Buscar

Mais de 5 mil crianças teriam frequentado atividades religiosas e culturais promovidas por homem acusado de abuso e violência sexual

Reportagem
14 de agosto de 2020
16:00
Este artigo tem mais de 4 ano

Todos os dias, dos 9 aos 11 anos, Ana Paula olhava apavorada para sua barriga imaginando que poderia haver dentro dela outra criança. Sem coragem de contar à mãe que havia sido estuprada, a menina escrevia cartas para si mesma numa tentativa de elaborar o que tinha vivido, e depois as queimava para que ninguém mais lesse. Foram dezenas de cartas escritas e queimadas ao longo de seis anos, e Ana Paula só parou o ritual aos 15, porque a mãe começou a perguntar o que a filha tanto queimava.

Nós nos encontramos com Ana Paula, hoje uma mulher de 25 anos, em Sete Lagoas, município de Minas Gerais. Ela nos recebeu no hospital onde trabalha como técnica de enfermagem para contar sua história e logo declarou que não se importava em dizer o nome real e mostrar o rosto para a reportagem. Em um momento de emoção, disse ter tirado do convívio com os pacientes – alguns também crianças e adolescentes vítimas de violência sexual – a coragem necessária para denunciar o que pode ser um dos maiores casos de crimes sexuais cometidos contra crianças da história de Minas. 

Depois de escrever e queimar centenas de cartas na infância, Ana Paula conseguiu finalmente denunciar a violência sofrida quando criança

Mais de 5 mil crianças

A investigação começou quando Ana Paula Fernandes dos Santos foi finalmente à delegacia no dia 18 de outubro de 2019 denunciar a violência sofrida quando criança. Ao voltar para casa, ela escreveu mais uma vez seu relato. Agora, porém, em vez de queimá-lo, publicou nas redes sociais. Imediatamente, várias mulheres começaram a comentar que haviam sofrido a mesma violência que ela na infância. Ana Paula não havia dito o nome do agressor, mas todas sabiam de quem se tratava. 

O caso levantou poeira na pequena cidade de Várzea da Palma, com 39 mil habitantes. Todos comentavam o escândalo envolvendo Dinamá Pereira de Resende, um simpático senhor de 54 anos nascido e criado na cidade que durante três décadas promoveu atividades religiosas e culturais gratuitas envolvendo crianças – especialmente meninas entre 6 e 14 anos de idade. 

Quando começamos a reportagem em junho deste ano, tivemos acesso exclusivo ao inquérito policial finalizado em janeiro de 2020, que deu origem à ação penal que ainda corre na Justiça. Os procedimentos estão em segredo de justiça por conter informações de abusos recentes, envolvendo menores de idade. São depoimentos de 16 testemunhas e 14 mulheres e meninas que se declaram sobreviventes de violência sexual sofrida. Conversamos com dez delas, cujos relatos estão disponíveis ao longo do texto. Algumas quiseram dar o nome real, outras pediram que a identidade fosse preservada. 

Segundo estimativa do delegado chefe das investigações, Guilherme Cardoso Vasconcelos, o número de casos pode ser muito maior do que as denúncias feitas. Isso porque desde 1987 pelo menos 5 mil crianças teriam passado pelas mãos de Dinamá, conforme diz o próprio suspeito, em depoimento ao inquérito policial.

Essas crianças teriam sido abusadas em diferentes cenários. Dinamá, segundo os depoimentos, cometia os crimes dentro das casas, no meio da rua e até mesmo no Centro Pastoral. Foi na igreja que ele criou a Liga Católica Mirim, em 1987, quando tinha 17 anos. Nessa liga, chamada por ele de “grupo católico social”, Dinamá reunia, semanalmente, crianças de 6 a 14 anos para ensinar o evangelho, louvores e cantos. Fora da igreja, ele criou grupos de dança folclórica e, durante as festas juninas, era ele quem ensaiava os alunos, dentro das escolas da cidade e da região. As meninas que aprendiam a dançar com ele no “Dinamá Show” eram chamadas de “Dinamitas”. 

Dinamá das crianças

Foi num ensaio de quadrilha, numa escola municipal da cidade, que Ana Paula conheceu Dinamá. A popularidade dele era tanta que, em 2004, se sentia seguro para concorrer ao cargo de vereador. Não venceu as eleições, mas, de acordo com Ana Paula, usou crianças de seus grupos para distribuir material eleitoral. Ela era uma das ajudantes. Com a desculpa de que os santinhos tinham acabado, Dinamá teria pedido a ela que fosse à casa dele buscar mais. Lá, segundo ela, o estupro teria acontecido. 

“Eu me lembro da roupa que eu vestia. Era uma calça com saia por cima, e uma blusa de florzinha que eu nunca mais consegui usar. Ele me pediu pra entrar na casa dele. Eu não queria, mas entrei. Eu confiava nele como quem confia em um professor. Lá dentro, ele me jogou na cama e tirou minha roupa. Eu não sabia o que ia acontecer, eu pensei que ele fosse me matar. Eu pedia pra ele parar. Eu sentia muita dor. Eu só queria que aquilo acabasse. Quando ele parou, era só o silêncio. Ele arrumou minha roupa, me subiu na moto e me deixou em casa, sem falar nada. Eu sentia nojo e medo. Nunca tive coragem de contar pra ninguém e me tornei outra criança. Eu não conseguia mais brincar, nem aprender as lições da escola.” 

Nesses 30 anos, as atividades de Dinamá ganharam em Várzea da Palma o reconhecimento e apoio dos moradores e se conectaram de tal forma que rezas, danças e brincadeiras com fantasia de palhaço passaram a fazer parte de sua estratégia para trabalhar com um público muito específico. Virou o “Dinamá das crianças”: um homem que preenchia uma lacuna de visibilidade e de cuidado deixada pelo Estado e, muitas vezes, pela própria família, oferecendo acolhimento e até comida para meninos e meninas carentes. 

Segundo o último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em Várzea da Palma a proporção de pessoas desocupadas em relação à população total era de 85,5% em 2018. Hoje, quase metade das famílias (40%) vive com rendimento mensal de no máximo meio salário mínimo por pessoa. Apenas 12% das casas têm tratamento de esgoto. 

Camila* conta que aos 4 anos precisou aprender a conviver com a dura realidade da miséria. Ela passou fome e vive até hoje num dos bairros mais carentes de Várzea da Palma. O pai, que trabalhava viajando, deixava a mulher e os filhos sozinhos, sem renda, num barraco feito de lona. Naquela época, a Liga Católica Mirim representava para ela um lugar de fé, onde, além de aprender a dançar e a se divertir, ela tinha, na maioria das vezes, os lanches e doces que faltavam em casa.

Camila diz ter sido abusada aos 11 anos durante o terço das crianças na casa de uma amiga

Protegido nas casas

Hoje com 36 anos, Camila nos recebeu na casa onde mora, no mesmo terreno onde ficava a casa de lona da família. Em quase duas horas de conversa, ela nos ofereceu os docinhos que faz para vender e, entre mulheres, se sentiu segura para contar sua história. Com os olhos na Bíblia sobre a mesa, ela lembrou que aos 11 anos foi rezar o terço das crianças, promovido por Dinamá, na casa de uma amiga. Esses encontros eram comuns e na maioria das vezes os pais é que abriam as portas do lar para que o homem ensinasse às crianças a importância da fé. Depois dos louvores, os pais costumavam assistir à televisão. Num desses momentos, Dinamá teria pedido que ela e sua amiga se sentassem no seu colo e, contando com a total distração dos adultos, os abusos teriam acontecido. “Ele passava a mão por dentro da blusa, apertava os meus seios e colocava os dedos dentro da minha vagina. Eu sabia que aquilo não era certo. Tentava sair, mas ele dizia que ia contar pra todo mundo que a gente estava atrapalhando a reunião. Eu olhava pra minha amiga e via que ele estava fazendo o mesmo com ela. Não consegui contar nada para ninguém. Parei de dançar. Me afastei. Só quando a Ana Paula teve coragem de falar sobre os abusos no Facebook que eu consegui falar também e até depor na polícia.” 

No fim do ano passado, duas meninas com idade entre 10 e 11 anos também foram à polícia, levadas pelas mães, contar que sofreram abusos na casa da avó de uma delas, em 2018. De acordo com os relatos, a estratégia que Dinamá já usava havia décadas parecia não ter mudado. Durante o terço das crianças, ele teria abusado das meninas sem que nenhum adulto percebesse. A mãe de uma delas nos contou que nunca gostou que a filha frequentasse o terço porque, na adolescência, havia escutado rumores sobre os possíveis crimes cometidos por Dinamá. Aos 15 anos, ela disse ter presenciado algumas brincadeiras que considerava estranhas. “Ele ficava cheio de gracinha para cima das crianças, mas disfarçava de brincadeira. Eu só deixei minha filha ir nesse terço porque ela insistiu muito e porque eu sabia que ia ter adulto na casa. Quando ela me contou que ele passou a mão nela, eu procurei por ele, para tirar satisfação. Mas não achei.” 

Ainda segundo ela, a filha relata ter se sentado ao lado de Dinamá, para atender ao pedido dele. Mas, durante a reza, ela e a amiga teriam sido tocadas em partes íntimas e, ao tentarem se afastar, contam que foram puxadas de volta. As investigadoras da Polícia Civil Maria Luiza F. Rocha e Lucilene Pereira L. Mendes e a escrivã Andrea Ferreira Moura, que fizeram as oitivas, afirmam no inquérito que as crianças foram vítimas de crime sexual cometido por Dinamá. Ele se valia da “confiança das vítimas e de seus familiares, que permitiam que suas filhas fossem ao terço acreditando que ele era um disseminador da fé”, declararam. 

Segundo as investigações, crianças em situação de pobreza, com problemas familiares, ou com pais ausentes eram as vítimas preferidas de Dinamá. “Os meus pais adoravam ele e a gente era muito pobre. Minha mãe e meu pai brigavam o tempo inteirinho. E todas as vezes que a gente precisava o Dinamá estava. Mas a gente nunca pensava que ele tinha um interesse a mais”, lembra Suely Pereira da Silva, hoje com 29 anos. Quando ela e a irmã Ireni tinham entre 10 e 11 anos, Dinamá teria passado a frequentar a casa da família. Ireni também prestou depoimento à polícia, onde confirma os abusos. De acordo com Suely, Dinamá costumava tocar nas partes íntimas dela. “Ele enfiava a mão dentro da minha roupa. Na época, eu não tinha nem seios, eu lembro que estavam começando a nascer e doía porque ele apertava e eu tirava a mão. Isso não aconteceu nem uma, nem duas, nem quatro… foram várias vezes.” Numa delas, Suely teria avisado que contaria para a mãe o que estava acontecendo. Mas Dinamá, segundo ela, fez ameaças. “Se você falar alguma coisa contra mim, eu vou fazer a sua mãe te bater. Ele disse isso porque já sabia do histórico da minha família. O meu pai era muito agressivo. Ele batia assim, pra matar!”, lembra.

Camila conta ter sofrido três abusos e um estupro, cometidos por homens diferentes. As marcas psicológicas impediram que ela realizasse seu sonho de estudar e trabalhar com o que gostaria. A chance de ser mãe, também pode ter se perdido em decorrência dos traumas. A menopausa, segundo ela, chegou cedo demais: aos 25 anos. Doenças como fibromialgia e transtorno de ansiedade se agravaram e só agora ela conseguiu receber ajuda de um psiquiatra voluntário. “Mas eu ainda quero ter uma criança, quem sabe se um tratamento me ajudasse. Eu conseguiria até me relacionar com um homem pra ter um filho. Queria ter um emprego, uma vida normal”, conta, com olhos marejados.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, publicado neste ano, a cada hora quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país e 75,9% das vítimas possuem algum tipo de vínculo com o agressor. 

8 anos de abusos, agressões e ameaças

Raiane Alves de Aguiar, hoje com 29 anos, mora no Paraná e conseguiu ter dois filhos, mas ainda carrega a dor da violência que também diz ter vivido na infância. Ela afirma que sofreu abusos de Dinamá quando tinha entre 8 e 9 anos de idade. “Dinamá era casado com minha tia. Ele entrou no quarto onde eu e minha prima estávamos dormindo. Ele começou a se masturbar, pegava em mim, botava a boca em mim. No outro dia, contei para minha prima e nós duas falamos para minha tia. Mas ela disse que eu deveria ter sonhado.”

A prima de Raiane é Silmara Alves Soares, hoje também com 29 anos. Não foi fácil falar com ela, e nem mesmo no inquérito constam muitas informações sobre o seu caso. Foram dias de troca de mensagens no WhatsApp até que, no momento em que terminávamos de escrever a reportagem, conseguimos contato por telefone. Enteada de Dinamá, Silmara contou que sofreu abusos, vivendo sob o mesmo teto que o padrasto, dos 6 aos 14 anos. Segundo ela, os crimes aconteciam diariamente e Dinamá era agressivo, ameaçando matar toda a família. “Teve uma vez num Natal, na casa da minha avó, que eu falei para minha mãe que eu não queria voltar para casa com ele. E ela falava: ‘Vai, é melhor você ir do que caçar confusão’. Mas eu não queria ir porque eu já sabia. Chegava em casa, aconteciam os abusos. Ele nunca chegou a penetrar em mim. Colocava nas pernas, beijava a minha boca com aquela língua áspera e passava a mão no meu corpo todo. Ele dizia que, se eu chegasse a contar para minha mãe, ele estourava o botijão de gás lá em casa e mataria ela e minha irmã.”

Certas de que suas filhas estariam seguras na Igreja, as mães as deixavam aos cuidados de Dinamá

Aos 13 anos, Silmara teria discutido com Dinamá e levado um soco no rosto. Ela conta que fez um boletim de ocorrência no quartel da cidade, mas a mãe retirou a queixa. Quando perguntamos a Silmara por que a mãe não acreditava nas denúncias, ela não teve dúvida. “Se você conversar com muitas mães, elas vão falar que Dinamá é um anjo! Ele passa toda a confiança para uma pessoa.” O desespero de Silmara a levou a acreditar que, tornando-se mãe poderia, enfim, livrar-se do abusador. “Comecei a namorar um vizinho e pedi pra ele me engravidar, porque eu não aguentava mais viver naquela casa. Aos 15 anos eu fui mãe.” 

A mãe de Silmara morreu sem acreditar que o marido pudesse ter abusado de crianças dentro da casa dela. “Eu agradeço a Deus ter levado a minha mãe, antes de ela saber que o cenário de quase todas as vítimas foi dentro da casa dela. Fui eu, Raiane, Ana Paula, minhas sobrinhas.” Daniele Cordeiro Ferreira, de 34 anos, também teria sido abusada lá. De acordo com ela, as dançarinas preferidas de Dinamá eram selecionadas para fazer apresentações do grupo Dinamitas, em outras cidades. “Tínhamos que viajar no outro dia bem cedo, por isso Dinamá pediu para eu dormir na casa dele e minha mãe deixou. A gente estava assistindo televisão, eu no sofá e Dinamá deitado no carpete ao lado das enteadas. Quando eu acordei, estava no mesmo lugar, nua da cintura para baixo e com Dinamá em cima de mim. Ele estava nu e forçava a penetração. Fiquei machucada e doía muito.” Daniele conta que não entendia o que estava acontecendo. “Empurrei ele, que caiu e fez barulho. A mulher dele gritou do quarto perguntando o que estava acontecendo e Dinamá falou que tinha escorregado e caído.” 

Daniele disse que até então, para ela, Dinamá era uma pessoa da igreja. “Eu fiquei com medo dele depois, tanto que no outro dia a gente foi fazer a viagem e ele agia como se nada tivesse acontecido. Eu tive medo e vergonha de contar para a minha mãe.” Dona Ilza Cordeiro só descobriu anos depois a violência sofrida pela filha. Em entrevista à nossa reportagem, ela disse que se sente devastada. “É muito difícil, eu prefiro nem me lembrar de uma coisa dessas porque, na época, a pessoa era de casa. Então, fica muito difícil pra gente depois de tanto tempo descobrir uma barbaridade dessas”, lamenta. 

Segundo as investigações, um dos casamentos de Dinamá teria acabado depois que a esposa percebeu um envolvimento excessivo dele com sua filha, na época com cerca de 12 anos. A menina não relata no inquérito abusos por parte do padrasto, mas conta que Dinamá se deitava em sua cama quando a mãe saía para trabalhar. 

Invisível nas ruas 

Raiane Letícia contou ainda que também foi abusada no meio da rua aos 8 anos. “Ele pediu à minha mãe para me ensinar a andar de moto. Ela deixou. Em cima da moto, ele se aproveitou para abusar de mim.” Isso teria acontecido enquanto a menina tentava se equilibrar, pilotando pela primeira vez. Em depoimentos que constam no inquérito, Dinamá teria se aproveitado de outras crianças em caronas de bicicleta. 

Silmara diz que viveu o mesmo sobre a moto do padrasto. Ela se lembra, ainda, que costumava ir com a família nadar em um dos rios da cidade, onde Dinamá a obrigava a pegar em suas partes íntimas, com as mãos escondidas sob a água. “Eu pensava em gritar para as pessoas todas ouvirem. Mas depois eu pensava que ninguém ia acreditar em mim e, mais tarde, seria só minha família em casa. Eu tinha medo do que ele podia fazer.” 

Quando caminhamos pelas ruas de Várzea da Palma, vimos casas muito simples, típicas do interior mineiro. Nesse cenário, uma delas nos chamou atenção. Diferentemente das outras, havia na casa uma única janela com uma grade chumbada de lado a lado. Era a casa de um avô que afirma ter soldado o ferro na parede após ter flagrado a neta sendo abusada por Dinamá. Esse avô nos disse que ouviu rumores de que o homem estaria abusando de sua neta, na época com 11 anos. Um dia, quando virou a esquina da casa onde moravam, teria flagrado o homem com metade do corpo para dentro da janela do quarto dela. O avô até tentou fazer justiça com as próprias mãos, mas Dinamá teria fugido e nunca mais se viram. Tempos depois, escutando a rádio na cidade, o avô disse ter ouvido o agressor mandar um abraço para ele e sua família. 

Avô fixou grade de ferro na parede da casa após flagrar Dinamá abusando da neta

Escondido na igreja

Ainda segundo as investigações, Dinamá se aproveitava da fé das famílias e da inocência das crianças para ganhar a confiança de todos, inclusive dos padres. Elaine Silva, que hoje tem 34 anos, conta que na igreja as meninas ensaiavam apresentações de dança, cantavam em um coral e tinham aulas sobre o Evangelho. Tudo coordenado por Dinamá. Ela nos disse por telefone que, aos 11 anos, foi abusada por ele numas das salas do Centro Pastoral de Várzea da Palma, chamada de “quartinho”, quando foi para um ensaio. “Só o Dinamá estava lá. Ele me puxou para dentro de uma sala onde ficavam guardadas as cadeiras da catequese. Estava tocando aquela música, ‘Lua de cristal’, da Xuxa. Eu vi que ele foi fechar a porta e, quando eu fui tentar abrir, ele me agarrou e começou a passar a mão em todo meu corpo. Eu tentava escapar, mas ele tinha muito mais força do que eu. Eu só via as paredes e cadeiras brancas, e ouvia aquela música. Ele me encostou na parede e beijava meu pescoço, forçando que eu pegasse nos órgãos genitais dele. Quando eu consegui fugir, as outras meninas estavam chegando. Elas me perguntaram por que eu estava chorando. Eu contei e disse que nunca mais voltaria!”

Elaine lembra que não teve coragem de contar nada para a família, até se tornar adulta. Disse que, na época, era ameaçada. “Eu me sentia culpada porque Dinamá era considerado um santo na cidade. E ele dizia que, se eu contasse, as pessoas iam acreditar nele, e não em mim. Minha mãe trabalhava muito, meu pai também. Eles não faziam nem ideia de que isso podia estar acontecendo. Eu nunca contei pra ninguém e quebrei o silêncio ano passado, com meu esposo. A cabeça da gente nunca mais é a mesma. Até hoje, vêm as lembranças horríveis do que passei. Peço a Deus que me dê a graça de esquecer tudo isso um dia.”

Muitas mulheres entrevistadas por nós confirmam a existência de um quartinho, hora chamado de vestiário ou banheiro. Elas se referiam ao local onde trocavam de roupa antes e depois dos ensaios. Algumas dizem desconfiar que Dinamá ficava olhando enquanto elas se vestiam. Uma integrante do grupo Dinamitas, hoje com 40 anos, e que preferiu não se identificar, disse no inquérito que Dinamá às vezes entrava sozinho com crianças nesse espaço, ficando lá por bastante tempo. Ela conta que eram sempre meninas e que nunca foi escolhida para ir a esse quartinho, que ficava no Centro Pastoral de Várzea da Palma. Sem imaginar o que acontecia lá, se sentia excluída. “Ele sempre escolhia as bonitinhas, as magrinhas, por isso que eu comentei com a minha mãe se tinha alguma coisa errada comigo, porque ele nunca me escolhia, não conversava comigo. Agora eu entendo.”

Quando a enteada de Dinamá, Silmara, fez um boletim de ocorrência por agressão, o padre da igreja, Ricardo César, o teria expulsado da igreja. “Na época, minha mãe chegou a conversar com padre Ricardo dizendo que não precisava disso, que era briga de família. Mas o padre falou que não. Que Dinamá mexe com criança e eu não era a primeira que tinha falado. Pouco tempo depois, o padre Ricardo foi morar em Pirapora e Dinamá voltou.” 

A Arquidiocese de Diamantina, responsável pelas igrejas de Várzea da Palma, disse em nota que “não tem nada a dizer, por absoluto desconhecimento sobre o assunto”, se referindo às denúncias de abusos sexuais cometidos contra crianças dentro do Centro Pastoral. 

Infiltrado nas escolas 

Alunas da mesma escola municipal em que Ana Paula teria conhecido Dinamá, duas meninas afirmam ter sido abusadas por ele em 2018. Elas teriam recorrido primeiro à professora para relatar a violência. Em depoimento, dizem que fizeram isso pois se sentiam constrangidas em conviver com o agressor no ambiente escolar, onde ele trabalhava como pedreiro e também ensaiava apresentações de dança. A professora não foi encontrada pela reportagem apesar de várias tentativas de contato mas, no inquérito consta que, ao ouvir as crianças, ela teria colocado as duas frente a frente com o agressor a fim de entender o que havia acontecido. Dinamá teria então desmentido as crianças na presença da professora. A mãe de uma das vítimas confirma a história.

Ao ser ouvida pelos investigadores, a diretora da escola contou que sempre foi do seu conhecimento que o suspeito tinha fama de “mexer com crianças”. Ela, inclusive, havia feito parte do grupo de dança dele na infância. “Éramos eu e minha irmã. A gente ficou pouco tempo porque minha mãe não deixou a gente continuar.” No depoimento à polícia, disse ainda que sempre teve o cuidado para que não houvesse muita intimidade entre os alunos e Dinamá. No entanto, ela afirma que ele “sempre apresentou comportamento normal” no ambiente escolar.

“Os diretores e pais têm confiança em mim e me dão as chaves da escola para os ensaios aos sábados e domingos com as crianças”, afirmou o próprio Dinamá no inquérito policial.

Ao conversar conosco, a diretora da escola afirmou que não se sente responsável pelos atos de Dinamá. “Como os abusos não aconteceram dentro da escola, nós não temos nada a ver com isso.”

O secretário municipal de Educação, Ronan Ângelo Leal, não atendeu nossas ligações, mas nos respondeu por mensagem. Ele disse não acreditar que funcionárias da escola pudessem ter negligenciado o caso. E afirmou que só tomou conhecimento da história quando a denúncia da polícia chegou à Secretaria de Educação e foi solicitado o afastamento de Dinamá. Antes disso, “nunca recebi nenhuma reclamação, nem da direção ou de pais”, disse.

Disfarçado nas redes sociais

No Facebook, Dinamá aparece vestido de palhaço ou com roupas de folia de reis, sempre cercado de crianças. Também há dezenas de fotos de meninas e posts exaltando sua beleza, carisma e charme. Numa delas, em 2016, Dinamá fala de uma relação antiga de amizade com uma menina de 7 anos. 

No perfil aberto de Dinamá no Facebook, há dezenas de fotos de crianças e adolescentes

Durante as investigações, a polícia encontrou uma postagem de 2016 em que Dinamá teria compartilhado a foto de uma menina vestida com roupas íntimas e usado a legenda “gostosinha”. Na época, ao tomar conhecimento do post, a conselheira tutelar da cidade, Elisângela Castelo Branco, teria mencionado o Estatuto da Criança e do Adolescente, que trata de divulgação de pornografia. O post teria sido apagado por Dinamá e a criança acabou não sendo identificada. 

No inquérito consta ainda que, exatamente quando começaram as denúncias, Dinamá teria tentado destruir provas que pudessem incriminá-lo. Ele teria ido à delegacia da Polícia Militar relatar o desaparecimento de seu computador, mas não quis fazer um boletim de ocorrência. Ricardo Pereira Maia de Souza foi o policial que recebeu Dinamá e disse perceber que ele estava preocupado apenas em fechar sua conta de Facebook. Há também no documento depoimentos que afirmam que Dinamá mantinha fotos pornográficas de crianças embaixo de seu colchão. Seriam fotos de meninas com cerca de 8 anos, tiradas por ele mesmo e também baixadas da internet. Segundo o inquérito, um técnico em informática teria encontrado arquivos digitais envolvendo pornografia infantil em seu computador, ao ser contratado para formatar a máquina. 

Ignorado pela imprensa

Aquelas mulheres que se reconhecem como vítimas de violência sexual na infância e não foram vistas pela família, pela igreja, pela escola e por uma cidade inteira não despertaram interesse na mídia tradicional quando suas denúncias finalmente tomaram corpo, num inquérito. Ao contrário, Dinamá teria ganhado espaço numa rádio local para se promover. Moradores contam que, já apontado como suspeito de violência sexual contra crianças, ele teria usado a mídia para mandar recados, tentando agradar a parentes de possíveis vítimas.

Silmara Alves Soares conta que buscou ajuda da imprensa quando ainda era adolescente. Aos prantos em uma praça, há cerca de 12 anos, ela teria sido abordada por um jornalista da cidade. Era Dirceu Marques de Oliveira, o Dirceu Borboleta, conhecido em Várzea da Palma pelas reportagens de denúncia que publicava no jornal Tribuna do Povo. Para ele, Silmara diz ter revelado sua história. “Eu lembro como se fosse hoje, eu estava na praça de eventos chorando muito. Ele chegou perto de mim para conversar. Eu contei para ele a história todinha do que Dinamá fez comigo. Aí, ele falou: ‘Pode publicar?.” Dirceu teria se interessado em iniciar uma investigação jornalística, mas a história nunca chegou a ser publicada. Em junho deste ano, ele morreu por complicações de uma doença. 

Esquecido pela Justiça 

Para a equipe policial envolvida nas investigações, há fatos mais do que suficientes para que Dinamá seja preso. Além dos novos casos, denunciados em 2018, a lei determina que o estupro de menores de 14 anos prescreve em 20 anos a contar dos 18 anos da vítima e que o crime de corrupção de menores prescreve em 12 anos, também a contar dos 18.

“Não há dúvidas de que Dinamá cometeu estupro de vulnerável contra diversas crianças e adolescentes. Diante dessa realidade, sugerimos à vossa excelência o indiciamento de Dinamá Pereira de Resende.” Essa é a conclusão do inquérito policial, em 15 janeiro de 2020. “Temos relatos idênticos com 20 anos de diferença de mulheres que não se conheciam. Algumas relatam que, na época, nem sabiam que tinham sido abusadas e que isso só ficou mais claro com o amadurecimento delas”, afirma o delegado. 

Guilherme Cardoso Vasconcelos tinha acabado de assumir o cargo de delegado na cidade quando ouviu rumores dos possíveis abusos cometidos por Dinamá. Professor de direitos humanos na Academia de Polícia de Minas Gerais, ele deu prioridade ao caso. Vasconcelos explica que percebeu em Dinamá um padrão para escolher suas vítimas. “Ele é uma pessoa extremamente dissimulada que deturpa comportamento sexuais com um forte discurso religioso e tenta de todas as formas camuflar o seu verdadeiro interesse de abusar das meninas. Isso deu certo nesse tempo todo, quase 30 anos de atuação.”

O promotor Guilherme Abras acolheu o pedido de prisão preventiva feito pela Polícia Civil com base no artigo 217-A do Código Penal, que diz que “aquele que mantiver relação sexual ou praticar outro ato libidinoso com menor de quatorze anos incorrerá na prática do crime de estupro, sujeitando-se à penalidade de oito a quinze anos de reclusão, independentemente de ter agido com culpa ou dolo”.

O delegado Guilherme Vasconcelos, responsável pela investigação

O pedido, contudo, foi negado pelo juiz Pedro Fernandes Alonso Alves Pereira. Na decisão, de 19 de dezembro de 2019, ele alega que havia alternativas, não sendo necessária a prisão naquele momento. Segundo o documento, foi levado em consideração o fato de Dinamá ser réu primário, sem nunca haver cumprido afastamento disciplinar e, também, o tempo decorrido dos fatos. O juiz decidiu por aplicar apenas medidas cautelares. 

Com essas medidas, válidas por 180 dias, Dinamá ficou proibido de ter contato com as vítimas dos autos e seus familiares, mudar de endereço sem comunicar à Justiça previamente, trabalhar em qualquer atividade pública em que tivesse contato com crianças e adolescentes e participar de programas envolvendo meninos e meninas, tais como Dinamá Show, Dinamitas e Liga Católica Mirim, por exemplo.

Quando a validade da determinação acabou, passaram-se duas semanas sem que houvesse movimentação judicial. Provocamos o promotor para o fato de Dinamá estar absolutamente livre. Quatro dias depois, o sistema do Tribunal de Justiça mostrava que o prazo de validade das medidas cautelares havia sido prorrogado por mais 180 dias. 

Abras não quis se pronunciar sobre o caso, mas disse que foi encaminhada pelo Ministério Público, no dia 27 de julho, uma proposta de ação penal em relação aos fatos que dizem respeito a duas vítimas. Quanto às outras mulheres que aparecem no inquérito, Abras afirmou que foram solicitadas novas informações à delegacia. Se no tempo da ação penal a validade das medidas cautelares vencer, um novo pedido de prorrogação poderá ser feito. 

“Eu entendo o juiz, uma vez que não houve flagrante. Não obstante, a fim de assegurar a idoneidade da instrução processual, a decretação da prisão se faria medida necessária, tendo em vista que, segundo as investigações da Polícia Civil, existem grandes chances de o indiciado ter destruído provas em seu notebook e estar usando a desculpa de ter sido roubado. Apesar disso, o fato de o juiz ter mantido as medidas cautelares é uma segurança para a sociedade e para as próprias vítimas”, afirma Ana Luiza França Santos, advogada das mulheres que teriam sido vítimas de abuso sexual durante a infância. 

Ireni Pereira da Silva, 31 anos, irmã de Suely, não quer conversar com mais ninguém. Ela aparece no inquérito como uma das vítimas, mas se recusou a gravar entrevista. Diz ter perdido a esperança na Justiça e nos mandou esta mensagem: “Ele está livre, não está? Nós estamos presas com lembranças nojentas. Os toques dele, a lembrança da mão dele no meu corpo, me dá ânsia de vômito. Acho que as pessoas que estão fora da situação não fazem ideia. Ele conseguiu me fazer uma mulher insegura, indesejável. Eu tinha só 11 anos, a idade do meu filho hoje. Você faz ideia disso? As pessoas nos fazem lembrar de tudo e depois somem. Me perdoem. Pra mim não faz sentido mais”.

Dinamá deturpa comportamento sexuais com um forte discurso religioso, diz delegado

O que diz Dinamá Pereira de Resende

Dinamá tinha o direito de permanecer calado diante da polícia de Várzea da Palma, que estava pronta para colher o depoimento dele, em 6 de dezembro de 2019. Mas resolveu falar. Estava ao lado do advogado Santiago Átila Santiago. Dinamá não só respondeu às perguntas como acrescentou suas percepções sobre o caso. Para ele, tudo não passa de uma trama muito bem orquestrada pelas supostas vítimas. 

Atualmente, segundo o inquérito, ele trabalha como pedreiro contratado pela prefeitura da cidade, mesmo dizendo ter curso superior em pedagogia. “Quando eu passei no concurso, eles me tiraram do setor de estrutura e me colocaram como pedreiro para atuar somente em escolas, porque como trabalho com ensaio de quadrilhas nas escolas é mais fácil de me liberarem.” Antes ele teria sido, também, monitor infantil e professor. E desde seus 17 anos já era atuante nas atividades da Igreja Católica. Dinamá conta que as reuniões envolviam crianças de 6 a 14 anos, começavam com orações e cantos e terminavam com lanches. E a partir da Liga Mirim ele foi desenvolvendo outras atividades para as crianças da cidade como: folias de reis mirim, time de futebol, coral, além de programas de rádio e terços que eram ensinados para as crianças em suas casas. O grupo de dança com meninas também era coordenado por Dinamá. 

Em Várzea da Palma, Dinamá teria se aproveitado da fé para ganhar a confiança das famílias e abusar de crianças, ao longo de 30 anos

No dia em que foi ouvido no inquérito, ele disse que estavam sob sua responsabilidade atividades envolvendo 150 meninos e meninas. E afirmou que desde que começou a trabalhar, há mais de 30 anos, atendeu cerca de 5 mil crianças. 

Procurado pela reportagem, o advogado de Dinamá Pereira de Resende, Santiago Átila Santiago, disse que ele e seu cliente não se posicionariam a respeito das denúncias: “Vamos ficar calados”.

Você sabe de casos de violência sexual envolvendo Dinamá Resende?

Você ou alguém que você conhece passou por uma situação de abuso sexual envolvendo Dinamá Resende ou outra liderança religiosa? Nós queremos ouvir a sua história. Seu relato pode nos ajudar a investigar e revelar outros casos como os que expusemos nessa reportagem.

Nós garantimos que a sua identidade será protegida e as informações que você compartilhar por meio deste questionário só serão publicadas com a sua permissão explícita. Este é apenas um primeiro contato entre você e nossas repórteres.

This form requires JavaScript to complete.
Fotógrafo:

*Os nomes foram modificados para preservar a identidade da fonte.

Vera Godoi/Agência Pública
Reprodução/Facebook
Reprodução/Facebook
Vera Godoi/Agência Pública
Vera Godoi/Agência Pública
Vera Godoi/Agência Pública
Reprodução/Facebook
Reprodução/Facebook
Reprodução/Facebook
Reprodução/Facebook
Reprodução/Facebook
Reprodução/Facebook
Vera Godoi/Agência Pública
Vera Godoi/Agência Pública
Vera Godoi/Agência Pública

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Leia também

Investigamos a violência sexual no Marajó – e não é nada do que a ministra Damares diz

Por

Ao lançar o programa “Abrace Marajó”, ministra propôs soluções esdrúxulas, como fazer uma fábrica de calcinhas, para um problema social agravado por falta de políticas públicas

Damares culpa mulheres ao dizer que problema é calcinha, diz juíza

Por

Para Elinay Melo, que atua no Marajó, fala de Damares atribuindo exploração sexual infantil à “falta de calcinha” culpabiliza a vítima e ignora a miséria e a ausência do Estado

Notas mais recentes

Governo corta gastos e STF julga suspensão do WhatsApp e papel das redes nesta semana


MPF recomenda à Funai que interdite área onde indígenas isolados foram avistados


Reajuste mensal e curso 4x mais caro: brasileiros abandonam sonho de medicina na Argentina


Do G20 à COP29: Líderes admitem trilhões para clima, mas silenciam sobre fósseis


COP29: Reta final tem impasse de US$ 1 trilhão, espera pelo G20 e Brasil como facilitador


Leia também

Investigamos a violência sexual no Marajó – e não é nada do que a ministra Damares diz


Damares culpa mulheres ao dizer que problema é calcinha, diz juíza


Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes