Para a deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR), a mineração deve ser mantida longe das terras indígenas, e propostas como o Projeto de Lei 191/2020, de autoria do Executivo sob o governo Bolsonaro, nem deveriam estar em discussão. Em seu mandato de estreia, a primeira indígena eleita para o Congresso brasileiro descreve o dia a dia na Esplanada como de “luta e sofrimento”, mas garante que, mesmo em caso de derrota, os projetos que ameaçam o meio ambiente e os direitos das populações tradicionais “não passam sem uma boa resistência”.
A mais nova batalha de Joenia no plenário gira em torno do PL 191/2020, que pleiteia regularizar a mineração e a geração de energia elétrica nas terras indígenas sem a garantia de que os habitantes dos territórios ancestrais tenham poder de decidir sobre o futuro de suas comunidades. Para a deputada e advogada, que apresentou um requerimento para a suspensão da tramitação do projeto, o PL “tem vícios formais desde o início” e mostra a fixação do presidente com o tema. “O grande sonho de Bolsonaro é ser um garimpeiro dentro de terra indígena, ele não esconde isso de ninguém”, afirma.
Com o início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, o projeto foi lembrado por Jair Bolsonaro, com a desculpa de que podem faltar fertilizantes a base de potássio para o agronegócio brasileiro — a maior parte das importações vem da Rússia. “Nossa segurança alimentar e o agronegócio (Economia) exigem de nós, Executivo e Legislativo, medidas que nos permitam a não dependência externa de algo que temos em abundância”, tuitou o presidente no dia 2 de março.
Porém, levantamento do Estadão mostrou que a maior parte das minas de potássio no estado do Amazonas ficam fora das terras indígenas, ao contrário do que o presidente sugere. “Ele quer aproveitar essa oportunidade, quando está todo mundo prestando atenção na guerra e achando que vai faltar isso ou aquilo, para tentar justificar uma possível falta [de fertilizantes] e ter um ganchinho, pegar carona para passar o trator em cima de nossos direitos”, argumenta Joenia. Nesta quarta (9), o plenário da Câmara dos Deputados decidiu que o PL irá tramitar em regime de urgência e o presidente da Casa, Arthur Lira, anunciou a criação de um grupo de trabalho para debater o projeto de lei, que deve ser votado em plenário até 14 de abril.
Se depender da parlamentar, que sonha ter ao seu lado na Câmara lideranças indígenas de todos os estados brasileiros, o Congresso nunca mais vai ficar sem representantes indígenas. Ela também ressalta a importância da próxima eleição para além do Executivo e da participação da sociedade nesse processo. “Acho que esse é o ano da coerência e do compromisso: não basta dizer que apoia os povos indígenas se você vota a favor de projeto que os massacra e tira seus direitos”, diz.
Joenia Wapichana foi escolhida para esta entrevista exclusiva pelos Aliados da Pública e, durante a conversa, respondeu a perguntas que eles enviaram anteriormente. Se você quer escolher quem a Pública vai entrevistar, seja nosso Aliado.
Alguns Aliados perguntaram como é a convivência na Câmara e no dia a dia com colegas de partido e rivais ideológicos?
Esses últimos dois anos foram atípicos, porque a pandemia tem restringindo um pouco a participação presencial aqui da maioria dos parlamentares. Então geralmente vem a Brasília a maior parte dos líderes de diferentes partidos e algumas vezes a participação é online. Isso dificulta muito os contatos mais visuais e as reuniões presenciais. Mas a gente tenta discutir em conjunto, pelo menos na bancada da oposição da minoria, onde a Rede faz parte junto com outros partidos – PT, PSB, PCdoB, PSOL e PDT. São seis partidos da oposição com quem a gente tem mais aliança, no sentido de levar uma pauta mais em consenso, em coletividade. Não temos nenhum problema de conversar, assinamos documentos juntos. Ontem mesmo eu fiz um pedido para suspender o trâmite do pedido de urgência [feito pelo líder do governo na Câmara, Ricardo Barros] do PL 191/2020, que vai trazer consequências bastante negativas pros povos indígenas, eu fiz um pedido para suspender o trâmite desse PL e os líderes todos assinaram em conjunto da Rede. É normal a gente trabalhar em conjunto, abraçamos as causas uns dos outros. Os povos indígenas são uma das bandeiras do meu mandato e isso tem sido sempre bem recebido. O relacionamento com os parlamentares tem sido de diálogo mesmo.
E como é a relação e o convívio com os governistas?
A gente geralmente se encontra com os governistas no colégio de líderes. Tem uma forma de respeito, mas a gente sabe que existem alguns interesses conflitantes, por exemplo o posicionamento deles diante da pandemia do Covid-19. Tem algumas pautas que a gente vota em consenso, como ontem, com os projetos de interesse das mulheres. Alguns assuntos unem, como a questão das mulheres, porque tem de um lado e de outro. Mas outras questões têm bem mais disparidade, como a ambiental, indígena e econômica, de privatização. Tem algumas questões polêmicas que não tem acordo de jeito nenhum, então vai para a discussão, para o embate, para a obstrução, mas eu vou sempre no sentido de conversar. Converso com todos os líderes, sem problema nenhum, mas também discordo e debato sobre algumas proposições.
Como você tem visto a movimentação na Câmara para aprovar os projetos de interesse prioritário do governo na área ambiental?
A primeira prioridade que o governo colocou foi a do PL do Veneno, que passou logo na primeira semana, tratorou a gente. Somos minoria hoje, por mais que a gente queira – fazemos obstrução, resistimos –, tem sido uma derrota no sentido de não conseguir frear o retrocesso em algumas questões que são prioridades do governo. O PL do Veneno, o PL 490, que atinge os povos indígenas, e o PL 191 agora. Eles são totalmente contrários ao interesse público, só afetam a vida dos mais fracos, dos mais vulneráveis, dos povos indígenas e de quem defende o meio ambiente. Isso demonstra a falta de um plano de governo e até mesmo [a existência de] uma lista de prioridades que não condiz com a realidade da sociedade brasileira. Eles têm a maioria hoje na Câmara e é uma luta, um sofrimento, mas essas questões não passam sem uma boa resistência, uma boa obstrução, e um diálogo, um debate, para que a sociedade acompanhe os argumentos e possa também diferenciar em relação a esses parlamentares num momento eleitoral o que realmente é de interesse deles, o que defendem. Que isso sirva de lição para a sociedade, que tem o poder na mão, o poder de escolha de seus representantes num espaço tão importante para o Brasil. É a nossa esperança. A gente está vendo que estão passando os retrocessos, que são negativos para os povos indígenas e para a questão ambiental. A nossa esperança é que esse cenário mude a partir dessas eleições, que esse governo saia. A gente está contando os dias para o Bolsonaro cair, e para que outros parlamentares que têm seguido as suas orientações possam sair também. Para que a gente possa eleger mais representantes legítimos da sociedade brasileira, que realmente defendam seu interesse em diversos segmentos – mais mulheres, mais indígenas, mais mulheres negras. Enfim, representantes da sociedade que realmente têm interesse nas questões sociais.
Nesse sentido, está ocorrendo um movimento de lançamento de candidaturas indígenas para as próximas eleições? Qual a importância dessas candidaturas efetivamente se elegerem?
Em todos os anos de eleição surgem várias iniciativas de encorajar nossas lideranças a participarem do processo eleitoral, não é de hoje – na época em que fui eleita também teve iniciativa de motivar [essas candidaturas]. Mas é importante que realmente se elejam e participem do processo eleitoral, é uma necessidade, realmente. Precisamos de mais representantes aqui, quem dera ter 27 deputados indígenas aqui junto comigo para defender nossos interesses, né? A gente sabe que é difícil, mas seria importante cada estado ter um representante indígena e manter essa cadeira que a gente conquistou por Roraima, sendo a primeira mulher indígena [a ser eleita deputada]. Não está sendo fácil, mas é importante ter essa garantia de que não vamos deixar mais ficar sem representante indígena no Congresso Nacional.
O PL 191 pretende autorizar a mineração em Terras Indígenas. O governo sempre fala que se trata de liberar uma possibilidade que os próprios indígenas querem, de terem mais autonomia, que seria um desejo de algumas comunidades que Bolsonaro estaria ouvindo. Essa argumentação faz sentido para você?
Essa argumentação é totalmente equivocada, falha, inclusive uma argumentação que discrimina. Nós temos, sim, autonomia para fazer o que a gente precisa fazer dentro das terras indígenas. Quando ele fala em “autonomia”, é a possibilidade de exploração de recursos naturais. Ele tenta confundir a sociedade brasileira com esse tipo de discurso que diz que o índio vai crescer economicamente, vai ter liberdade econômica, autonomia. Mas, no caso, ele quer explorar as terras indígenas — o grande sonho de Bolsonaro é ser um garimpeiro dentro de terra indígena, ele não esconde isso de ninguém. O PL 191 é o sonho dele, de possibilitar a entrada [em Terras Indígenas] de mineração, hidrelétrica, passagem do linhão de Tucuruí, linha de transmissão de energia, agricultura [em larga escala], possibilitar o arrendamento de terras indígenas. Tudo que ele [Bolsonaro] sonhou explorar em terras indígenas está no PL 191.
E não somente isso: ele está usando a guerra da Rússia como argumento para que a sociedade brasileira ache que é importante aprovar o projeto 191, porque ele diz que os fertilizantes vão faltar para a agricultura brasileira, e que esse fertilizante, como o potássio, estaria existindo dentro das terras indígenas, o que justificaria a urgência [de aprovação] do PL 191. É um argumento falso que não tem respaldo em estudos técnicos: a maior parte dos fertilizantes [feitos a partir] de potássio não está dentro das terras indígenas, está fora, em São Paulo e Minas Gerais, por exemplo. Ele quer aproveitar essa oportunidade, quando está todo mundo prestando atenção na guerra e achando que vai faltar isso ou aquilo, para tentar justificar uma possível falta [de fertilizantes] e ter um ganchinho, pegar carona para passar o trator em cima de nossos direitos.
A maioria das jazidas não está dentro das terras indígenas, está fora, em outras regiões que não a Amazônia – porque a maior parte das terras indígenas estão na Amazônia, 98% delas. Isso [liberação de mineração em TIs] vai significar a morte dos povos indígenas, a destruição do meio ambiente, a poluição das águas. Essa urgência só acirra os conflitos e encoraja ainda mais as invasões de garimpeiros ilegais nas terras indígenas. Ele está querendo avançar num modelo econômico que não é sustentável, e a sociedade brasileira não merece isso.
O governo afirma que vai liberar a mineração em TIs para os povos indígenas que quiserem fazê-la, mas minerar não seria obrigatório. Por que somente criar essa possibilidade já é ruim?
Esse é um discurso falho, porque o PL não fala em liberar para quem quiser, ele desconsidera a escolha dos povos indígenas. Esse argumento é conversa para boi dormir, porque vale o que está escrito na lei, e se você for ler a lei, ela fala que a única participação garantida dos povos indígenas é no resultado da participação das lavras e riquezas minerais. Ou seja, quando o povo indígena for consultado, tanto faz ou tanto fez se ele aceita ou não, quem toma a decisão é o presidente, através de um decreto presidencial, que vai autorizar o projeto. Esse negócio de “vai liberar se você quiser” não é isso: quando o povo indígena disser “não quero, não aceito”, no projeto de lei não estará garantido que essa decisão vai ser respeitada, a palavra final é através de um decreto presidencial. Isso já é totalmente contra a Constituição, que fala de mineração em TIs como competência do Congresso Nacional [o artigo 231 estabelece que “pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados” com autorização do Congresso], ou seja do Legislativo. O que ele quer é usurpar o poder constitucional. Ele quer levar isso para competência do Executivo. Só por esse fato esse PL não podia sequer estar sendo recebido, porque é contra o procedimento legislativo que diz que qualquer alteração em nossa Constituição deve acontecer via PEC – projeto de emenda constitucional. Esse PL 191 tem vícios formais desde o início.
Em outras ocasiões, lideranças indígenas já disseram que nunca houve um presidente efetivamente bom para os indígenas no Brasil. Se olharmos os números de homologações de terras indígenas ao longo dos governos, a gente vê que foi FHC quem mais homologou, e que Dilma homologou menos, por exemplo. Ou seja, não necessariamente os partidos de esquerda – que se estendem por um espectro amplo – se comprometem com essa que é a principal luta dos povos tradicionais. A partir da sua avaliação, 2022 dá indícios de que a próxima gestão vai ser diferente em relação a isso?
Para isso é necessário, quando a gente for conversar com o possível representante parlamentar, que a gente pergunte a ele qual é o seu programa de governo para os povos indígenas, para o meio ambiente, para nossa sociedade em relação aos direitos sociais. Essa é a pergunta básica, daí a gente vai ver se realmente tem planos de governo para que a gente possa incluir isso como bandeira, como reivindicação, e isso vai servir na definição de quem vai ser ou não o seu candidato.
É uma das perguntas fundamentais que os eleitores precisam fazer a seus candidatos?
Com certeza, umas das principais perguntas, mas não somente essas. No meu caso, quando você pergunta se, para 2022, haveria possibilidade de mudança, creio que tem que fazer essas perguntas básicas antes de escolher. Você tem que ser coerente também. Acho que esse é o ano da coerência e do compromisso: não basta dizer que apoia os povos indígenas se você vota a favor de projeto que os massacra e tira seus direitos. Não basta dizer que você é a favor da natureza, do meio ambiente, se você aprovou o PL do Veneno, se flexibilizou as regras ambientais. Já tem como fazer essa avaliação a partir desse ano e do ano passado. Vem gente para reeleição aí que não teve qualquer consideração com a sociedade, e não basta dizer agora, nas campanhas eleitorais, que é amigo da natureza, dos povos indígenas. E não é só votar a favor, não, mas apoiar também, omissão também é crime.
A gente está num momento em que as alianças eleitorais estão sendo fechadas – temos alguma ideia de quem vão ser os candidatos, mas ainda é preciso aguardar essas definições. Algumas pessoas defendem que algumas coisas são inegociáveis. Você concorda que, no processo de formar alianças, algumas coisas não podem ser negociadas?
Sim. Cada um tem o seu princípio, o meu é o de não negociar os direitos indígenas. Tenho claramente a minha ideia de dizer não à mineração em terras indígenas. Por mais que seja prevista [essa possibilidade na Constituição], não sou a favor da mineração em terras indígenas – esse é meu ponto inegociável.
Vários Aliados da Pública perguntaram sobre perspectivas para o futuro e quais estratégias as pessoas – não só das capitais ou de cidades que já têm organizações indígenas – podem adotar para realmente apoiar a causa. Como estar junto nessa luta?
Acredito que só a participação da sociedade dá visibilidade a isso, porque mostra que os parlamentares que defendem as questões ambiental, indígena e dos direitos sociais aqui no Parlamento são apoiados pela sociedade – isso é importante para nós. Sinto que estamos influenciando a sociedade, de alguma forma, a também participar, porque muitas vezes as pessoas confundem os parlamentares como “farinha do mesmo saco”, e não é, tem parlamentares que apoiam e que sofrem, como a gente vê no dia a dia, ameaças por parte de quem quer regulamentar garimpo e é contra a questão ambiental. É preciso entender que estamos do mesmo lado, não é porque somos parlamentares que somos comparáveis aos corruptos. Sei que a palavra “político” já foi deturpada – “lá vem o político de quatro em quatro anos fazer promessas que não cumprem, ou só mentem” –, mas existem parlamentares que têm seriedade, compromisso e coerência entre o que falam e o que fazem. A sociedade precisa entender que é parte do processo de escolha, mas que também tem que acompanhar o parlamentar e participar dessas manifestações. A sociedade civil organizada é o quarto poder que precisamos colocar na rua, porque é importante para o processo de tomada de decisão, porque reelege seus representantes, mas também tem que mostrar a sua força.
Nesta quarta, 9, ocorreu o Ato Pela Terra, com a participação de um grande número de artistas e ativistas em Brasília. Qual a importância desse tipo de movimentação?
O ato foi mais um momento de apoio às questões ambientais, mostrando a classe dos artistas. Mas é importante que as pessoas não se esqueçam de quem está junto, não se esqueçam de verificar que nós não somos os inimigos. Existem os outros lados que apoiam tudo isso [o chamado Pacote da Destruição] que estamos sofrendo hoje no Brasil, o retrocesso, mas existe parte desse grupo [congressistas] que está do lado da sociedade. Querendo ou não, temos um enfrentamento na plenária hoje. Mesmo tendo direito a uma fala com os artistas, mesmo estando presente nesse ato, também vamos mostrar que nossa presença estará no meio do povo. Quando for discutir Parlamento e políticos, não coloquem a gente no mesmo saco de farinha.