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Reportagem

O calabouço onde o governo da Nicarágua prendeu jornalistas

Condições da prisão não servem “nem para criar porcos”, diz deputado europeu que foi visitar o dono de um canal de TV detido pelo governo de Daniel Ortega

Reportagem
19 de fevereiro de 2019
12:00
Este artigo tem mais de 5 ano

As lanternas dos celulares machucaram os olhos do jornalista nicaraguense Miguel Mora. Os deputados do Parlamento Europeu iluminaram a cela para, no escuro, encontrar o jornalista e preso político da ditadura de Daniel Ortega e Rosario Murillo na Nicarágua. Mora estava no fundo da cela, vestindo o uniforme azul de presidiário. Passou quase um minuto até que os olhos do diretor do antigo canal de TV 100% Noticias se adaptassem à iluminação e ele pudesse ver com clareza os visitantes de sotaque estrangeiro que haviam chegado ao seu calabouço na prisão conhecida como El Chipote, na capital Manágua.

José Inácio Faria era um dos deputados europeus que filmavam o momento. Os detalhes da cela em que Mora passou mais de 35 dias isolado em El Chipote foram sendo descobertos pela lanterna do celular do parlamentar: um banheiro em ruínas e um chão imundo, repleto de restos de comida e garrafas plásticas. “Aqui eu como e aqui eu durmo”, explicou o jornalista.

Os deputados europeus se surpreenderam com o fato de Mora ter passado tanto tempo na penumbra, sem poder tomar ar fresco. O português Inácio Faria inspecionou a cela minuciosamente, iluminando-a com seu celular, como um cientista forense que busca evidências nas paredes. Somente encontrou “uma pequena fenda” pela qual se infiltrava “luz de maneira indireta”.

“Essas condições são desmedidas, desumanas”, disse Inácio Faria ao site El Confidencial, parceiro da Pública, depois da visita dos deputados a Manágua. “Miguel Mora tem uma cama de concreto sem colchão. Naquele dia em que o visitamos, vestiram-no com um uniforme porque ele fica na cela somente de cueca.”

Quase cego por estar na penumbra

Mora foi preso no dia 21 de dezembro com a jornalista Lucía Pineda Ubau. Os policiais os transferiram para as celas da Direção de Auxílio Judicial (DAJ), popularmente conhecida como El Chipote, localizada a poucas quadras dos estúdios da TV 100% Noticias, cujo sinal foi tirado do ar no mesmo dia. Mora e Lucía passaram mais de 35 dias isolados. De acordo com os depoimentos obtidos pelos deputados, o diretor do canal sofreu de infecções intestinais e tremores por causa da insalubridade da masmorra e da falta de água potável.

Miguel Mora teve infecções intestinais e tremores por causa da insalubridade da masmorra e da falta de água potável

“Durante a visita, pedimos ao diretor da prisão que Miguel Mora tomasse banho de sol. Ele precisa de sol, de vitamina D. Está quase cego por ficar no escuro”, afirmou Faria. “Em El Chipote, as condições são desumanas… Não são condições nem para criar porcos. Os porcos do meu país ficam em lugares melhores do que aquele. É inadmissível, uma vergonha”, disse com indignação.

A visita de três dias dos deputados europeus permitiu que os cidadãos da Nicarágua vissem pela primeira vez os presos políticos dentro das prisões. Embora seu tempo nas cadeias tenha rendido vários vídeos documentando a saúde e o estado dos prisioneiros de consciência, o fato é que a visita dos deputados foi breve em El Chipote e na prisão feminina La Esperanza, onde cerca de 70 mulheres são presas políticas da ditadura.

Em El Chipote, os deputados só puderam entrar nas celas dos jornalistas do 100% Noticias. Em La Esperanza, puderam ver as presas políticas, que lhes contaram os abusos físicos e psicológicos que sofreram. Nessa prisão, as condições das instalações são melhores porque sua construção é recente. Porém, as presas políticas relataram os maus-tratos infligidos pelos funcionários da prisão, como quando, em outubro, homens vestidos de preto bateram em 17 delas.

Com uma agenda apertada, os deputados europeus não puderam ficar mais tempo em El Chipote nem visitar o presídio La Modelo, onde se concentra a maior parte dos presos políticos.

Cinco dias depois da visita dos deputados, os jornalistas Miguel Mora e Lucía Pineda Ubau tiveram sua primeira audiência inicial. Nela, o juiz orteguista Henry Morales marcou o início do seu processo para o dia 25 de março – dois meses depois da prisão. Miguel foi transferido para o presídio La Modelo, e Lucía, para o La Esperanza.

A “300”

Na cadeia La Modelo, existe um pavilhão penitenciário conhecido como “La 300” (ou a 300). Os presos políticos estão ali em regime de solitária, já que se trata de uma seção de segurança máxima, chamada de “el infiernillo” [o inferninho]. Pelo menos 18 prisioneiros de consciência estão nessas celas.

No pavilhão La 300, as celas têm 2 metros de comprimento por 2 de largura. Nelas, cabem somente um ou dois presos, às escuras. Um portão de metal com apenas uma fenda de 5 a 10 centímetros permite que pequenos raios de luz se infiltrem no interior da cela.

Antes da crise política iniciada em abril de 2018 na Nicarágua, os presos que passaram pelo pavilhão La 300 o descreveram como “pequenos fornos”, devido ao calor que se acumula no reduzido espaço. Os presos políticos também se queixam da péssima ventilação do lugar. Não é à toa que também é conhecido como “el infiernillo”.

Os prisioneiros em regime de segurança máxima só têm direito a sair uma vez a cada 15 dias. Os familiares contaram ao El Confidencial que a solitária já começou a afetar a saúde mental dos presos políticos, embora eles tenham mostrado um moral incansável desde a prisão.

O coronel aposentado do Exército da Nicarágua Carlos Brenes Sánchez, acusado por terrorismo e bloqueios de ruas, está em el infiernillo. Há cinco meses, está isolado em segurança máxima. Sua vida, desde a entrada na cadeia, se passa nos 4 metros quadrados da cela. Durante as manhãs, faz exercícios no limitado espaço. Precisa se exercitar para manter a diabetes sob controle. Caminha de um lado para outro na cela. O espaço não lhe permite dar mais de dez passos curtos. Ao lado de sua cama de concreto, está o espaço onde faz suas necessidades fisiológicas.

Salvadora Martínez, esposa do ex-coronel, conseguiu fazer com que uma Bíblia entrasse em La Modelo. Brenes Sánchez mal consegue lê-la na escuridão. Aproveita para ler a cada 15 dias, quando o levam para tomar sol. “Mas na verdade é sombra que lhe dão e não banho de sol”, diz Salvadora.

O mofo e a umidade na pequena cela criam uma espécie de lodo sobre a pele do ex-coronel de mais de 60 anos. Quando não está caminhando de um lado para o outro nem tentando ler a Bíblia, Brenes Sánchez se concentra para ouvir o som que chega do aparelho de TV de um dos prisioneiros do el infiernillo. É a sua única e intermitente maneira de descobrir o que está acontecendo fora dessas paredes sufocantes. Todos os presos políticos estão na solitária e, além das conversas de dez minutos que têm com parentes durante as visitas familiares ou conjugais, não sabem do curso da crise sociopolítica da Nicarágua. “É um absurdo”, lamenta a esposa do coronel aposentado.

Na sexta-feira, 1o de fevereiro, os militares aposentados Carlos Brenes, Tomás Maldonado e Alfonso Morazán foram condenados a 30 anos de prisão pelos supostos crimes de terrorismo e crime organizado. Brenes foi comandante guerrilheiro da FSLN, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, mão direita de Camilo Ortega (irmão do presidente Daniel) na luta contra o ditador Anastasio Somoza no final dos anos 1970. Agora, com mais de 60 anos, está confinado a três décadas de prisão.

Texto traduzido do espanhol por Carolina Zanatta. Leia o original no site Confidencial.

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