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Empresários ligados a políticos, agronegociantes e até órgãos governamentais estão na lista. Em 13 anos, foram mais de 3.800 multas que totalizam cerca de R$ 235 milhões

Reportagem
3 de agosto de 2022
06:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Desmatamento, incêndio florestal, descumprimento de embargo, lançamento de resíduos sólidos em desacordo com a legislação, irregularidades ou ausência de licença ambiental. Esses são alguns dos exemplos de infrações aplicadas entre 2009 e 2021 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) no Cerrado — o órgão é responsável pela gestão e fiscalização das 334 unidades de conservação (UCs) federais espalhadas pelo Brasil, que protegem cerca de 10% do território nacional. A lista de infratores inclui empresários com casos de corrupção ou ligações políticas — inclusive com o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles —, agronegociantes com atuação na fronteira agrícola do Matopiba e até órgãos governamentais.

Análise da Agência Pública com base em dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) pela Fiquem Sabendo, agência de dados especializada no acesso a informações públicas, mostra que foram cerca de 4 mil autuações lavradas pelo órgão na região ao longo do período analisado (2009-2021).

A reportagem selecionou 48 UCs federais, de proteção integral ou de uso sustentável, que contêm parcela significativa de cerrado em sua área (acima de 40%). A seleção se baseou nos dados do site Unidades de Conservação do Brasil, mantido pelo Instituto Socioambiental (ISA). Ao todo, 38 unidades tiveram infrações lavradas, de acordo com a base obtida pela Fiquem Sabendo. Foram 3.872 multas com valor especificado, totalizando mais de R$ 235 milhões. Não é possível saber quantas foram pagas pelos infratores, mas as fontes ouvidas afirmam que elas raramente são quitadas.

Em março, a Pública revelou quem são os campeões de multas nas UCs da Amazônia. No bioma, que concentra 132 UCs, o montante é ainda mais amplo: foram 10,5 mil autuações no mesmo período, totalizando mais de R$ 3 bilhões. A lista amazônica inclui políticos regionais e pessoas ligadas a eles, infratores com vasta ficha de acusações criminais, inclusive por assassinato em conflitos agrários, além de grandes empresas. Na Amazônia, as infrações ambientais estão concentradas em 11 UCs, quase todas localizadas na zona de influência de rodovias federais. Somadas, elas representam 75% do valor total aplicado.

Para o servidor do ICMBio em Goiás Raoni Merisse, o perfil do infrator do Cerrado é diferente do infrator na Amazônia. “Os desmatamentos que ocorrem no Cerrado estão muito associados à expansão da fronteira agrícola [por fazendeiros que já ocupavam a área], enquanto os que ocorrem na Amazônia estão muito associados à invasão, à grilagem, ao apoderamento de terras públicas por particulares”, explica Merisse, que acredita que ainda há espaço para que novas UCs sejam criadas no Cerrado.

Há mais de dez anos atuando no órgão, ele considera que a situação das UCs piorou nos últimos tempos, tanto pela “dificuldade do ICMBio de fazer valer a lei”, já que há grande déficit de pessoal, quanto pelo “sentimento de impunidade”. Para o servidor, o crime ambiental acaba compensando para os infratores, já que há baixo risco de responsabilização, altas chances de a multa prescrever e o procedimento para utilizar da terra de maneira regularizada demora anos para ser finalizado.

Na visão de Patrícia da Silva, assessora de políticas públicas do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), o Cerrado acaba sendo visto como “zona de sacrifício”. [Na visão de muitos acadêmicos,] no Cerrado pode tudo, desde que a gente proteja o patrimônio que está lá na Amazônia. Mas se esquece de olhar a importância que o bioma tem, sobretudo para os recursos hídricos e para nossa segurança energética”, diz. Para ela, além do fortalecimento da fiscalização, é necessário retomar a criação de novas UCs e fortalecer a gestão das já existentes, com disponibilização de recursos e regularização fundiária das áreas, muitas delas ainda ocupadas irregularmente.

Imagem aérea de área queimada no Cerrado.
Destruição do Cerrado ameaça recursos hídricos da região

Envolvidos em casos de corrupção estão entre infratores

O grande campeão de multas ambientais no Cerrado é o empresário Walter Santana Arantes, que atua no ramo de supermercados em Minas Gerais, além de manter fazendas na região do médio São Francisco, no norte do estado. Ao todo, Arantes recebeu nove multas no período analisado, todas elas no Parque Nacional (Parna) Cavernas do Peruaçu, em Minas Gerais, num total de R$ 16,8 milhões. A maior infração, de quase R$ 14 milhões, ocorreu em novembro de 2017 e refere-se à destruição de vegetação nativa no interior da UC. 

As infrações, perpetradas ao longo de mais de 14 anos, renderam ao empresário uma ação penal e outra civil pública movidas pelo Ministério Público Federal (MPF). Em outro processo, o órgão chegou a pedir a averbação da matrícula da fazenda Itaporanga do Norte, que seria fruto de grilagem de terra. Reportagem da Repórter Brasil de 2020 ligou Arantes também à violência contra quilombolas no norte mineiro.

Atualmente sócio do Grupo DMA, Arantes foi fundador da rede Mineirão, vendida ao Carrefour, ocupa cargo na Associação Mineira de Supermercados (Amis) e tem ligação com os Supermercados BH

Em novembro de 2018, Arantes foi preso no âmbito da Operação Capitu, um desdobramento da Lava Jato. Joesley Batista, dono da JBS, e Antonio Andrade, ex-ministro da Agricultura e então vice-governador de Minas Gerais, foram presos na mesma operação. O ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, que já estava preso, também foi alvo de mandado. O suposto esquema de corrupção ocorreu no Ministério da Agricultura e envolveu políticos do MDB, que teriam recebido propina da JBS. O papel dos Supermercados BH seria lavar o dinheiro, comprando carne superfaturada da JBS. As prisões foram revogadas dias depois pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O empresário do ramo de supermercados não é o único envolvido em casos de corrupção que aparece na lista de infratores. No Parna da Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, uma das campeãs de multa é a Cavalca Construções e Mineração Ltda., que recebeu multa de R$ 2 milhões em 2009, por realizar “obras e serviços potencialmente poluidores e utilizadores de recursos ambientais sem a devida licença e autorização para o licenciamento ambiental”. 

A empresa é ligada ao Grupo Cavalca, que, fundado em 1949 no Paraná, atua nos setores industrial, comercial, agropecuário e de construção pesada. Seus sócios acumulam processos por improbidade administrativa, corrupção ativa e passiva e lavagem de dinheiro. Em 2011, o Ministério Público Eleitoral (MPE) e o Ministério Público Federal no Mato Grosso (MPF/MT) investigaram a empreiteira por conta de um aumento de 1.000% no valor dos contratos com o governo federal. Na eleição do ano anterior, a Cavalca doara R$ 500 mil para campanhas eleitorais, sendo R$ 300 mil para o então senador Blairo Maggi (à época no PR, atual PL, hoje no PP). O Tribunal de Contas da União (TCU) também identificou superfaturamento em uma das obras tocadas pela empreiteira.

Em 2017, o ex-governador do Mato Grosso Silval Barbosa (MDB) afirmou em delação premiada que o senador Wellington Fagundes (PR) teria cobrado propina de R$ 1 milhão da Cavalca para garantir a liberação de recursos para duas obras de infraestrutura no estado em 2011. O grupo empresarial também foi doador da campanha de Barbosa.

Em 2018, um dos sócios da empresa, Arlindo Cavalca Filho, foi condenado no âmbito da Operação Ápia, que investigou um esquema de corrupção em obras do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (Dnit) no Rio Grande do Norte. A relação da família com o Dnit também se deu em nível nacional: em 2013, o então diretor-executivo do órgão Tarcísio Gomes de Freitas viajou de Santarém (PA) para Brasília no jatinho do empresário. Ex-ministro da Infraestrutura de Bolsonaro, Freitas é candidato a governador de São Paulo. Cavalca Filho, por sua vez, chegou a ser cotado como vice da chapa de Roberto Requião (PT) no Paraná na eleição deste ano.

Outras figuras com ligações políticas foram multadas

Em Goiás, outro caso do tipo: a Torre Indústria Têxtil e Armazéns Gerais Ltda. foi multada em quatro ocasiões por infrações no interior do Parna das Emas, no sudoeste goiano. O total aplicado é de R$ 4,3 milhões. A multa principal, de R$ 2 milhões, deve-se ao funcionamento de “algodoeira poluidora sem licença ambiental”. A empresa tinha como sócios Alexandre Augustin e sua esposa, Louize Honorato de Freitas. A busca pelo nome do empresário no site JusBrasil resulta em mais de 1.600 processos, a maior parte deles tramitando em varas trabalhistas. Augustin, filiado ao Podemos, foi candidato a suplente na chapa de José Medeiros (Podemos), na eleição suplementar para o Senado no Mato Grosso, em 2020. Na ocasião, ele declarou quase R$ 26 milhões em bens.

De acordo com dados da Receita Federal compilados no site CruzaGrafos, Augustin e seus familiares aparecem como sócios de mais de 78 empresas, de diversos ramos. Seu irmão Guilherme Augustin e a esposa deste, Luciana Fischer, são sócios de Alexandre e Louize Freitas na fazenda Torre, no Mato Grosso. Em 2015, os dois casais entraram com pedido de recuperação judicial por conta de passivos que, somados, ultrapassavam R$ 400 milhões. O pedido gerou conflito com uma das credoras.

Igualmente baseados em Goiás, mas com atuação também em Minas Gerais e no oeste da Bahia, o Grupo Ampessan é mais um caso do tipo. Somados, os irmãos Roberto, Luiz Slongo e Vicente Ampessan receberam quase R$ 9,2 milhões em multas por desmatamentos para plantio de grãos e pelo funcionamento de carvoaria sem licença ou autorização. As infrações foram cometidas em Jaborandi (BA), no interior da Reserva de Vida Selvagem (Revis) das Veredas do Oeste Baiano. Luiz Slongo chegou a entrar com ação judicial para tentar derrubar a criação da UC.

Imagem aérea de fazendas no Oeste Baiano.
Infratores receberam quase R$ 9,2 milhões em multas por desmatamento no Oeste Baiano

Os irmãos foram processados criminalmente pelo MPF por causa da conduta no interior da Revis. Na ação, o advogado de defesa da família é o ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) Valter Ferreira Xavier Filho, que chegou a ser afastado do cargo e logo em seguida se aposentou voluntariamente.

Entre as empresas do grupo familiar está a Celeste Aero Agrícola Ltda., que atua na aplicação aérea de sementes, fertilizantes e agrotóxicos. Em agosto de 2020, quando a região do Pantanal sofria com incêndios, a página de Instagram da empresa fez publicação exaltando o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e o presidente Jair Bolsonaro. Na época, Salles chegou a sobrevoar a região a bordo de avião da Celeste.

Há ainda mais um infrator que mantém conexões políticas: trata-se de José Fava Neto, sócio da Agrofava e diretor regional da Aprosoja de Goiás. De acordo com reportagem do jornal Extra, caminhões que participaram de manifestação favorável a Bolsonaro em 7 de setembro de 2021 estampavam adesivos da Agrofava e também do Movimento Brasil Verde-Amarelo, grupo financiado pela Aprosoja. A entidade de produtores rurais está entre as investigadas no inquérito das manifestações antidemocráticas, tocado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Fava Neto fez doações para as duas últimas campanhas do deputado gaúcho Alceu Moreira (MDB), ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária.

A infração cometida por ele ocorreu no Parna Grande Sertão Veredas, em Cocos (BA), em 2010. A multa, de R$ 2,1 milhões, foi por desmatamento sem autorização. O agropecuarista detém a maior outorga de captação de água para irrigação na bacia do rio São Francisco, no Oeste Baiano, podendo captar 117 milhões de litros de água por dia, conforme revelado em especial da Pública que foi ao ar no ano passado.

Além de Fava Neto, outros dois grandes nomes do agronegócio do Oeste Baiano citados no especial aparecem entre os maiores infratores do Cerrado: Marcos Antônio Busato e a Iaciara Agropecuária, de Fernando Luiz Schettino. 

Busato é parte de grupo familiar que inclui outros expoentes da produção agrícola local, incluindo o atual presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), Júlio Cézar Busato. Marcos Antônio foi multado duas vezes em 2010, em um total de R$ 890 mil, por desmatar e fazer funcionar empreendimento agrícola sem autorização no interior da Área de Proteção Ambiental (APA) das Nascentes do Rio Vermelho em Jaborandi (BA). A família Busato detém autorização para captar 325 milhões de litros de água por dia na região.

Já Schettino é o maior detentor de outorgas de água do Oeste Baiano, com 467 milhões de litros por dia. A sua Iaciara Agropecuária recebeu multa de R$ 500 mil em 2009, por descumprir embargo de uma área de mais de 1.100 hectares, na Revis das Veredas do Oeste Baiano. A despeito da infração e de outros embargos, ele continuou recebendo outorgas de água do governo baiano.

Imagem aérea de aérea queimada no cerrado.
Schettino pode captar 467 milhões de litros de água por dia no Oeste Baiano

Multas em contexto urbano também são recorrentes

Além de multas por desmatamento e incêndio, igualmente comuns nas UCs da Amazônia, as do Cerrado também são palco de infrações ambientais em contexto urbano. A unidade do bioma com maior valor em multas aplicadas é o Parna de Brasília, que fica no entorno da capital federal. Ao longo do período analisado, foram aplicados R$ 36,8 milhões em multas na UC. Além do Parna, a cidade é circundada pela Floresta Nacional (Flona) de Brasília, pela APA do Planalto Central e pela Reserva Biológica (Rebio) da Contagem, entre outras unidades federais e estaduais. Somadas, essas três UCs totalizam R$ 26,6 milhões em multas no período.

Um dos principais casos de infrações ambientais em contexto urbano no Cerrado ocorreu justamente no Parque Nacional de Brasília e está relacionado ao Lixão da Estrutural, que chegou a ser o maior depósito de lixo da América Latina e foi desativado em 2018. A Valor Ambiental Ltda. foi multada duas vezes, cada uma delas em R$ 2 milhões, por “lançar resíduos sólidos em desacordo com as exigências estabelecidas” e por “fazer funcionar serviço utilizador de recurso ambiental considerado efetivamente poluidor contrariando as normas legais”. 

A empresa operadora do Lixão da Estrutural, que chegou a ser condenada por exploração de menores dentro do local e foi denunciada por fraude, é ligada a Eduardo Queiroz Alves. O empresário é ex-genro de Nenê Constantino, fundador da Gol Linhas Aéreas e de diversas empresas do ramo de transporte rodoviário, centralizadas no Grupo Comporte. Constantino, já autuado por trabalho escravo, foi acusado de mandar matar Alves em 2008, quando o ex-genro sofreu um atentado. Inocentado da acusação em questão, o fundador da Gol foi condenado em duas ocasiões, ambas como mandante de assassinatos

Além da Valor Ambiental, também foram autuadas no caso a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) e o Serviço de Limpeza Urbana (SLU) do Distrito Federal (DF). A Terracap tem como acionistas os governos federal e do DF e é dona do terreno onde ficava o lixão. A empresa estatal foi autuada nove vezes no período analisado por infrações ligadas ao depósito de lixo e em outros locais da região, incluindo na APA do Planalto Central. Ao todo, a Terracap recebeu R$ 6,8 milhões em multas. Já o SLU/DF acumula cinco multas, que totalizam R$ 9,2 milhões.

Outros órgãos estatais ou governamentais também foram alvos de multas por infrações ambientais em diversas UCs federais do Cerrado. A lista inclui ainda a Secretaria de Agricultura de Goiás, o Departamento de Estrada de Rodagem (DER) do DF, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e o Incra. Ao todo, contando com Terracap e SLU, são R$ 29,2 milhões em multas.

A Pública entrou em contato com as pessoas e empresas citadas na reportagem, mas não obteve retornos até a publicação.

Infografista:
José Cícero/Agência Pública
José Cícero/Agência Pública
José Cícero/Agência Pública

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