informal, em que confirmaram tratar-se do agressor. Esse primeiro procedimento foi realizado sem Eugênio ter sido detido em flagrante delito ou ter sido expedido um mandato de prisão, o que ocorreria só no dia 21 de agosto, três dias após sua detenção – isso feriu ilegalmente os seus direitos.

Ainda na fase de reconhecimento, chama atenção o fato de que, de acordo com o alegado posteriormente pela defesa de Eugênio e constatado por meio da documentação obtida pela reportagem da Pública (veja aqui e aqui), em nenhum momento dos autos de reconhecimento estão descritos maiores detalhes dos procedimentos, como os nomes dos outros homens que participaram no processo legal, situação prevista pelo art. 226 do Código de Processo Penal brasileiro.

(Foto: Defensoria Pública de Minas Gerais/Divulgação)
Eugênio Fiúza de Queiroz ficou 18 anos preso por crimes que não cometeu (Foto: Defensoria Pública de Minas Gerais/Divulgação)

Ouvido pela Pública em 5 de abril de 2016, o defensor público Wilson Hallack traçou o panorama do que encontrou assim que se tornou legalmente responsável pelo caso de Eugênio, em 2014.

“Para que sejam definitivas a produção de tais provas, no inquérito policial, há de observar com rigor as formalidades legais […]. O Eugênio foi colocado para ser reconhecido por um crime hediondo sem que outros nomes tivessem sido arrolados para tal. O cenário todo corroborou à indução das vítimas. Ser parecido com o real autor não poderia ser o único tocante do processo.”

Em 1995, a Polícia Civil de Minas Gerais ainda não detinha a tecnologia do exame de DNA para investigações criminais. A prova do reconhecimento foi, então, replicada da mesma maneira nos oito casos que a delegacia investigava e que seguiam sem autoria conhecida. À época, a defesa chegou a cogitar a hipótese de uma eventual “armação” da Polícia Civil para que, enfim, incriminasse alguém como responsável pelos crimes. Tal tese nunca fora comprovada.

Entretanto, a reportagem da Pública apurou nos autos que, de fato, existiram incoerências relevantes com relação à ação da equipe da Polícia Civil que investigou Eugênio. A começar pelo fato de que a então delegada responsável, Cláudia Regina Campos de Araújo, confirmou em depoimento que houve um reconhecimento preliminar de Eugênio em outra delegacia, antes de expedido o mandado de prisão. Ademais, a policial afirmou que não havia em sua equipe nenhum inspetor chamado “Denilson”, supostamente responsável por prender e conduzir o reconhecimento de Eugênio. Entretanto, em resposta a um ofício de juízo em 1999, a Corregedoria-Geral de Polícia ratifica que tal policial esteve presente nas ações envolvendo Eugênio. O inspetor aparece também posteriormente no processo, interrogado acerca das suspeitas de maus-tratos contra Eugênio e sobre a suposta “trama” para incriminá-lo. Ouvido, o depoimento do outrora inexistente policial foi considerado “evasivo” pela defesa, que alegou uma tentativa de “proteger” a corporação e desviar as suspeitas de “armação”. O nome de Laudelino José de Freitas também aparece na resposta da Corregedoria, confirmando que ele participara da prisão e investigação de Eugênio. Laudelino seria supostamente tio da menor estuprada, o que foi desmentido por ela em depoimento. Os outros policiais envolvidos na prisão de Eugênio também negaram conhecer tal homem (ver aqui e aqui), o que viria a ser comprovado como falso. Contatada pela reportagem, a atual Superintendência de Investigações e Polícia Judiciária da Polícia Civil não atendeu às solicitações de entrevista.

A reportagem da Pública apurou que outras seis jovens, com idade entre 12 e 17 anos, denunciaram estupros à Delegacia Especializada entre o final de 1995 e 1998, data em que Eugênio já se encontrava encarcerado. Estranhamente, algumas dessas acusações chegaram a ser imputadas a ele, que chegou a ser transferido de penitenciária, já que, à época, se suspeitou que ele estivesse saindo da cadeia de segurança máxima para praticar os crimes.

Para o defensor Wilson Hallak, a Justiça brasileira falha como um todo: “Se tiver que ser feito o certo, investigar de maneira adequada, vai demorar demais. Tudo hoje é para acelerar, dar fim a qualquer custo. É comum ver processos fundamentados em provas falhas e mesmo assim o Ministério Público sustentando uma condenação. Acabam atropelando regramentos que nossa lei traz e até obviedades que estão ali no processo”, conclui o defensor.

As inconsistências presentes nos processos de investigação de Eugênio só recobraram força 17 anos depois, graças à prisão de Pedro Meyer, em 2012. O fato de vítimas que o apontaram “sem qualquer sombra de dúvida” como seu agressor mudarem seus depoimentos por si só reforça o caráter vacilante das investigações à época dos fatos, bem como as brechas possibilitadas pela utilização tão somente de prova testemunhal em casos como esse, marcado por coincidências e detalhes singulares.

Paulo Antônio da Silva: mais um inocente condenado

Em 2 de abril de 1997, a polícia levou quatro vítimas para que fosse feito o processo de reconhecimento. No dia 4, J. M. Q., à época com 19 anos, não reconheceu Paulo como o seu agressor. Já P. G. de M., de 15 anos, ressaltou que ela não tinha convicção de que ele era o autor do fato. Paulo acabaria denunciado, mas absolvido mais adiante. Restavam o reconhecimento positivo de C. B. C. e R. U. B.

Embora a primeira delas tenha formalmente reconhecido Paulo como autor do crime, confirmando o reconhecimento em juízo, a garota, então com 11 anos, o fez com certa hesitação. Já haviam se passado três anos do ataque. Conforme relatado por A. M. F., testemunha do reconhecimento, “houve certa indecisão por parte de uma vítima menor”. Outros detalhes importantes colocavam a acusação em xeque, mas, por tramitarem em segredo de justiça, não puderam ser anexados.

(Foto: Divulgação)
Paulo Antônio da Silva necessita de uma bengala para caminhar (Foto: Divulgação)

Em nenhum dos casos atribuídos a Paulo foi contraposto o fato de que ele é portador de uma deficiência na perna esquerda, o que o impossibilita de caminhar com o mínimo de estabilidade sem o auxílio de uma bengala. Nos autos, a defesa apresentou provas de que em 1987 o porteiro sofreu um acidente com soda cáustica que o deixou debilitado permanentemente. A tal detalhe não foi dada maior relevância ao longo de todo o processo criminal.

Tanto as vítimas quanto as poucas testemunhas que viram o estuprador afirmaram que, depois dos ataques, era comum ele fugir correndo sem dificuldade. A testemunha S. F. G., empregada da família de C. B. C. à época, viu o homem fugir da janela do apartamento e manifestou-se assim em juízo sobre seu depoimento à polícia, quando chamada a reconhecer Paulo: “[…] acrescentando por vontade própria que o reconhecido não mancava, ‘eu falei isso lá e eles não puseram’; que a depoente deixa claro que, quando correu ao ser visto pela janela, o homem não mancava, mas no auto de reconhecimento, já mancava; percebendo isto a depoente quando o reconhecido era movimentado ou se movimentava no ato de reconhecimento” (ver aqui).

Ainda durante as fases da investigação, outro detalhe causou estranheza à defesa de Paulo. Antes da sua detenção, um retrato falado do suspeito dos crimes já circulava pelas delegacias de Belo Horizonte; aliás, havia um bom tempo. Ele fora confeccionado em 1995, nas investigações que acabaram condenando Eugênio. Dois anos depois, o mesmo retrato falado seria inicialmente apresentado às vítimas atribuídas a Paulo.

Ao usar o mesmo retrato falado das investigações de Eugênio, em 1995, nas de Paulo, em 1997, caía por terra, então, a hipótese de que a correlação entre os dois casos não pudesse ter sido feita à época. Como alguém já preso, tal qual o indivíduo descrito no retrato de 1995, estaria outra vez cometendo os mesmos crimes em 1997?

Entrevistada pela Pública, a atual chefe da Seção Técnica de Biologia e Bacteriologia Legal do Instituto de Criminalística da Polícia Civil de Minas Gerais, Mônica Cardoso, esclarece que somente ao final de 1998, um ano após o caso de Paulo, é que a unidade passou a realizar exames de genética forense. “Ao final de 1998 a gente passou a receber as primeiras demandas e liberar os primeiros laudos de DNA. Anterior a isso não era prática comum em Minas Gerais. […] os casos de violência sexual eram tratados simplesmente pelo exame de tipagem sanguínea ABO”.

(Foto: Reprodução/O Tempo)
Paulo Antônio da Silva também foi condenado injustamente pelos crimes cometidos por Pedro Meyer (Foto: Reprodução/O Tempo)

Em 30 de julho de 1997, um novo caso de estupro foi registrado, no bairro Cidade Nova, nas mesmas condições já conhecidas. Paulo estava detido na Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher havia três meses. Mais uma vez, o novo episódio não alertou a investigação a ligar os fatos. Procurada pela Pública para comentar por que não relacionou os casos à época, a Superintendência de Investigações e Polícia Judiciária da Polícia Civil não atendeu às solicitações de entrevista.

Paulo teria sua última chance. Em entrevista à Pública, ele conta que “dona C.”, moradora do prédio em que trabalhava, foi à Delegacia de Mulheres visitá-lo e depor. “Lá ela me confirmou que falou para eles que, no horário do fato ocorrido, no dia 26 de janeiro de 1997, ela e os filhos J. P., L. e V. L. estiveram na portaria do prédio comigo. Conversamos todos, eles voltavam de uma festa. Ela confirmou que eu estava trabalhando normalmente, mas não adiantou nada.” Procurada pela reportagem, a senhora não respondeu às tentativas de contato.

Sem seu principal álibi, Paulo Antônio da Silva seria condenado pelo Judiciário, em setembro de 1997, pelos crimes contra C. B. C, com 8 anos de idade, em 21 de julho de 1994, e R. U. B., 11 anos, em 26 de janeiro de 1997, a 16 anos de prisão, sem que nenhuma prova técnica fosse apresentada contra ele. Seu caso ganharia novos contornos apenas em 2012, quando uma mulher de 27 anos dirigia pelo bairro Anchieta.

Pedro Meyer: preso em 2012

Até ser reconhecido em 29 de março de 2012, Pedro Meyer levava uma vida normal. Morava com a mãe e caminhava pelas ruas do bairro Anchieta toda manhã. Detido pela polícia em seu prédio, Pedro completava 56 anos naquele dia. Posteriormente, um mandado de busca em sua residência permitiu à polícia apreender diversos bonés, óculos e roupas de características similares às que as vítimas do passado atribuíam ao então ofensor.

Dada a repercussão, Pedro seria reconhecido por 16 mulheres ao longo das primeiras semanas. Elas se apresentaram de maneira espontânea à delegacia, dispostas a fazer um novo reconhecimento. Só não contavam com o fato de que, passadas quase duas décadas desde os ataques, muitos dos casos já estavam prescritos por lei. Assim, apenas duas denúncias foram reabertas, sendo uma delas a de C. D. F. Havia um detalhe.

(Foto: Divulgação)
Em carta, vítima relatava o abuso e chega a citar o nome “Pedro” (Foto: Divulgação)

Segundo as investigações à época e os autos – que passaram a segredo de justiça –, na tarde do crime, a vítima perguntou ao homem o seu nome. Ele, talvez por acreditar que sairia impune, disse: Pedro. Durante as investigações, a jovem então redigiu uma carta (veja aqui e aqui), posteriormente entregue à polícia, em que relatava minuciosamente tudo o que acontecera. Em alguns trechos mencionou o nome “Pedro” como o do homem que a estuprara. Entretanto, o caso parou ali.

Em entrevista concedida à Pública, Lucas Laire, advogado de Pedro, acredita que novamente o clamor social e a intensa exploração midiática do caso contribuíram para que seu cliente fosse considerado culpado sumariamente, com base apenas no reconhecimento das vítimas. Questionado sobre o fato de que 16 mulheres o tinham reconhecido como o homem que as estuprou, Laire apresentou sua versão: “No crime de estupro a palavra da vítima tem peso maior. Ele havia sido reconhecido sumariamente, pelo clamor social do caso. O fato das mulheres irem à delegacia e fazerem isso de forma oficial foi mera formalidade. Elas já iam lá sabendo quem era, o que dizer, quem apontar. Apareceram casos já prescritos e outros sem qualquer materialidade”.

Entre as mulheres que estiveram espontaneamente na delegacia, quatro delas seriam fundamentais para os novos contornos da história: as primas M. C. R. C., M. R. C. e L. R. C. e R. U. B. As três primeiras, em 1996, reconheceram Eugênio Fiúza de Queiroz “sem sombra de dúvidas”. Já a última havia reconhecido Paulo Antônio da Silva em 1997.

Por meio de seu advogado, Pedro alega ser vítima de outro erro judicial por falta de provas objetivas.

“O Pedro nunca confessou o delito pelo qual foi condenado, muito menos os outros que já estavam prescritos. Em juízo, ele não confessou nenhum. Prova é aquilo feito sob o contraditório e ampla defesa na fase judicial. Cabia ao inquérito colher indícios de autoria e materialidade, o que não houve”, afirma Lucas Laire.

Pedro seria então submetido ao exame de DNA. Entretanto, em outro episódio falho, o Judiciário seria novamente questionado. A família de C. D. F. havia fornecido às investigações uma peça de roupa íntima usada pela menina no dia do crime. Sem que o DNA pudesse ser feito em 1997, a peça foi enviada pela polícia ao Fórum Lafayette, em Belo Horizonte, como parte do inquérito arquivado.

De maneira inexplicável, a peça desapareceu do arquivo ao longo dos anos e não pôde ser usada, episódio confirmado à imprensa pela delegada Margareth Rocha e pelo advogado de Pedro à Pública. “A família levou a prova, apreendida pela Polícia Civil e anexada ao processo dela. Daí o Estado, e falo de polícia e Poder Judiciário, simplesmente perde uma prova cabal, que serviria para inocentar ou condenar alguém. Não houve responsabilização de agente público algum”, rebateu Lucas Laire.

(Foto: Divulgação)
Em 2012, Pedro Meyer, o verdadeiro Maníaco do Anchieta, foi preso (Foto: Divulgação)

Um laudo de sanidade mental foi solicitado ao Instituto de Criminalística da Polícia Civil em 31 de maio de 2012 para apurar a possível inimputabilidade de Pedro diante das acusações. Em outra falha do caso, o que legalmente não levaria mais de 120 dias para ficar pronto demorou 328 dias. A ausência do laudo congelou o prosseguimento do caso, uma vez que, quando solicitado, o exame de sanidade mental interrompe a fase de instrução criminal em uma investigação até que seja liberado, inviabilizando a oitiva de testemunhas ou a discussão de provas.

“Essas perícias se arrastaram por quase um ano, culpa única e exclusiva do Estado. Um dia não conseguiam transporte para levar o Pedro ao local do exame, no outro alegavam não haver profissional disponível para a realização. Ficou nesse jogo de empurra”, afirmou Lucas Laire à Pública. Á época, o Instituto de Criminalística da Polícia Civil não apresentou uma razão oficial para a demora. Enfim expedido, o laudo afastou a possibilidade de que Pedro fosse inimputável, confirmando que ele tinha total discernimento dos atos e capacidade para cometer os crimes.

No dia 2 de agosto de 2013, Pedro foi condenado pelo estupro de C. D. F. a treze anos e quatro meses de prisão em regime fechado, além de indenização em R$ 150 mil. Posteriormente, a defesa conseguiria a redução da pena para nove anos e onze meses e o cancelamento da indenização.

“A família não quis recorrer. Nós também nos demos por satisfeitos com o tamanho da pena”, finalizou Lucas Laire. Pedro atualmente cumpre pena na Penitenciária Nelson Hungria, no município de Contagem. O advogado informou à reportagem que não tem interesse em se manifestar publicamente sobre o caso.

Novas provas, erros antigos

Eugênio e sua defesa tentaram, sem sucesso, diversos recursos para que os casos fossem reabertos. Era preciso uma prova nova. Ele chegaria até a Defensoria Pública de Minas Gerais em 2014, que assumiria o caso. De imediato, conseguiram a revisão dos casos, em um processo previsto no Art. 621, inciso III, do Código de Processo Penal, conhecido como revisão criminal.

“A mudança no reconhecimento das vítimas constituía o surgimento de provas novas, a Defensoria Pública imediatamente deu início ao processo de revisão do Eugênio. Vimos totais condições de êxito na ação dele”, é o que explica à Pública o defensor público responsável pelo caso, Wilson Hallack, titular da 3ª Vara Criminal de Belo Horizonte.

A Defensoria ingressou com o pedido de revisão criminal das cinco condenações. Em um ano, o caso progrediu. Antes mesmo que as ações fossem julgadas, uma liminar permitiu que Eugênio aguardasse o julgamento em liberdade e sem a obrigatoriedade do uso da tornozeleira eletrônica. Ao final de 2015, ele obteve decisão favorável no terceiro dos seus cinco processos de revisão. Os outros dois, até o fechamento desta reportagem, ainda tramitam na 3ª e na 5ª Vara Criminal de Belo Horizonte, respectivamente. Depois de ter cumprido 18 anos de prisão (17 em regime fechado), Eugênio foi judicialmente inocentado e absolvido dos crimes que o condenaram injustamente a uma pena de 37 anos.

Paulo já cumpria pena em regime condicional, o que não atenuava os cinco anos, sete meses e dezenove dias que passou na cadeia injustamente.

“A prisão do Pedro e a mudança no reconhecimento da vítima foram as provas exigidas ao pedido de revisão criminal do Paulo. Sem elas, ele cumpriria pena até hoje, assim como o sr. Eugênio. Ele nunca teve a menor condição física, mental e psicológica de estuprar quem quer que fosse, quiçá duas crianças. É que prendendo-os, calava-se o clamor social. A satisfação dada à sociedade. Vimos que o erro judicial era evidente”, ratifica à Pública o advogado Eduardo dos Santos, que atualmente acompanha o caso de Paulo.

O mesmo retrato falado foi utilizado para prender Eugênio e Paulo, embora os dois eventos tenham acontecido com mais de anos de diferença
O mesmo retrato falado foi utilizado para prender Eugênio e Paulo

A revisão foi julgada no dia 26 de março de 2013 pelo 1º Grupo de Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. A decisão dos 12 desembargadores foi procedente. Paulo Antônio da Silva era, enfim, declarado inocente dos crimes que o condenaram em 1997.

Por quase 20 anos, a atuação da Polícia Civil no caso gerou questionamentos, fossem com relação às investigações ou às possíveis inconsistências que foram emergindo ao longo do tempo. Mais do que a qualidade dos agentes, questionava-se a qualidade das investigações, e, conforme apurado pela reportagem da Pública, tal aspecto esteve intimamente relacionado aos problemas de efetivo e infraestrutura que persistem na corporação até hoje.

O problema da infraestrutura na Polícia Civil à época dos casos foi reconhecido em entrevista pelo então delegado da Superintendência de Investigações e Polícia Judiciária, Márcio Lobato. “Passávamos por um quadro de relativas dificuldades no que se refere ao efetivo. Hoje são aproximadamente 9,6 mil agentes, enquanto estudos apontam para a necessidade de pelo menos 17 mil. Naquela época, trabalhávamos com efetivo do início dos anos 1980”.

Atualmente, o movimento “Por Mais Vagas”, ação interna da própria Polícia Civil, reforça que Minas Gerais ainda apresenta um déficit considerável em seu efetivo, acarretando consequências aos resultados que se espera da corporação.

“A Lei Complementar 129 de 2013 prevê um efetivo para o quadro completo da corporação de 17.517, sendo que 11.301 vagas são para o cargo de Investigador de Polícia. Números de 2015 nos mostram que temos atualmente ativos 5.718 Investigadores II (déficit de 2.149 vagas) e não há nenhum Investigador de Polícia I (déficit de 3.434 vagas), ou seja, um déficit de 5.583 vagas. Essa diferença de efetivo tem impactos diretos no trabalho da Polícia Civil como um todo”, é o que afirma a pauta que rege o movimento.

Conforme recente análise publicada pelo jornal O Tempo, com dados da Pesquisa de Informações Básicas Estaduais (Estadic), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2015, além de a corporação mineira ter o menor efetivo por habitante da região Sudeste, a infraestrutura também é precária. Segundo o levantamento, em Minas há um policial civil para cada 2.113 habitantes. Em São Paulo, 1.353 para cada investigador, enquanto no Rio de Janeiro, 1.546. Somado ao menor efetivo do Sudeste, Minas é também o estado com o maior número de municípios sem delegacia. O percentual de cidades mineiras com ao menos uma unidade da Polícia Civil não ultrapassa 60%. Na prática, dos 853 municípios de Minas, 312 não contam com delegacias.

Contatada pela reportagem da Pública, a Superintendência de Investigações e Polícia Judiciária da Polícia Civil não respondeu às solicitações de entrevista.

Quanto à conduta do Judiciário do Estado, a hipótese de erro demorou a ser aceita. O então procurador de Justiça José Ronald Vasconcelos Albergaria, que em 1997 atuou como promotor no processo que condenou Paulo, alegou em entrevista à época que, no caso inteiro, o eventual dolo deveria ser atribuído a outro agente que não o Estado, especificamente às vítimas que fizeram o reconhecimento.

“Se houve erro, ele não deve ser imputado à Justiça, mas às vítimas. Cabia a elas apontar o autor dos estupros. Se isso mudou, lamento muito. Atuamos com isenção e confiantes nas provas dos autos, sobretudo nas palavras das vítimas”, dizia o procurador ao jornal O Estado de Minas.

Em fase posterior de reparação cível, o Estado argumentou que “todo o conjunto de servidores públicos agiu no estrito cumprimento do dever legal, pois o Autor [condenados] como qualquer outro cidadão, pode ser acionado e julgado pelo Poder Judiciário, podendo vir a ser condenado ou absolvido […]”.

Em meio às dúvidas, o Ministério Público de Minas Gerais expediu, em julho de 2012, uma recomendação à Polícia Civil sob o argumento de que estavam sendo constatadas várias falhas em investigações criminais. Inicialmente direcionado à comarca de Alfenas e, posteriormente, para todo o do estado, o documento reforçava: “[…] o sucesso da Ação Penal está muitas vezes ligado ao bom trabalho investigativo e de colheita de provas ainda na fase inquisitorial, razão pela qual, ao investigar, a autoridade policial deve estar com os olhos voltados não ao inquérito policial, mas sim ao processo penal e à futura sentença”.

Em entrevista concedida à Pública, o advogado Eduardo dos Santos amarra os casos: “Acredito que houve falhas de todos. Começaram na fase investigatória, que não foram apuradas a fundo. Depois, veio o MP, que sustentou as acusações exclusivamente pelas palavras das vítimas, e, depois, o Judiciário, ao acolher uma investigação inconsistente. Esse caso representa uma triste analogia ao nosso sistema judiciário, e isso é bastante sintomático”, afirma ele.

Eugênio e Paulo hoje

Passados mais de 20 anos desde que o caso “Maníaco do Anchieta” surgiu, Eugênio e Paulo ainda travam suas batalhas.

Aos 66 anos, Eugênio sofre de diabetes e por todo o lado esquerdo do rosto tem uma paralisia facial que afetou sua visão. Apresenta também dificuldades de comunicação e socialização, já que a todo o momento seu passado volta à tona.

“A pena nunca é sem efeito, seja ele físico e, principalmente, psicológico. No caso do Eugênio, são as dificuldades de enlaçamento social. A herança é o que chamamos de ‘prisionização’: os efeitos do encarceramento sobre o sujeito e a expansão dos mesmos nas condutas comportamentais no resto da vida”, disse à Pública a psicóloga Thaísa Amaral, que acompanhou a situação de Eugênio após a cadeia.

Ele aguarda os dois últimos processos de revisão criminal para que seja inocentado por completo. Quanto à indenização pelo Estado de Minas Gerais, a Defensoria Pública deu início às atividades, mas detalhes técnicos travam o prosseguimento das ações. Em uma delas, o desarquivamento foi solicitado à Justiça, mas o processo não foi localizado. Na outra, a dificuldade tem sido reencontrar a vítima para que esta faça um reconhecimento e se construa a peça de revisão. A expectativa da Defensoria é que os processos sejam revisados ao longo dos anos de 2016 e 2017.

Eugênio teme não ser reparado em vida. Pretende voltar ao interior do estado, comprar uma casa, quer sumir. Mas promete não desistir: “Nem que eu tenha que ir a Brasília naquele Tribunal de Justiça, mostrar pro mundo todo que eu preciso e mereço ser reparado. O tempo eles não me voltam mais, mas preciso de justiça. Senão terei 90 anos e vão me enterrar sem nada. Isso eu não quero. Eu quero ser indenizado em vida”.

Ele traz consigo a tristeza acumulada, uma indignação escancarada e o tom revoltoso que encharca suas falas. Artista, desvia os pensamentos dos últimos 20 anos com os desenhos e pinturas que produz. Ultimamente vive em pensões modestas no centro de Belo Horizonte e tenta, aos poucos, retomar os contatos com familiares. Idoso, debilitado e com pendências em sua ficha criminal, não consegue trabalho.

Paulo imediatamente entrou com uma ação de indenização contra o Estado por danos morais e materiais pelo período em que ficou encarcerado, bem como pelo período em que cumpriu pena em regime de prisão domiciliar. Entre abril de 2013 a julho de 2014, o processo tramitou até chegar à 7ª Vara da Fazenda Pública de Minas Gerais para julgamento e decisão.

O programa Repórter Record, da TV Record, promoveu, neste ano, o encontro entre Eugênio e Paulo (Foto: Reprodução/TV Record)
O programa Repórter Record, da TV Record, promoveu, neste ano, o encontro entre Eugênio e Paulo (Foto: Reprodução/TV Record)

Em 22 de julho de 2014, o juiz Carlos Donizetti Ferreira da Silva julgou procedentes, em primeira instância, os pedidos iniciais de Paulo em face do Estado de Minas Gerais e condenou o Estado ao pagamento de R$ 2 milhões a título de indenização por danos morais. O valor seria corrigido monetariamente a partir da data do arbitramento da indenização e os juros fluiriam a partir da data da prisão de Paulo. Quanto à condenação por danos materiais, o Estado pagaria o valor atualizado que o porteiro teria a receber mensalmente se estivesse trabalhando, incluindo todos os benefícios legais, durante todo o período em que esteve preso em regime fechado. O juiz ainda condenou o Estado ao pagamento das despesas processuais.

Ao longo de toda a sua fundamentação, o magistrado fez questão de enfatizar a dimensão do equívoco judicial que sustentou todo o caso de Paulo, dizendo que “o valor aferido para a indenização deve ser bastante para coibir futuras injustiças por parte do Estado, bem como dirimir a irreparável supressão da liberdade de alguém inocente”.

O Estado recorreu da decisão. “Eles rebatem que o caso do Paulo respeitou o devido processo legal, que todo um conjunto de servidores públicos atuou no cumprimento do dever legal. O Estado contesta também o fato de que Paulo nunca teve posses ou recursos e que de hora pra outra passaria a ter direito a um valor milionário, caracterizando o enriquecimento ilícito. Querem a redução dos valores”, afirma à Pública o advogado Eduardo dos Santos.

O parecer final em segunda instância acerca da sentença passou às mãos do desembargador Paulo Balbino, na 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Desde 21 de agosto de 2015, o cumprimento da sentença que indenizou Paulo a mais de R$ 2 milhões continua parado.

“Nossa atuação hoje é apenas de pedir para que seja julgado. O processo está parado na mesa do relator desembargador Paulo Balbino, concluso desde agosto de 2015 […]. A sentença indenizatória saiu em 2014, já se vão quase dois anos desde que o Paulo obteve o seu direito judicialmente. É aí que entra toda a burocracia e prazos recursais que favorecem sempre ao Estado, que insiste em não reconhecer o erro […]”, atesta Eduardo dos Santos.

Contatado pela reportagem da Pública, Paulo Balbino, por meio de seu gabinete, informou oficialmente que não daria maiores informações sobre prazos ou andamento de processos, uma vez que cabe somente ao magistrado a votação da decisão, e o prazo para tal continua valendo.

Mesmo sem uma resposta concreta do Poder Judiciário sobre quando o caso prosseguirá, a defesa de Paulo nutre a esperança de que a eventual disputa em instâncias superiores não seja necessária.

“O Estado pode ir para os tribunais superiores, mas a simples discordância da sentença original não basta para que acatem tal recurso. Francamente não espero que o Estado tenha essa coragem; que tenham a hombridade de não tentar levar para Brasília, no STF. Caso opte por esse caminho, ele faria uma verdadeira chacota dos judicionais”, finaliza Eduardo dos Santos.

Paulo Antônio da Silva segue em sua casa humilde, onde divide o único quarto com a filha mais nova e o neto. Desde a prisão, ele desenvolveu graves debilidades físicas e psicológicas. Perde-se constantemente em discursos desconexos, falando em perseguição da polícia, armações de familiares e advogados para o incriminarem.

Na prisão foi violentado fisicamente e esteve internado inúmeras vezes devido às doenças que contraía. Sofreu um ataque à faca que quase o matou e tentou suicídio. Segundo pessoas próximas, os traços de depressão são preocupantes. Caminha com dificuldades e dores, sofre de insônia e pesadelos, além de estar praticamente cego.

Aos 70 anos, Paulo sobrevive com R$ 600 de aposentadoria. Uma contradição dolorosa diante do valor atual da indenização judicial a que tem direito: cerca de R$ 5 milhões. Valor que ele também já não considera receber vivo.

Se possível, pretende “dar uma casa para cada filha e comprar uma melhor para morar, tratar da saúde feito gente de verdade e ter um final de vida com dignidade. Queria muito encontrar com as moças que me acusaram, dizer para elas que as perdoo, agradecer à que reconheceu o Pedro por ser a intercessora da minha verdade”.

“Não sinto raiva desse homem. E se também não foi ele? Quem garante que a Justiça não tá errada outra vez? Até pelas histórias, a gente vê que é bem possível, né? Só sei que, da minha inocência e da minha honra, ninguém duvida mais. Mas eu fico pensando (certeza que o Eugênio também fica): se essa menina não tivesse virado a rua lá no bairro Anchieta, o que teria sido disso tudo? Quantos outros Paulos e Eugênios ainda não existem por aí, filho…”

Esta matéria é resultado do concurso de microbolsas para reportagens investigativas sobre o Poder Judiciário promovido pela Agência Pública com o apoio do Instituto Betty e Jacob Lafer.

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