Diariamente, na medida em que a multiplicação de infecções e mortes pela Covid-19 no mundo é atualizada para os brasileiros, chegam também as incessantes informações sobre as reações de lideranças internacionais à pandemia. Ao mesmo tempo que o novo coronavírus une a maior parte dos países na mesma crise, as mudanças geopolíticas parecem nunca ter estado tão presentes no dia a dia dos brasileiros.
A Agência Pública conversou com a especialista em saúde global Deisy Ventura sobre essa conjuntura. Professora e pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), ela avalia que a crise escancara o acirramento de uma competição econômica e diplomática. “A narrativa que será construída a respeito dessa pandemia e do impacto dela sobre tudo está em disputa.”
Com o fechamento das fronteiras, enquanto o isolamento social segue como principal recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), a população mundial assiste ao início de uma crise econômica global com poucos precedentes. Instabilidade do mercado de petróleo, sucessivas baixas nas bolsas de valores, tombos nos Produtos Internos Brutos (PIB) de diversos países e a cotação do dólar em reais batendo recordes semanais. Esses fatos, normalmente ignorados pela maioria da população, parecem cada vez mais importantes.
Em paralelo, a retenção pelos EUA de insumos médicos importados da China pelo Brasil e por outros países, a decisão do presidente estadunidense, Donald Trump, de acabar com o financiamento da OMS e o choque da diplomacia internacional com a postura negacionista do presidente Jair Bolsonaro aproximam a geopolítica do cotidiano de todos que temem ser contaminados.
Para Deisy, algumas consequências são claras. A postura do governo dos EUA em reter cargas compradas por outros países pode ser considerada um “crime internacional de pirataria” e levará a uma “desconfiança inimaginável” nas relações entre o país e as demais nações. A falta de interesse de Trump em liderar a resposta à crise sanitária e o protagonismo da China nesse aspecto devem inverter a relação de poder entre os países. E o Brasil se tornou um “pária internacional”.
“O Brasil vinha tendo um papel de liderança internacional, inclusive nas questões de saúde. O país é referência internacional em diversos programas [nessa área]. Hoje o Brasil é ridicularizado, hostilizado. Existe um desconcerto entre os governantes dos Estados mais importantes do mundo em relação ao que é feito aqui”, afirmou.
Quais os principais fatos recentes relacionados à pandemia que você acredita que terão impacto na geopolítica mundial?
A grande mudança que temos em relação a outros cenários de crise precedentes é a absoluta ausência de liderança dos EUA. Isso não é novidade, há um declínio do protagonismo norte-americano nas relações internacionais já há alguns anos. Ele se intensifica com a gestão Trump. Mas, conosco, que trabalhamos com a cooperação internacional – e principalmente a cooperação internacional em saúde –, é desconcertante ver os grandes foros internacionais e as iniciativas, os programas de cooperação pontuais envolvidos na resposta na completa ausência, omissão dos EUA, na impossibilidade dessa liderança.
Quando houve a emergência internacional do ebola em 2014-2015, o então presidente Barack Obama mandou 3 mil marines para a África ocidental, liderou nas Nações Unidas a criação da missão contra o ebola, a primeira missão da ONU de natureza sanitária, lançou a agenda da Segurança da Saúde Global, que é quase uma agenda rival à da Organização Mundial da Saúde [OMS]. Quer dizer, a gente teve um protagonismo enorme dos EUA e agora temos uma crise infinitamente maior do que a do ebola, que já foi uma crise de grande repercussão, e a gente vê esse vazio de liderança dos EUA e o crescimento da China. A China consegue reverter sua desvantagem inicial de ser o local onde surgiu a Covid-19 e se torna o grande líder da cooperação internacional.
Claro que as eleições presidenciais dos EUA podem reverter essa constatação, mas é difícil imaginar que os EUA voltem a ser o player que foram antes da pandemia.
E o Brasil?
Mesmo sentido. Um elemento geopolítico desconcertante é a absoluta ausência de liderança do Brasil. O silêncio do Brasil é sentido na configuração da política aqui, principalmente da América do Sul, mas não só, porque o Brasil vinha tendo um papel de liderança, inclusive nas questões de saúde. O país é referência internacional em diversos programas, na questão do combate ao HIV e à aids, o combate ao tabaco, bancos de leite materno, a chamada cooperação Sul-Sul, desenvolvida nas últimas décadas, principalmente com os países africanos de língua portuguesa. E aqui, no âmbito da Unasul, o Brasil sediou, até o ano passado, o Instituto Sul-Americano de Governo e Saúde, que formava quadros dos governos nacionais na área de saúde pública. Então, o protagonismo brasileiro é evidente em iniciativa como o banco de medicamentos da Unasul, que poderia ser extremamente importante agora, [para] negociar juntos a compra de insumos. Então, essa ausência de liderança brasileira também é um elemento muito importante.
De que forma a senhora vê a postura de Donald Trump, de interceptar insumos comprados pela América Latina da Ásia que passam pelo país? Como isso pode impactar a relação dos EUA com as demais potências?
Essa conduta do presidente Donald Trump é um crime. O comportamento norte-americano é extremamente destrutivo. Os EUA são um país rico, com uma enorme planta industrial, que não deveria requerer esse tipo de atitude. Esperamos de países que se autoproclamam democracias que não tenham atuações que violem a ordem jurídica internacional. Esse comportamento de pirataria é considerado um dos primeiros crimes internacionais.
Interceptar e tomar para si mercadorias e produtos que são dos outros – isso podemos tranquilamente chamar de pirataria – não contribui nada com a relação harmônica entre países; pelo contrário, gera uma desconfiança que chega a níveis inimagináveis entre os EUA e outros países.
Na semana passada, os EUA anunciaram a suspensão do financiamento do país à OMS, criticando a gestão do órgão internacional. A partir dos posicionamentos dos EUA e com os recursos que a China teve para lidar com seu pico da Covid-19, há uma intensificação da alternância de poder econômico entre esses países? Alguns pensadores sugerem que estamos entrando em uma era pós-ocidental. A senhora concorda?
Eu acredito que nós precisamos esperar algum tempo para chegar a essas conclusões. A gente não pode ter a ilusão de que nós já temos ideia do que será a pandemia da Covid-19. Ainda estamos longe do final desse processo. A posição da China não é uma posição que escape a controvérsias. Se trata de um regime ditatorial que provavelmente omitiu informações no início do surto epidêmico e que provavelmente até hoje não nos oferece um diagnóstico fidedigno e transparente do que aconteceu e acontece por lá.
Para responder a essa pergunta, acredito que precisamos ter o resultado das eleições dos EUA. Esse é o elemento crucial para avaliar essa resposta. Se tivermos ainda um governo de extrema direita nos EUA, com essa forma de proceder politicamente, que implica o declínio do multilateralismo e a impossibilidade da construção de objetivos coletivos entre os Estados, nós temos um cenário muito diferente, de imaginar um governo democrata que retoma a agenda do multilateralismo, num cenário no qual os EUA voltam a disputar a liderança pelo menos em alguns temas essenciais.
Como os comentários do ministro da Educação e de Eduardo Bolsonaro, bem como a onda de fake news em relação à criação do vírus em laboratório na China, afetam a relação do Brasil com o país? A tentativa de intermediação de Jair Bolsonaro é suficiente para preservar as relações entre os países?
Os movimentos extremistas estruturam sua ação política na construção de adversários, a partir de raciocínios e conjuntos de ideias simplórios, de fácil assimilação, de maneira a ocultar a complexidade das situações políticas, econômicas e sociais. Então, a complexidade dessa situação e a complexidade das relações internacionais são incompatíveis com o modus operandi dos movimentos extremistas. Nós já os conhecemos há muito tempo, eles marcaram o século 20, em particular com o nazismo, o fascismo, o stalinismo. Então, essas construções de adversários são constitutivas dos movimentos de extrema direita, e, quando essa construção é feita em torno de uma figura estrangeira, no caso da China, que tem uma cultura muito diferente da nossa, tende a ser extremamente eficaz.
De maneira que é difícil imaginar que a tentativa de intermediação de Bolsonaro seja eficiente, porque esses movimentos continuam atacando a China. E a China estruturou uma estratégia de resposta extremamente eficiente. Ela não deixa esse tipo de acusação sem resposta. Então, o nível de tensão não parece estar sendo reduzido. Não vejo perspectiva de redução porque essa é a característica, a forma de mobilizar a base eleitoral de Bolsonaro. A geração de insultos é o que mantém a base eleitoral [de Bolsonaro] mobilizada. Admitir a importância da China, deixar de criticar a China, pode gerar uma contradição muito significativa do modus operandi político e eleitoral do nosso presidente.
Bolsonaro foi denunciado no Tribunal Internacional de Haia devido à sua negligência com as políticas de isolamento. Ele foi denunciado também como o pior líder mundial a lidar com o novo coronavírus pelo Washington Post. De que forma essas denúncias impactam a posição do Brasil, econômica e simbolicamente?
A verdade é que hoje o Brasil é um pária internacional. O Brasil é ridicularizado, hostilizado. Existe um desconcerto entre os governantes dos Estados mais importantes do mundo em relação ao que é feito no Brasil. É importante notar que a clivagem na tomada de posição em relação à pandemia não se dá por espectro ideológico ou partidário. Há líderes de extrema direita que perceberam, na pandemia, uma oportunidade de concentrar poder. Foi o caso da Hungria, de Israel.
Nós tivemos países que tiveram inicialmente posições semelhantes à do presidente Jair Bolsonaro, caso dos EUA e do Reino Unido, e que depois recuaram em função do aumento do número de casos. Ou seja, a tangibilidade das mortes da doença, da sobrecarga do sistema de saúde, se impôs sobre o devaneio ideológico. Então, o Brasil se encontra em uma posição sui generis, no sentido de que a extrema direita brasileira que está no governo não se valeu, pelo menos até o momento, da pandemia, para ampliar seus poderes; ao contrário, ela tem sido controlada por freios e contrapesos importantes da nossa ordem constitucional, tanto a estrutura federativa quanto a repartição de poderes, o controle que o Legislativo e o Judiciário têm exercido de pelo menos uma parte das posições nefastas do governo federal em relação à saúde pública. A imprensa também tem atuado de uma forma admirável, fazendo a comunicação de risco, que é uma expressão técnica que a gente utiliza na resposta às emergências internacionais. Quem tem feito essa comunicação no plano nacional tem sido a imprensa, na omissão e nos ruídos que existem na comunicação que vem emitida da União. São governadores, prefeitos e principalmente, no plano nacional, a imprensa que têm atuado, entidades sociais também, especialistas, universidades, institutos de pesquisa, a classe médica, o pessoal da saúde, nós que temos desempenhado esse papel da comunicação de risco.
A quebra de patentes de medicamentos, medida apresentada no PL 452/2020, que chegou às mãos de Rodrigo Maia em 2 de abril, deve ser uma tendência mundial? De que forma os conflitos por licenças podem prejudicar e atrasar o fim da pandemia? A suspensão de patentes é algo que já foi colocado em prática em outros momentos históricos de epidemias?
A questão das patentes é curiosa, nós vivemos isso durante a pandemia de gripe H1N1, entre 2009 e 2010, a pandemia que começou no México e envolveu a criação de porcos, tanto que inicialmente essa gripe era chamada de gripe suína. Nessa época, nós tivemos com muita força essa questão das patentes, porque, diferentemente da Covid-19, para a gripe H1Nn1 nós tínhamos o tratamento, que era o Oseltamivir, conhecido como Tamiflu. O Brasil inclusive tinha reservas de Oseltamivir, que negociou a preços mais vantajosos com a Roche. Ele foi encapsulado pelo laboratório da Fiocruz de Manguinhos, e nós não tivemos a falta desse medicamento no Brasil.
A gente espera que as regras de propriedade intelectual sejam flexibilizadas diante da consciência do potencial danoso para a saúde pública no mundo inteiro desses episódios. Mas é preciso lembrar que não basta ter a chamada quebra de patente, é preciso ter os insumos, a capacidade de fabricar. Então, é preciso muito mais do que quebrar a patente. Nesse sentido, acho que a questão é anterior. É muito importante ter um parque industrial autônomo; é muito importante que exista uma indústria farmacêutica nacional, que existam indústrias, que nós não sejamos dependentes da seara internacional.
De que forma a senhora acredita que a pandemia e a quarentena vão afetar o crescimento dos países emergentes? E, no caso de países cuja economia é primária, podemos viver uma crise de desabastecimento?
Haverá uma grande crise econômica mundial – as bases dela já estão dadas–, e vamos ver como os países emergentes vão se posicionar nela. Tudo está em disputa. Se tem algo que é importante dizer nesse momento, é que o atual cenário geopolítico está em disputa, a narrativa que será construída a respeito dessa pandemia e do impacto dela sobre tudo, sobre as relações internacionais e a economia. Tudo isso está em disputa. E não temos ainda elementos essenciais de resposta, como qual será a amplitude de fato dessa pandemia em países emergentes como o Brasil; como ela vai se desenrolar; o quanto ela será catastrófica; se os sistemas de saúde desses países vão sobreviver; como sobreviverá a economia desses países e com quais características. São grandes traumas que podem ocorrer, e ainda não temos essa medida.
Obviamente haverá crise de desabastecimento em alguns lugares, pontualmente. Quando as respostas são bem organizadas, bem estruturadas, não há por que haver desabastecimento generalizado. Não foi adotado em nenhum lugar do Brasil o isolamento absoluto, então os serviços essenciais estão preservados em todos os lugares, inclusive o acesso à alimentação.