Uma decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deixou em suspenso o tratamento daqueles que dependem do cultivo doméstico de cannabis para tratar doenças graves como epilepsia, câncer, Parkinson e esclerose múltipla. No final de março, os ministros decidiram por unanimidade negar o pedido de habeas corpus (HC) preventivo para uma paciente do Rio Grande do Sul plantar maconha e assim produzir seu próprio remédio, sem ser presa por isso.
A justificativa da 5a Turma foi que não lhe competia apreciar o HC e que a paciente deveria procurar autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A Anvisa, já reconheceu, em 2015, o uso medicinal da cannabis e liberou a importação de remédios à base de CBD (um dos princípios ativos da maconha). Em 2019, a produção brasileira de remédios a partir de extratos de CBD e THC importados foi regulada.
No entanto, o cultivo de maconha medicinal no Brasil segue sem regulação pela União, seja através da Anvisa, do Ministério da Saúde ou do Ministério da Agricultura, como determina a Lei de Drogas, de 2006. Por isso, continua sendo crime.
A Anvisa é taxativa ao afirmar que não cabe a ela decidir sobre o cultivo da planta. Em nota à Pública, o órgão reiterou que, em 2019, arquivou uma proposta de resolução que tratava de plantio e cultivo de cannabis para fins exclusivamente medicinais e científicos, sendo um dos argumentos a sua incompetência para tratar do tema – o oposto do que deseja o STJ. A Anvisa afirmou também que não recebeu nenhum comunicado do tribunal.
A nova decisão foi publicada no Boletim de Jurisprudência do STJ em 29 de março e já influenciou pelo menos três tribunais estaduais a mudar seu posicionamento, recusando-se a apreciar HCs, segundo apurou a Pública.
Doentes pedem habeas corpus para plantar
Para preservarem a possibilidade de plantar cannabis para seu tratamento, pacientes têm impetrado habeas corpus preventivo para que a Justiça lhes permita cultivar sem serem tratados como criminosos. Centenas de ações semelhantes foram vitoriosas nas justiças estaduais, permitindo o cultivo medicinal.
O pedido em questão era de uma paciente de 30 anos com epilepsia refratária e outras síndromes raras, o que a leva a ter dezenas de crises epilépticas diárias, além de sensibilidade extrema a ruídos. O advogado André Feiges, fundador da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma), explica que, após diversas tentativas de tratamentos e muitos efeitos colaterais, a paciente teve bons resultados com cannabis. Outros medicamentos, por causa de reação metabólica, deixam de fazer efeito, mesmo os industrializados à base de cannabis. O produto artesanal foi a solução porque a variação de canabinóides (moléculas com propriedades terapêuticas e psicoativas) e terpenos (moléculas que definem o aroma e o sabor) evita a saturação do organismo da paciente.
Feiges explica que o HC tem o objetivo de pedir o reconhecimento de que não há prática de crime ao se cultivar cannabis para fins medicinais. A manobra é corajosa porque a Justiça avisa as polícias locais e lhes pede parecer sobre o cultivo. Após as decisões favoráveis, esses órgãos são novamente notificados, justamente para reforçar a ideia de que os pacientes não sejam presos.
Em seu voto, o ministro relator do caso no STJ reconheceu a importância do uso medicinal da maconha, mas votou contra, “lamentando a impossibilidade de tecer maiores considerações a respeito deste tema que é tão instigante e necessário na área da saúde”. O magistrado recomendou ainda “expressamente à Anvisa que analise o caso e decida se é viável autorizar a recorrente a cultivar e ter a posse de plantas de Cannabis Sativa para fins medicinais”.
“Vamos ter a Cracolândia como capital da Alegria”
Após o término da leitura do voto do ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca, a defesa pediu permissão para falar a respeito de um erro sobre uma “questão de fato” e afirmou: “O ministro relator, pelo que eu entendi, mas não sei se entendi, diz que a Anvisa aprovou uma norma para cultivo de cannabis. Porém no ordenamento vigente não existe tal norma. O que foi aprovado foi a manipulação de matéria-prima importada para produção de produto final, mas não do próprio cultivo…”.
O ministro relator responde: “Senhor presidente, estou aqui com uma publicação do dia 23 de março, da… H, Y, P, E, N, E, S, S… prefiro falar assim, pois não sei se é inglês ou se é algum site brasileiro, em que revela que por unanimidade a Anvisa aprovou o plantio de maconha medicinal”. Em seguida, o ministro cita um trecho da reportagem que diz: “A liberação da maconha para fins medicinais e de pesquisa está mais próxima depois de decisão unânime da Anvisa”. E concluiu: “É nesse sentido que eu digo que há manifestação no sentido da possibilidade do plantio de maconha medicinal. Não sou eu que está falando sem uma referência documental”.
A manchete do site Hypeness dizia: “Por unanimidade, a Anvisa aprova plantio de maconha medicinal”. O problema é que isso nunca ocorreu. A notícia citada no julgamento foi publicada no dia 12 de junho de 2019, quando a Anvisa abriu uma chamada pública para discutir a regulação da maconha medicinal, na qual discutia também o cultivo de maconha para produção de remédio, sob exigências extremas de segurança e controle.
Não havia, portanto, nenhuma decisão unânime da Anvisa para aprovar o plantio de maconha, como dizia a manchete.
Em dezembro daquele ano, a proposta de regulação do cultivo acabou sendo rechaçada na portaria final da Anvisa, a RDC 327, promulgada no dia 9 de dezembro de 2019. Na ocasião, Antônio Barra Torres, então diretor da Anvisa, atualmente diretor-presidente, apresentou um voto de 54 páginas afirmando que a competência da regulação do cultivo de cannabis é do Ministério da Saúde.
No entanto, o título publicado pelo site Hypeness ficou no ar por quase dois anos e só foi mudado depois da decisão do STJ. Procurada pela Pública, a revista afirmou: “Cometemos um erro, humanos que somos. A manchete da matéria de fato trazia um equívoco, que foi corrigido com uma errata assim que ficamos sabendo do caso”. O site diz que “as informações internas da matéria que nele constam são todas verdadeiras”.
No julgamento, após o relator, tomou a palavra o ministro Felix Fischer, decano do STJ: “Na sua manutenção a excelência deixou claro ‘sob fiscalização’, senão daqui a pouco vai todo mundo ficar plantando dizendo que foi autorizado. Então vossa excelência destacou bem ‘sob fiscalização’. Senão vamos ter a Cracolândia como capital da Alegria. Não faz muito sentido”.
Os demais ministros seguiram o relator, negando o pedido formulado no HC de forma unânime.
Procurado pela reportagem, o STJ afirmou em nota que a decisão “manteve a negativa de salvo-conduto quanto ao aspecto do plantio, sem autorização e fiscalização administrativa”, mas que “ recomendou-se, todavia, o pronunciamento administrativo concreto da Anvisa sobre o pleito da parte relativo ao plantio”.
No entanto, a Anvisa já assumiu que não lhe compete regular o cultivo de cannabis no Brasil. A reportagem teve acesso a pedido de Lei de Acesso à Informação (LAI) em que o advogado Emilio Figueiredo, também da Reforma, pergunta: “Qual é o caminho administrativo para obter a autorização de cultivo doméstico de cannabis para fins medicinais do próprio paciente?”. A resposta, dada no dia 5 de março deste ano, é clara: “Conforme decisão proferida pela Diretoria Colegiada da ANVISA em 03/12/2019, na Agência restou consolidado o entendimento de que a ANVISA não possui competência para regulamentar o plantio e o cultivo da planta Cannabis”.
A reportagem procurou a Anvisa para pronunciar-se sobre o caso, mas o órgão informou que ainda não foi intimado da decisão pelo STJ.
“Essa família ficou psiquicamente arrasada, destruída, a esperança de que a questão fosse decidida adequadamente ou de que, no mínimo, fosse julgada com seriedade, foi arrasada na frente dela. E acabou! Essa pessoa desistiu. Ela perdeu todas as esperanças no Poder Judiciário”, diz Feiges.
Com nova jurisprudência, outros pedidos são negados
A decisão da 5ª Turma foi publicada no boletim do STJ e já influenciou decisões de primeira instância no Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará. A juíza Gisele Guida de Faria, da 41ª Vara Criminal do Rio, que concedeu em 2016 o primeiro HC para cultivo no Brasil, foi também a primeira a recusar-se a apreciar um HC, baseada nessa decisão.
O advogado do caso, Emilio Figueiredo, também um dos fundadores da Rede Reforma, diz que se trata de um paciente adulto com doença neurológica grave que passou a plantar porque não conseguia custear o tratamento com produto importado. Desde então, teve melhora comprovada pelo médico. Quando o processo foi julgado, a decisão do STJ já havia sido publicada. “Então, na semana seguinte, a juíza decide, a partir desse informativo de jurisprudência do STJ, que não cabia HC e seria o caso da Anvisa autorizar ou uma ação civil”, diz o advogado.
O advogado Erik Torquato, da Reforma em São Paulo, também teve um HC afetado pela decisão. “A proibição é uma armadilha antidemocrática que segrega brasileiros. Com essa nova decisão do STJ, os juízes que já eram resistentes ao uso medicinal estão mais à vontade para negarem os pedidos”, explica o advogado.
Torquato atendeu um paciente de dores crônicas em São Paulo e teve o HC negado em primeira instância, mas recorreu em segunda instância e conseguiu garantir o direito do paciente.
No Ceará, o advogado Ítalo Coelho impetrou um HC em novembro do ano passado para um paciente de 59 anos que sofre de artrose lombar, o que causa muitas dores há cerca de 12 anos. Ele tentou vários tratamentos e encontrou melhoras com o uso do óleo artesanal feito a partir de seu cultivo. Coelho explica que o processo ficou parado com o juiz por cinco meses. “Ele só decidiu depois dessa decisão temerária do STJ, falando que é uma competência administrativa da Anvisa”, diz o advogado.
Coelho pretende recorrer da decisão. “O perigo que os pacientes tomam não é de levar uma multa, não é um ilícito administrativo. Eles correm risco de serem presos”, diz.
Liberação no Brasil privilegia grandes farmacêuticas
Embora a venda de medicamentos à base de maconha seja regulada desde 2019 pela Anvisa, o cultivo continua proibido. Assim, os poucos remédios produzidos no Brasil são feitos por grandes farmacêuticas como a brasileira Prati-Donaduzzi, a partir de matéria-prima importada, custando em média R$ 2.500 um frasco de 200 ml. Além dela, há medicamentos produzidos artesanalmente por algumas associações que conquistaram na Justiça o direito de cultivar maconha para seus associados, a um custo médio de R$ 150 por 300 ml.
Segundo a Federação das Associações de Cannabis Terapêutica (Fact), há hoje no país mais de 20 mil pacientes que recebem extratos à base de cannabis das cerca de 40 associações já constituídas – as maiores são a Abrace (PB), Apepi (RJ) e Cultive (SP) –, além do número incalculável de pacientes que conseguem a cannabis medicinal mediante importação ou judicialização.
Sheila Geriz, coordenadora da Fact, explica que a proibição do cultivo atenta contra os produtores brasileiros e “representa um desrespeito ao direito à saúde e à soberania nacional”.
“Condicionando a produção nacional à importação de insumos, a Anvisa deixa o Brasil refém do já milionário mercado internacional de cannabis, inviabiliza o desenvolvimento de pesquisas no país, impede a produção de derivados mais acessíveis aos pacientes usuários, impede o desenvolvimento de produtos a partir de variedades nativas do Brasil e desconsidera a enorme capacidade de produção e atendimento aos pacientes das associações de pacientes em funcionamento no país”, diz ela.
Atualmente a Anvisa analisa seis pedidos de autorização de produção e comercialização de remédios à base de maconha. Até a semana passada, a multinacional brasileira Prati-Donaduzzi, farmacêutica líder em genéricos, era a única detentora dessa autorização da Anvisa, e seu produto, o “canabidiol 200 mg/ml”, custa em torno de R$ 2.500 o frasco. Em junho do ano passado, a Prati-Donaduzzi, conquistou no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), por 20 anos, a patente de canabidiol diluído em óleo, algo inédito no mundo, uma vez que um óleo extraído de fitoterápico não pode ser objeto de patente. Por isso, em abril o Inpi recomendou a nulidade da patente.
No dia 15 de abril, a Anvisa aprovou mais dois produtos à base de CBD, da empresa estadunidense NuNature.
Os demais produtos que aguardam a liberação pertencem às farmacêuticas VerdeMed, Medstar, Belcher, Zion e Promediol.
Em fevereiro deste ano, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) abriu consulta pública para incluir na lista do SUS o remédio “canabidiol 200 mg/ml para o tratamento de crianças e adolescentes com epilepsia refratária a medicamentos antiepilépticos”. A estimativa é que, em cinco anos, o Ministério da Saúde invista até R$ 416,4 milhões no remédio. O resultado dessa consulta deve ser publicado ainda neste mês.
Ao mesmo tempo, avança na Câmara dos Deputados um projeto de lei (PL) que exclui também o cultivo doméstico. No dia 20 de abril, o relator, deputado federal Luciano Ducci (PSB-PR), apresentou parecer favorável ao PL 399/2015, que visa regulamentar o cultivo para fins medicinais, restrito a farmacêuticas. As associações já existentes teriam um prazo para se adaptar às mesmas exigências feitas às farmacêuticas, o que dificilmente irá se concretizar em razão de aquelas seguirem modelos econômicos e finalidades sociais distintas. A proposição deve ser votada na Comissão Especial sobre Medicamentos Formulados com Cannabis da Câmara dos Deputados em 17 de maio.
“Há um movimento contrário a uma regulação verdadeiramente inclusiva no país”, afirma Sheila Geriz. Para ela, se deveria privilegiar menos a indústria e contemplar o cultivo doméstico e o trabalho das associações. “Ainda há um longo caminho a ser percorrido para que se tenha garantido de forma real e efetiva o acesso à terapêutica canábica no Brasil.”