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Reportagem

Gestantes e mães com bebês enfrentam pandemia dentro das prisões paulistas

Cem gestantes e 50 lactantes com seus bebês correm risco de vida no epicentro da pandemia, enquanto Defensoria tem pedidos de habeas corpus negados pela Justiça

Reportagem
10 de maio de 2020
10:04
Este artigo tem mais de 3 ano

Neste momento, em São Paulo, epicentro da escalada da pandemia do coronavírus no Brasil, 100 gestantes e 50 mulheres amamentando seus bebês estão dentro de unidades prisionais do estado, segundo informações obtidas pela Agência Pública com a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Sem poderem receber visitas ou o jumbo (entregas de comida e itens de higiene, agora feitas apenas por Sedex, com limite de peso e frequência), por causa das medidas de isolamento social, é difícil dizer com certeza em quais condições de saúde, higiene e segurança se encontram essas mulheres e bebês. A comunicação com familiares é feita apenas por carta – oficialmente elas estariam podendo receber telefonemas, mas os familiares entrevistados pela reportagem afirmam nunca ter conseguido.

“Minha nora está na Penitenciária Feminina de Santana, grávida de seis meses, e eu estou sem acesso a ela. As cartas demoram demais pra chegar, o telefone vive ocupado, eu estou há três dias tentando ligar, não tenho notícias dela. Fico muito preocupada por ela estar gestante. Ela me manda carta dizendo que tá com vontade de comer as coisas e eu não posso mandar porque não pode entrar, agora só Sedex. Então eu fico chateada, triste, né?”, conta Maria*, que cuida de outros dois filhos pequenos, da nora e do filho. “Ela está à mercê lá. A gente não sabe como elas estão, estamos sem acesso. É muito ruim.”

Penitenciária Feminina de Pirajuí

Apesar de terem sido incluídas pelo Ministério da Saúde no grupo de risco, essas gestantes e lactantes têm recebido reiteradas negativas da Justiça para penas alternativas ou prisão domiciliar. O coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado, Thiago de Luna Cury, explica que o artigo 318 do Código de Processo Penal (CPP) já prevê que mulheres gestantes, com filhos de até 12 anos ou com alguma deficiência, tenham a prisão preventiva convertida em prisão domiciliar (como contamos nessa matéria), mas, para as que têm condenação definitiva, esse artigo não se aplica, relata o defensor.

“Por isso a gente fez um pedido no STF [Supremo Tribunal Federal] para que o Lewandowski reafirmasse a ordem que ele tinha emitido anteriormente para que as mulheres mães em prisão preventiva pudessem ficar em prisão domiciliar, instasse os juízes a cumprir aquela ordem e estendesse a ordem para as mulheres presas definitivamente, pensando neste momento de pandemia. O Lewandowski não concedeu o nosso pedido e não garantiu essa extensão de efeitos, que pra gente era o principal.”

Cury diz que o ministro apenas solicitou informações das secretarias e ainda fechou as portas para novos pedidos: “Esse habeas corpus não tinha transitado em julgado até então, ele não tinha mandado arquivar. Com essa nova movimentação, acho que para evitar novos pedidos ele determinou que certificasse o trânsito em julgado, então encerrou ali a jurisdição dele nesse assunto”.

O defensor conta ainda que paralelamente a Defensoria fez o pedido de um habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo [TJSP], elencando diversos grupos e hipóteses de pessoas a serem soltas tanto por questões pessoais, como idade ou doença crônica, quanto por situações processuais e condições de estrutura nas unidades prisionais. “Esse habeas corpus foi à presidência da seção criminal. Qualquer HC [habeas corpus], inclusive um coletivo, tem que ser distribuído para algumas das câmaras criminais do TJSP. São 16 câmaras que são competentes por julgar esses pedidos. O presidente da seção criminal, que é quem faz essa distribuição, ao invés de distribuir o nosso pedido, julgou e indeferiu liminarmente em uma decisão totalmente arbitrária e inconstitucional. Assim ele vedou o nosso acesso ao juiz natural da causa, que seria uma das câmaras criminais.”

Com as duas portas fechadas, a Defensoria Pública, com outras organizações, tentou ainda um pedido de habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (STJ), também sem sucesso. “Dentro desse habeas corpus, tinha também, basicamente, os mesmos pedidos que a gente fez para o Lewandowski, que seria a soltura de gestantes e lactantes. O discurso é geralmente o de ‘ah, vou soltar várias pessoas condenadas e isso é perigoso para a segurança pública’, algo que é totalmente falacioso. Mas, ainda dentro dessa ótica, soltar essas gestantes e lactantes não teria qualquer impacto.” Cury se refere ao pequeno número de mulheres grávidas e com bebês (150) diante do universo das penitenciárias femininas em São Paulo, onde 11.159 mulheres cumprem pena – 62,48 % por tráfico de drogas.

Banho frio, racionamento de água e sabonete

A maior preocupação da Defensoria Pública e de organizações que trabalham com mulheres dentro do sistema prisional, como o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), é com as más condições dos presídios. “Tendo em vista que as únicas medidas que podem minimizar a possibilidade de contágio do coronavírus é isolamento e higienização, isso é impossível dentro das prisões. Pelo núcleo a gente faz diversas inspeções e sabe que é impossível. O estado dos presídios hoje impossibilita qualquer garantia de isolamento e higienização. Grande parte das unidades prisionais tem racionamento de água, quase nenhuma tem entrega de itens de higiene de maneira suficiente. Entregar sabonete, que seria o mínimo do mínimo, não entregam. Tem racionamento de água e de água aquecida para banho, o que acaba agravando algumas doenças respiratórias, muita gente com hipertensão, diabetes”, explica Cury.

Isabela Shigunov, integrante do Projeto Mulheres Migrantes do ITTC, acrescenta: “A prisão em si, fora do contexto de pandemia, já é um lugar completamente insalubre para qualquer pessoa, especialmente para mulheres grávidas ou com bebês. Tem um documento da Pastoral Carcerária em que eles contam que a incidência de tuberculose, por exemplo, é 30 vezes maior lá dentro. E qualquer tipo de infecção, você tem mais facilidade de pegar. A gente considera que qualquer mãe ou gestante já está em uma gravidez de risco por estar presa.” Isabela frisa ainda que, em muitas unidades do estado, o atendimento às gestantes e mulheres com bebês “é muito precário”.

“Além disso, dados do Infopen [sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro] de 2016, que estão atrasados, mas é o que a gente tem, mostram que apenas 50% das gestantes e lactantes no país estão em unidades adaptadas. Várias mulheres relatam que celas que às vezes são para quatro, seis pessoas acabam tendo 12, 18 mulheres grávidas ou com seus filhos. E os recém-nascidos tomam muito pouco sol e desenvolvem doenças relacionadas a isso. Ou seja, mesmo antes da pandemia as condições não eram boas.”

Como mostra essa reportagem da Ponte, em maio do ano passado, familiares e organizações já denunciavam más condições e até uma epidemia não identificada dentro da Penitenciária Feminina de Santana. Em entrevista à Pública, o companheiro de uma das detentas de Santana, que pediu para não ser identificado, disse estar muito preocupado por não estar conseguindo contato com sua companheira: “Não tenho contato com ela. Ligo na unidade e eles não atendem, mando Sedex e ninguém atende… Ela está precisando de roupa de frio, a comida é horrível, vem bicho dentro! No Sedex só entra 500 gramas de bolacha. Não dá pra nada! Eles tratam a gente como se a gente estivesse devendo pra Justiça. Ela cometeu um erro, mas parece que nós todos somos criminosos. Não tem respeito. Eu preciso saber dela, preciso que alguém pegue a documentação pra apresentar pro juiz porque ela está doente. Tem tuberculose, não sei o que fazer. O banho lá é frio, como vai sarar? Não posso visitar, a carta demora pra chegar… Ela tá passando fome lá dentro”.

Com a filha na Penitenciária Feminina de Guariba, Lúcia* diz que também está muito preocupada com a falta de contato. “Está demorando demais pras cartas chegarem. Na última carta que eu mandei pra ela, falei o que estava acontecendo no mundo porque elas tinham direito de saber. E disse que eu queria resposta daquela carta porque, se ela fosse parada na censura, eu saberia que eles não estão querendo passar pra elas. Ainda não obtive resposta. Eu acho que elas não devem estar sabendo o que está acontecendo aqui fora. Porque nas duas cartas que eu recebi dela ela não fala tanta coisa. E lá não tem televisão e não é todas as celas que tem rádio.” Lúcia acredita que as mulheres estão em risco porque a prisão não tem como fornecer os cuidados necessários para evitar a pandemia. “Lá fica mais sem água do que com! Minha filha toma injeção pra não menstruar, porque como faz sem água? O tratamento com as meninas é muito desumano. Eu só posso mandar dois sabonetes. Você acha que só dois sabonetes dá? Agora é só por Sedex. Outro dia eu liguei na unidade pra saber se podia mandar mais produto de higiene e limpeza. A funcionária disse que não era pra mandar de higiene, que aumentou 2 quilos pra mandar mais produto de limpeza [o volume passou de 10 para 12 quilos]. Mas na verdade eles que tinham que dar produto de limpeza, né? Pelo menos durante a pandemia… Pra onde vai o dinheiro que eles dizem que gastam com o preso?”, questiona. E lamenta o fato de que a neta não vai poder falar com a mãe neste domingo: “Ela já chorou muito por causa disso”.

Thiago de Luna Cury diz que a situação na penitenciária de Guariba é tão grave que existe uma ação civil pública anterior à pandemia exigindo a instalação de equipe de saúde mínima, porque, apesar de receber gestantes e bebês, não há médico lá dentro. “Quando a gente vai fazer inspeção, talvez uma das cenas mais contraditórias que a gente vê, é ala de maternidade. Tem crianças presas. E sem médico. Se por acaso acontecer alguma coisa, não há acesso a médico de maneira rápida. É algo bem preocupante. Isso no contexto normal, agora adiciona nessa conta com uma das piores crises de saúde da história recente. Eu acho que é a receita para uma tragédia.”

Em todas as entrevistas feitas pela Pública com familiares por meio das organizações Mães do Cárcere e Amparar, as reclamações foram parecidas: a preocupação com as condições dos presídios, com a saúde das detentas, a falta de contato e a demora para as cartas chegarem, Sedex devolvidos ou barrados. Lúcia disse que o Sedex que manda para a filha chega a custar mais de R$ 250 e lembra que muitas famílias não têm condições e, por isso, muitas internas não recebem nada.

Isabela, do ITTC, diz que nos contatos por carta as mulheres comentam e conhecem muito pouco do que é de fato a pandemia de coronavírus. “As regras, os informes mal são passados pra elas e elas não conseguem ter uma dimensão de como as coisas deveriam estar sendo feitas. Mas o que a gente sabe em relação às regras sanitárias é que em várias penitenciárias os agentes não estão tendo uma formação própria. A gente não está lá dentro, mas sabe como é importante esse processo de formação para os protocolos sanitários, como seguir. Então a gente tem uma preocupação muito grande em relação a isso, porque, querendo ou não, os agentes são as pessoas que estão diretamente com elas, e eles saem e entram. Caso o Covid-19 seja levado para dentro das penitenciárias, isso é uma catástrofe sem precedentes, podendo assassinar milhares de pessoas. Aqui no estado de São Paulo, a questão do desencarceramento ou de penas alternativas está bem dura. No Rio de Janeiro, foi um pouco mais progressista. Mas aqui nós temos uma política bem mais punitiva em relação às pessoas em situação de cárcere.”

Cury reforça que, no caso das gestantes e mães, as decisões de soltura por meio de pedidos individuais não sofreram modificações durante a pandemia. “Tem algumas solturas? Tem. O Ministério da Justiça soltou um dado aleatório de 31 mil pessoas soltas por conta da pandemia, mas o próprio Conselho Nacional de Justiça diz que esse número de 31 mil é basicamente o mesmo número de pessoas que são soltas normalmente no mesmo período. Então não seria nada ligado direto à crise. A percepção que a gente tem é que o Judiciário está lavando as mãos, como se não fosse um problema deles enfrentar essa questão dentro das prisões, como se fosse uma questão do Executivo dar condições. E a gente sabe que o Executivo não tem condições, os presídios não têm condições.”

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade das fontes.

Julia Dolce/Agência Pública

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