São dois cadáveres em posição fetal: um homem e uma mulher, somente ossos queimados. Mais parecem dois bebês carbonizados, com cabeças desproporcionais. Foram encontrados no porta-malas do que resta de um carro em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, região do Rio de Janeiro que mais doze cidades e onde moram 16.4 milhões de pessoas. Um policial ouvido pela reportagem descreveu-a como “uma grande favela com buracos e mortos”. Uma dezena de agentes da Unidade de Homicídios da Polícia Civil está na cena do crime. Todos usam coletes à prova de balas e carregam fuzis.
A morte dessas duas pessoas não é o começo da investigação de um inspetor obcecado que vai passar dias analisando quem cometeu o crime, como e por quê: todo dia, morrem assassinadas, em média, seis pessoas nessa região, a maior taxa do estado. São 6 da tarde, já está anoitecendo, e os dois corpos são a sétima e a oitava vítimas desta quarta-feira, 1 de fevereiro. Pela manhã houve nada menos que um homicídio, um duplo homicídio e um triplo homicídio.
A cena também não é um caudal infinito de informações, como nos filmes. Os corpos queimados estão em uma área rural, em uma via secundária de uma estrada de terra. Para chegarem até aqui, os agentes da Polícia Civil desceram das viaturas, porque elas não subiram um morro enlameado. Perto do carro não se veem moradias nem comércios. Tampouco há estranhos, curiosos que se amontoem ao redor do corpo. Apenas passa um motorista que vai servir de guia à polícia até o asfalto. O carro é roubado. As primeiras especulações dos policiais são de que os corpos pertencem a “um tal Luís”, um policial que havia desaparecido de uma favela naquela mesma manhã, e de uma mulher que o acompanhava. Não há testemunhas – e aqui elas são a principal fonte de informação para resolver homicídios. Mas mesmo quando existem, é muito difícil que se atrevam a falar por medo de represálias das organizações criminosas que controlam este território, tão longe das célebres praias do Rio: facções do tráfico de drogas, milícias e grupos de extermínio.
No ano passado, 1.702 pessoas foram assassinadas nesta região. Segundo a Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense, a taxa de resolução dos crimes foi de 27%. Mas a esse número há que adicionar os 1.300 desaparecidos registrados mais o número indeterminado de casos que nunca chegam a ser denunciados. “Isso aqui é como uma selva onde vivem todas as espécies de criminosos”, diz o delegado Marco Antônio Pinto, da Civil. “A cultura da morte está muito enraizada. No Brasil tudo mudou, mas na Baixada a violência só mudou de ritmo. Aqui continuam os grupos de justiceiros de 30 anos atrás. Faz dez anos que a milícia chegou. Agora também temos latrocínios e carros e corpos carbonizados.”
Marco Antônio entrou na polícia há 30 anos, durante a ditadura militar. É casado há 20 – embora sua mulher sempre ameace abandoná-lo se ele não largar a farda – e tem dois filhos que, para seu alívio, não querem seguir sua profissão. É um homem de 50 anos, “um policial reciclado”, como se define, que caminha pausadamente e fala do seu trabalho com paixão. Passou pela divisão Antidrogas e a Divisão Antissequestro; capturou alguns traficantes poderosos, como o ex-paraquedista do Exército Marcelo PQD; viu o fortalecimento das facções no Rio, como Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro e Amigo dos Amigos; esteve na primeira linha da onda de sequestros de empresários no começo dos anos 1990; e participou da investigação do assassinato da juíza Patrícia Acioli, morta por policiais depois de ter denunciado a corrupção dentro da PM. Ele esteve também na criação da Delegacia de Homicídios da capital, em 2010. “A Baixada é pior”, diz na sala de interrogatórios da delegacia, um velho edifício branco rodeado de lojas e bares populares. Todo dia ele chega com uma lista de dez tarefas, das quais só consegue cumprir duas. Não tem um só dia que o telefone não toque por causa de um assassinato.
“Temos milhares de casos abertos. Se um policial se concentra em um, vem uma avalanche em cima dele. Isso aqui é uma fábrica de biscoitos. Temos que produzir biscoitos, informar a autoria para que o Ministério Público leve o autor à Justiça. São biscoitos simples. Não podemos nos preocupar com o recheio”, conta.
Um dia, seis mortos
Durante 24 horas, Fábio do Nascimento e Geraldo Cerdeira só veem mortos nos 13 municípios da Baixada Fluminense, onde se concentram 46% dos homicídios do estado. Ambos estão em seus 30 anos e vivem em Ipanema e Leblon, bairros que são cartões-postais do Rio de Janeiro, apinhados de turistas com biquínis, caipirinhas e jogos de futevôlei. Geraldo, barbudo e alegre, é surfista além de policial, e Fábio, um negro corpulento e bonito, foi ator de televisão e engenheiro aeronáutico antes de entrar na Polícia Civil.
Em um sábado, sob uma temperatura de 30 graus, os dois policiais patrulham uma área com ruas sem asfaltamento, com problemas de eletricidade e drenagem, onde se veem homens passando a cavalo e porcos cruzando a via. No meio do século passado, a Baixada Fluminense recebeu uma onda de imigrantes, principalmente nordestinos em busca de uma vida melhor perto do Rio de Janeiro, que era até 1960 a capital do Brasil. No entanto, a Baixada sempre teve os índices de desenvolvimento mais baixos do estado. “A Baixada Fluminense se caracteriza pela pobreza, o desemprego e uma estrutura de violência muito antiga, que se consolidou nos anos 60 e 70”, explica José Cláudio Alves, um dos poucos acadêmicos que estudam a região em profundidade.
Os policiais civis chegam a uma casa amarela; uma dezena de curiosos comenta o que acabou de acontecer. No interior se vê uma poça de sangue ao lado de uma bicicleta rosa e de um chinelo da mesma cor. Umas horas antes, Sérgio Vicente Goulard estava na sua casa quando alguém chamou à porta gritando: “Polícia!”. Quando foi abrir, dois homens já haviam saltado a mureta e atirado na sua cabeça, segundo conta Ingrid, uma moça de 22 anos que pediu para não ser identificada pela reportagem.
“Tudo sugere que foi a milícia”, diz Cerdeira. As milícias são grupos paramilitares formados por ex-policiais, agentes penitenciários, ex-militares ou até funcionários da ativa que supostamente combatem o narcotráfico nas comunidades mais pobres do Rio de Janeiro. Embora digam que fazem parte do lado da justiça, se converteram em uma nova máfia: vivem da extorsão e outros negócios ilegais.
As mortes da Baixada Fluminense revelam uma lógica de violência, uma forma de resolver problemas. Os assassinos podem ser traficantes, milícias, policiais, grupos de extermínio, ladrões ou algum conhecido da vítima. Sextas e sábados são os dias com mais homicídios. Nos domingos, muitas vezes as mortes acontecem por disputas pessoais. Na cidade de Rio de Janeiro, a taxa de assassinatos em 2015 foi de 18,5 para cada 100 mil habitantes. Na Baixada foi de 40,2, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP) do estado.
Ao longo do dia, Fábio do Nascimento e Geraldo Cerdeira se deparam com mais cinco cadáveres.
Luiz Carlos Barbosa está deitado no meio de duas favelas. Uma está sob controle do Comando Vermelho e a outra, do Terceiro Comando Puro. Um grupo de vizinhos toma cerveja e escuta música em uma barraquinha a alguns metros do seu cadáver. Um homem passa a cavalo e faz uma piada enquanto os policiais perguntam se alguém sabe de alguma coisa. Só sabem que ele foi morto por mudar de lado.
O terceiro morto do dia foi encontrado pela própria família. Seu nome era Jorge Luiz Bento. A última vez que o viram, caminhava pela rua e alguns homens o obrigaram a subir em um carro preto. Tinha desaparecido havia uma semana. A polícia havia dito à família que, com tantos mortos, era difícil buscar um desaparecido. Seus três primos decidiram procurá-lo por conta própria. Encontraram-no sem cabeça, com as mãos e pernas amarradas, apodrecendo perto de um riacho. Eles o reconheceram por causa de uma tatuagem na perna. “Pelos sinais de tortura, parece que foi o tráfico”, explica Fábio do Nascimento.
Por volta das 20 horas, eles encontram o grito profundo da mãe de Claudelir Francisco, um rapaz que andava de bicicleta quando o mataram perto da sua casa. Uns oito familiares estão ao lado do corpo. Ele ainda tem nas mãos os fones do celular. Dispararam nove vezes.
Na Baixada Fluminense, cerca de 74% das mortes são por arma de fogo.
O quinto morto era Leandro Alves. Quando tentaram roubar o seu carro, ele sacou uma pistola e disparou contra os assaltantes, que estavam em uma moto. Matou um deles. O outro fugiu. Sua mulher e o seu filho de 7 anos viajavam com ele. Haviam se mudado para lá duas semanas antes, porque a área onde residiam em Nova Iguaçu estava perigosa demais. As armas desapareceram da cena do crime antes que os policiais chegassem – algo comum na região. Cerdeira tenta afastar as pessoas que passam pela cena do crime, tentando deixar o cadáver intacto, quando foi avisado de que um jovem dera entrada em um hospital com uma ferida de bala. É o assaltante. “Perdemos um cara bom que matava filhos da puta”, julga o outro policial. A noite dos agentes acaba em um McDonald’s, às 4 da madrugada. É a primeira vez que comem.
As vítimas
Quando Lucine Silva via as notícias sobre mortos na Baixada Fluminense, sentia pena por eles, mas depois de umas horas ela esquecia, apesar de viver ali. A realidade da televisão não se refletia no seu dia a dia. “Você está bem, sua família está segura e você acredita que isso não vai acontecer com você. Descobre que mataram um e outro e outro, mas continua isolada da realidade. Eu vivia em uma zona de conforto”, diz ela, ao lado de uma garrafa grande de café. Tudo isso mudou quando soube que seu filho menor havia sido assassinado.
Na tarde de 31 de março de 2005, Rafael, de 17 anos, conversava com os seus amigos na frente do portão de casa. Um deles o chamou para comprar uma peça de bicicleta. Quando caminhavam pela rua, um grupo de policiais disparou indiscriminadamente. Rafael e o seu amigo foram os primeiros mortos do chamado “Massacre da Baixada Fluminense”, no qual 29 pessoas foram assassinadas pela Polícia Militar.
Dias antes, oito agentes do 15º Batalhão de Duque de Caxias haviam sido captados por uma câmera quando largavam um par de corpos degolados nessa mesma cidade. Na mesma semana, mais de 60 PMs foram receberam sanções por má conduta. Os cinco agentes envolvidos no massacre se reuniram em um bar de Nova Iguaçu, reclamando da severidade das sanções. Dali saíram para matar gente.
“Um policial disse ao seu irmão alguns dias depois: ‘Se te serve de consolo, ele não sofreu nada. Morreu na hora’”, diz a mãe, vestindo uma camiseta com a foto do filho. “Rafael não teve a oportunidade de fugir. Recebeu um tiro na coluna e caiu.”
Adriano Dias, fundador de ComCausa, uma ONG que defende os direitos humanos na Baixada Fluminense, começou nos anos 1980 a denunciar a violência relacionada com os grupos de extermínio. Ao longo de 25 anos, havia visto todo tipo de horror na região onde nasceu; mas o massacre era impossível de descrever. Começou a ajudar as famílias das vítimas. “Em 2007, sofri uma ameaça muito grande, estavam planejando me matar ou desaparecer comigo, por trabalhar no julgamento do massacre”, conta. Entre 2006 e 2009, cinco policiais foram condenados pela matança. Segundo o Ministério Público, formavam parte de um grupo de extermínio.
Depois do massacre, os homicídios diminuíram levemente na região, devido à pressão da opinião pública, mas as matanças continuaram. Em 24 de outubro de 2010, um grupo de pessoas estava em uma festa diante de um bar quando dois grupos de extermínio mataram a tiros seis e feriram outras nove. Em 2012, nove pessoas foram assassinadas em uma cachoeira perto da favela de Chatuba por traficantes de uma comunidade controlada por um grupo rival. Em outubro de 2014, homens encapuzados fuzilaram cinco adolescentes diante de um muro. Os meninos voltavam de uma partida de futebol. Os casos foram compilados para o relatório Um Brasil dentro do Brasil pede socorro, do Fórum Grita Baixada, que denuncia “a desatenção à vida” na área.
No ano passado, 11 pré-candidatos e conselheiros municipais da Baixada foram executados em uma nova onda de violência política que expôs as relações entre o narcotráfico, as milícias, os grupos de extermínio e os políticos.
Cada vez que Adriano Dias se depara com uma nova vítima, sente que o seu trabalho não vale a pena. O medo e a impotência o invadem. “Tenho medo da reconfiguração do crime no Rio, da falta de controle da tropa, do Estado, e das estratégias para impedir o avanço dos grupos criminosos. Tenho mais medo como cidadão do que como militante”, diz este homem corpulento, com mais de três décadas defendendo vítimas em uma região que ele considera “invisível”. Se na cidade do Rio de Janeiro existe uma “guerra não declarada”, diz ele, na Baixada há uma “guerra velada”.
Vazamento de informações ajudam milicianos
Às 5 da manhã de 23 de marco, Giniton Lages, chefe da Delegacia de Homicídios, reuniu dezenas de seus homens na sala principal para afinar os detalhes de uma operação contra um grupo de milicianos. Ao seu lado está o delegado Marco Antônio Pinto, que motiva a tropa: “É para isso que somos policiais, esse é o trabalho”. As operações ocorrem sempre ao amanhecer para surpreender os criminosos enquanto dormem e evitar enfrentamentos. Segundo eles, a milícia, diferentemente dos traficantes, não costuma disparar contra os agentes. O que complica esse tipo de detenções é o vazamento de informação: muitas milícias têm entre seus integrantes policiais em atividade. “Às vezes os detêm e fazem cara de surpresa, de não saber por quê”, diz Lages.
Há alguns meses, a Polícia Civil seguia a pista de um grupo de milicianos conhecidos como “Caçadores de Queimados” – em homenagem ao município de mesmo nome. Quando sentiram a pressão policial sobre eles, os paramilitares postaram no Facebook: “Tendo em conta as represálias que estamos sofrendo, estamos preservando nossa liberdade, os trabalhos estão diminuindo, inclusive teremos que parar […]. Que Deus tenha misericórdia de nós!!!”.
Em novembro de 2015, dois homens encapuzados mataram um pai e seu filho no portão de casa. Eram 5 da tarde.
No vídeo, captado pela câmera de segurança, se veem os assassinos portando fuzis e armas curtas. Têm a cautela de tapar o rosto, mas um deles calça um tênis Adidas laranja fluorescente, traz um relógio de luxo e um adesivo de uma caveira, um distintivo típico dos PMs fluminenses – é o símbolo do Bope, por exemplo. Um ano depois, os agentes de homicídio detiveram Leonardo do Nascimento, um PM e o seu irmão Paulo como autores do crime.
A impunidade, principal fenômeno que uma Delegacia de Homicídios deve combater, na Baixada é quiçá a única vantagem para os investigadores. Em um ambiente de violência contínua, normalizada, os delinquentes se sentem livres para atuar e às vezes cometem deslizes, como se deixar identificar diante de uma câmera.
Na operação daquela manhã, somente foi possível deter um dos três acusados contra os quais havia ordem de prisão. Na sua casa não havia fuzis ou pistolas, mas sim coletes à prova de balas e duas facas que poderiam ser descritas como “estilo Rambo”.
Lages comanda a delegacia desde sua instalação, em 2014. Como em outras áreas, a criação de uma unidade especializada em homicídios ocorreu por último na Baixada, depois da capital e de Niterói. Sob suas ordens estão 180 homens para cobrir as 13 cidades, algumas a mais de duas horas de distância da delegacia. Lages é de São Paulo. Ele brinca com seus agentes: “Tive que vir aqui trabalhar para consertar o que os cariocas não fazem”.
Na sua sala, há um painel com folhas cortadas em quadradinhos onde anota as tarefas pendentes. No primeiro dia em que a reportagem esteve lá, ele mostrou as estatísticas de mortos desses três anos. “Eu não tenho um dia sem mortos, nem um dia com um só morto. Sempre tenho vários”, disse. “Não existe vazio de poder. Se o Estado não ocupa o seu espaço, alguém vai ocupar. Sejam as facções ou a milícia.” No ano passado, houve um mês em que pensavam que a cifra de assassinatos ia baixar pela primeira vez para dois dígitos. Mas no último dia houve vários assassinatos, e a cifra pulou para 100. Nos piores meses, ronda os 200.