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Turbinada por deputados, lei reduziu unidades de conservação e estimulou invasões

Reportagem
26 de setembro de 2022
12:00
Este artigo tem mais de 2 ano

No sábado, 4 de dezembro de 2021, os fiscais da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) de Rondônia estavam no quarto dia de uma operação de fiscalização no Parque Estadual Guajará-Mirim, em Nova Mamoré, a 280 km de Porto Velho.  

O sol brilhava forte por volta das 16 horas quando eles estacionaram a viatura à beira do rio Oriente, dentro do parque, para fazer, a partir dali, um sobrevoo de drone na expectativa de visualizar melhor alguns focos de desmatamento. Foi quando fogos de artifício estouraram no céu, como que anunciando a chegada da equipe. Não demorou quase nada para que partissem da outra margem do rio rajadas de tiros na direção dos fiscais. Foram vários disparos, de pistola calibre .40 e carabina calibre 5.56 – arma longa com poder de fogo significativo –, que se intensificaram nos minutos seguintes. 

“Eu nunca vi tanto tiro de uma vez só, a não ser em filme. Foi muito tiro mesmo. A bala passava levantando areia perto da minha cabeça, e eu deitado, pensando: ‘Meu Deus, vou sair morto daqui’”, contou à Agência Pública João*, um dos servidores alvo da emboscada, que se atirou no chão junto aos colegas quando percebeu que estavam sendo atacados. Por questões de segurança, ele pediu que sua verdadeira identidade fosse preservada. O objetivo da equipe era reprimir invasões naquela que é uma das regiões ​​ambientalmente mais relevantes e sensíveis no estado por ser parte de um corredor ecológico entre diversas unidades de conservação federais e estaduais e terras indígenas.  

Como os fiscais da Sedam não podem andar armados, estavam acompanhados de 12 agentes do Batalhão de Polícia Ambiental (BPA), da Polícia Militar do estado, que revidaram. Mas, segundo João, os atiradores levaram vantagem. “Foram uns 15 minutos de tiro, aí o sargento falou: ‘Vamos retroceder, vamos retroceder’”, relembra. “Eles não têm medo, não. Vou lhe contar que quem correu foi a gente.” 

João saiu do tiroteio baleado no braço direito e precisou ser socorrido ao hospital de Nova Mamoré. Dias depois, uma surpresa: a Sedam pediu que ele devolvesse as diárias referentes aos dias de operação em que não trabalhou por estar ferido. Sentindo-se injustiçado, decidiu processar o estado de Rondônia e pedir indenização por danos morais. Pouco tempo depois disso, foi exonerado. Procurada, a Sedam não se manifestou sobre o assunto.

Camiseta de João ensanguentada no lugar onde ele foi baleado
A camiseta de João ensanguentada no lugar onde ele foi baleado, em dezembro de 2021

As cenas de terror vividas por João parecem extraordinárias, mas, nos últimos quatro anos, se tornaram assustadoramente frequentes para fiscais da Sedam e policiais militares que operam em ações de fiscalização ambiental no Parque Guajará-Mirim. A realidade é semelhante para ativistas socioambientais e indígenas da região. Eles descrevem um recrudescimento no clima de hostilidade embalado pela forte influência política de Jair Bolsonaro no estado, já descrito como “reduto do bolsonarismo na Amazônia”.

Em agosto, quando esteve em Porto Velho, a reportagem experimentou essa sensação ao receber de diferentes pessoas os mesmos conselhos: tomar cuidado, evitar se expor enquanto jornalista, não dizer que visitaria terras indígenas.  

Antes da emboscada de dezembro, em maio de 2020, equipes da Sedam foram cercadas por 50 pessoas encapuzadas em motocicletas, que jogaram pedras nos agentes. No ano anterior, em janeiro de 2019, invasores ameaçaram atear fogo a uma base mantida pelo órgão no parque. Desde dezembro de 2021, o ritmo dos ataques se intensificou: de lá até agora, houve pelo menos outros dois similares ao sofrido por João e sua equipe, um em fevereiro e o último em julho deste ano, ambos a tiros.

Segundo servidores ouvidos pela Pública, a violência no interior do parque se intensificou a partir de maio de 2021, quando entrou em vigência a Lei Complementar estadual 1.089, que reduziu em 23,3% a área do Parque Guajará-Mirim e em 88,6% o território da Reserva Extrativista (Resex) Estadual Jaci-Paraná, que se estende por Nova Mamoré, Porto Velho e Buritis. Somadas, as áreas desafetadas equivalem aos municípios de São Paulo e Florianópolis juntos.

A proposta da lei, elaborada pelo governador Marcos Rocha (União Brasil), foi modificada e aprovada por unanimidade pela Assembleia Legislativa de Rondônia sem a realização de estudos técnicos ou consulta às populações tradicionais afetadas.

Embora a desafetação dessas unidades de conservação – cobiçadas por grileiros e pecuaristas que veem nelas uma oportunidade de lucrar com a apropriação de terras públicas – tenha sido considerada inconstitucional e revogada pela Justiça estadual em novembro passado, especialistas e ativistas disseram à reportagem que ela representa uma das principais “boiadas” patrocinadas pelo mandato de Rocha, um coronel da Polícia Militar de Rondônia que se elegeu na onda do bolsonarismo em 2018 e agora lidera a disputa eleitoral em busca da reeleição. 

Para o promotor Pablo Viscardi, coordenador do Grupo de Atuação Espacial em Meio Ambiente (Gaema) do Ministério Público de Rondônia, a lei “tentou legalizar” a grilagem de terras nas duas unidades de conservação e “ainda estimulou o aumento significativo de novas invasões e danos ambientais”. Desde maio, o Gaema atua diretamente no combate ao crime ambiental no Parque Guajará-Mirim e foi um dos autores da ação que derrubou a lei na Justiça. 

A dimensão do estrago é escancarada pelos dados: segundo números do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 2021, ano em que a lei esteve vigente por quase seis meses, o parque viu uma explosão no desmatamento. Foram 28,9 km² de floresta derrubada, o maior patamar desde 2008, e um aumento de cerca de 74% em relação a 2020. Já na Resex Jaci-Paraná, 2021 foi o terceiro pior ano em termos de desmatamento desde 2008, com 107,1 km2 de retirada de vegetação, perdendo apenas para 2017 (144,7 km2) e 2016 (114,6 km2) – em comparação com 2020, a alta foi de 3,26%. A Resex e o parque foram, respectivamente, a segunda e a terceira unidades de conservação estaduais mais desmatadas do Brasil em 2021.

Além disso, a destruição da floresta em locais como as duas unidades de conservação fez de Rondônia o segundo estado entre os nove da Amazônia Legal com maior desmatamento em áreas protegidas em 2020 e 2021, perdendo apenas para o Pará. 

Floresta sendo queimada.
Na Resex Jaci-Paraná, 55% da floresta já foram desmatados

Apesar de a lei ter sido invalidada, na prática as invasões continuam em ambos os lugares. Dados da Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril do Estado de Rondônia (Idaron), obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), apontam que no dia 1° de setembro existia no interior da Resex um rebanho de 187,9 mil bovinos – em janeiro esse número era de 174.406 animais, conforme relatório divulgado pelo portal Brasil de Fato. Já no parque, no início do mês havia uma população de 230 cabeças de gado identificada pelo órgão. Nos dois locais, a pecuária é proibida. 

De “maior retrocesso ambiental da história de Rondônia” à lei sancionada

O start para a Lei Complementar 1.089 foi dado por Marcos Rocha, mas ele não é o único responsável por sua existência e impactos.

O projeto inicial enviado pelo governador à Assembleia Legislativa de Rondônia em novembro de 2020 propunha que a Resex Jaci-Paraná fosse diminuída de 197,3 mil para 45,1 mil hectares, e o Parque Estadual de Guajará-Mirim, de 216,5 mil para 207,1 mil hectares. Além disso, como forma de compensação às desafetações, pedia a criação de outras seis unidades de conservação.

Nas mãos dos deputados estaduais, as reduções foram turbinadas. Com as cinco emendas apresentadas por eles durante a tramitação da matéria – batizada de Projeto de Lei Complementar (PLC) 80 –, a Resex passou a ter 22,4 mil hectares, e o Parque, 166 mil. Uma das unidades de conservação propostas pelo governo, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Rio Machado, também foi cortada do PLC 80. 

Mesmo tendo partido dele a proposta de lei, Marcos Rocha parecia ter entendido que a versão encaminhada pelos parlamentares ao governo era inviável: no dia 20 de maio de 2021, às 16h16, assinou uma mensagem à Assembleia informando que a vetaria. Entre outros pontos, destacou que se tratava do “maior retrocesso ambiental da história de Rondônia”. No entanto, pouco menos de sete horas depois, mudou radicalmente de posição e, às 23 horas, assinou a sanção integral do PLC 80, ignorando parecer contrário da Procuradoria Ambiental do Estado, órgão que tem justamente como uma de suas funções assessorar juridicamente o governador. A Pública pediu uma entrevista a Rocha e deu a ele o espaço para se manifestar, mas não obteve resposta.

Em 20 de abril do ano passado, a proposta e suas emendas foram aprovadas sem nenhuma resistência na Assembleia. Pelo contrário: os parlamentares estavam atônitos com a oportunidade de votar o que chamavam de “projeto histórico”, numa demonstração de que, para eles, a floresta é um obstáculo ao que entendem como “desenvolvimento”, quase um sinônimo de agropecuária.

O deputado Jean Oliveira (MDB), relator do PLC 80 na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS), fez coro aos colegas e afirmou, naquela sessão, que o governador Marcos Rocha era “um homem de coragem” por ter enviado o projeto à Assembleia. Para justificar a aprovação do texto, declarou que as áreas excluídas da Resex Jaci-Paraná se encontram “antropizadas” – ou seja, com suas características naturais transformadas pela ocupação humana. 

Jean Oliveira, que concorre à reeleição, tem histórico de crimes ambientais: de acordo com investigação da Polícia Federal e do Ministério Público de Rondônia, ele tentou grilar 64,6 mil hectares dentro de uma outra unidade de conservação estadual e só não foi preso porque tem foro privilegiado. Em um grampo telefônico, foi pego sugerindo “passar fogo” em um procurador ambiental do estado que barrou a tentativa de grilagem.

O argumento da antropização, também utilizado por Rocha em sua proposta inicial, é questionado por especialistas. “É uma forma de premiar o invasor, de mostrar que o crime compensa. E isso é inadmissível”, aponta o biólogo Paulo Bonavigo, presidente da Ecoporé, organização não governamental que há 34 anos trabalha com preservação ambiental em Rondônia.

Lei aumentou pressão sobre terra indígena vizinha

A Resex e o parque formam um mosaico de áreas protegidas junto a outras unidades de conservação estaduais e federais e terras indígenas (TIs). Por isso, o que acontece em seu interior tem consequências também para os territórios ao redor. 

É o caso da TI Karipuna, que faz divisa com a Resex e com a zona de amortecimento ao norte do parque – chamada “Bico do Parque”, uma área pública sem destinação que está em grande parte ocupada irregularmente, embora isso seja proibido – e tem sofrido um aumento das invasões desde 2014. 

Os Karipuna, povo indígena que lá vive, quase foram dizimados por doenças transmitidas no processo de contato, liderado pela Funai na década de 1970, quando sua população foi reduzida a oito pessoas. Dali em diante, batalharam para se restabelecer, conseguiram a homologação de sua terra em 1998 e hoje formam uma população de cerca de 60 pessoas, entre os que vivem na Panorama, sua única aldeia, e na cidade. 

Em 2021, a Karipuna chegou ao posto de oitava terra indígena mais desmatada do Brasil, de acordo com o MapBiomas, com 1.034 hectares de floresta devastada,  área equivalente a mais de mil campos de futebol. No ano passado, segundo o Imazon, também foi a oitava TI mais ameaçada do país – ou seja, cujo entorno mais sofreu devastação.  

O cacique dos Karipuna é André, um rapaz de cabelo e pele escuros, que com apenas 26 anos carrega a responsabilidade de defender o território. Ele e seu irmão mais velho, Adriano, de 36 anos, têm viajado o Brasil e o mundo para denunciar o assédio de madeireiros e grileiros sobre os 153 mil hectares de terra que habitam entre Porto Velho e Nova Mamoré. Adriano, que já falou na ONU, em Nova York, e no Vaticano, estuda para se formar advogado e ter melhores condições de lutar pelos direitos de seu povo.

A última missão ocorreu em Brasília, onde André, sua mãe – a anciã Katiká, de 81 anos – e uma delegação de Karipunas cumpriram uma série de compromissos com autoridades nacionais e internacionais, de quem cobraram atitudes mais enérgicas para frear a escalada da destruição em sua TI. O cacique explica que a lei do governo de Marcos Rocha teve papel determinante nesse cenário. “As invasões cresceram aqui dentro da terra com essa lei que o governo criou para diminuir o parque estadual [e a Resex]”, relata. “O governo não chamou a gente, que está na divisa com essa terra, que estamos sendo afetados hoje. O governo do estado não comunicou, não chamou pra gente opinar nessa lei. Quando a gente soube, já estava na mídia”.

Em agosto, a Pública visitou dois pontos de invasão em partes diferentes da terra indígena. Um deles fica na beira do rio Formoso, no sudeste do território, próximo ao Parque Estadual Guajará-Mirim, região até pouco tempo atrás intocada. Considerado seguro, o lugar havia sido escolhido para abrigar uma nova aldeia Karipuna, que estava sendo construída aos poucos: já tinha uma casa de madeira e roça. 

Aldeia às margens do rio Formoso, na TI Karipuna.
A nova aldeia que André estava construindo, às margens do rio Formoso, na TI Karipuna

O plano de André era levar algumas famílias para lá justamente para ampliar a ocupação do território, que hoje conta apenas com a aldeia Panorama, às margens do rio Jaci-Paraná, cujas águas separam a TI da Resex de mesmo nome. 

Mas, em maio deste ano, ao visitar o lugar onde planejava morar com sua esposa, filhos e parentes, André se deparou com uma clareira aberta por madeireiros. Caminhou menos de cem metros à frente e, chegando à casa, notou uma mensagem na porta: “Você é meu vizinho, tá amigo. Fica di boa [sic]”. 

Ele o encarou como, no mínimo, mais um aviso de que deveria tomar cuidado: quando vão a Jaci-Paraná, distrito de Porto Velho mais próximo à terra indígena, ele e outras lideranças Karipuna frequentemente recebem recados de que os invasores planejam atentados contra suas vidas.

O cacique desistiu, pelo menos por enquanto, de iniciar ali uma nova aldeia. “Se for pra fazer [aldeia] mesmo aqui, vai ter uma briga grande, perigoso ter até derramamento de sangue nesse espaço”, disse. “Eles querem ser os donos [da área], mas não são. E isso a gente já falou para a Polícia Federal, para um monte desses órgãos, que a gente não quer conflito. Queremos paz, sossego, e os órgãos fazendo o trabalho deles de fiscalização.” 

Quando esteve no local, a reportagem ouviu barulhos de motosserra, indicativo de que havia madeireiros trabalhando por perto. André pediu que falássemos baixo para não chamar a atenção e permanecêssemos juntos. Logo depois, nos chamou para que fôssemos embora. “É um lugar muito perigoso esse em que nós estamos”, afirmou.

Menos de duas semanas depois, a partir de 16 de agosto, diversos focos de incêndio criminosos, de acordo com os Karipuna, foram identificados na região do rio Formoso. Os indígenas registraram as coordenadas e bateram fotos de alguns pontos onde a vegetação foi consumida pelo fogo e enviaram as informações ao Ministério Público Federal, Polícia Federal e Funai, como costumam fazer para alertar as autoridades. O Greenpeace fez um sobrevoo pelas áreas e flagrou um cenário de destruição.

“Nós estamos numa situação muito complicada, porque somos em poucos, não é como as outras populações indígenas que têm 2, 3, 8, 20 mil pessoas. Na frente desses outros povos, a gente é bem pequeno. Essa é a preocupação que temos também”, lamenta André. “Os invasores crescem na terra. E aí a insegurança pra nós cresce também. As ameaças crescem. A gente fica cercado, estamos quase presos no nosso espaço.”

“Se a gente dormir no ponto, o parque vira uma Resex”

Durante seus quase seis meses de vigência, a Lei 1.089 potencializou o já alarmante cenário de destruição na Resex Jaci-Paraná: lá, 55% dos 197,3 mil hectares originais de floresta foram substituídos por pasto para a pecuária desde a transição entre as décadas de 1990 e 2000, quando a área começou a ser ocupada ilegalmente. Ela é considerada um exemplo escancarado do esquema de grilagem de terras públicas na Amazônia.

Sua atual condição faz com que seja considerada o caso mais grave de invasões entre as 49 unidades de conservação sob gestão do governo de Rondônia, de acordo com Paulo Bonavigo, da Ecoporé. Ele explica que há outras áreas estaduais até com maior nível de ocupação irregular e desmatamento, mas a extensão do prejuízo ambiental na Resex Jaci-Paraná a coloca em outro patamar. “A gente está falando de cerca de 190 mil hectares, dos quais 55% estão desmatados, e com certeza boa parte disso está degradada também”, afirma Bonavigo, que foi chefe da Coordenadoria de Unidades de Conservação (CUC) da Sedam de 2011 a 2013.

No parque, porém, a lei pode ter criado uma tendência de alta no desmatamento. Lá, as invasões começaram a ocorrer de forma mais expressiva em 2014, quando foi inaugurada uma estrada de 11,5 km que corta sua parte norte como rota alternativa para tirar do isolamento cidades atingidas à época pela cheia histórica do rio Madeira, que inundou trechos das rodovias então existentes. De 2014 a 2017, houve o primeiro boom de desmatamento, que começou a cair em 2018 e voltou a crescer apenas em 2021, em uma nova explosão. 

O temor é que o parque, que ainda mantém mais de 90% de sua cobertura vegetal, vá pelo mesmo caminho da Resex. “Se a gente dormir no ponto, o parque vira uma Resex”, declara o promotor Pablo Viscardi.

Já há uma sentença determinando a desocupação do parque. De acordo com Pablo Viscardi, o Gaema está planejando a ação de desintrusão. Paralelamente, há inquéritos policiais em andamento para investigar os crimes ambientais em curso na área. Em relação à Resex, o Gaema e a Procuradoria-Geral do estado já propuseram cerca de 90 ações civis públicas pedindo, por exemplo, a expulsão dos invasores, a reparação de danos ambientais e a retirada de bovinos, entre outros pontos. Elas estão nas mais variadas etapas de tramitação – algumas já atingiram o trânsito em julgado, quando não se pode recorrer das decisões –, mas na maioria das vezes o estado não consegue efetivar a desocupação.

A finalidade de uma reserva extrativista é aliar a preservação ambiental à proteção dos meios de vida e cultura das populações extrativistas. Na Jaci-Paraná, quase todas as cerca de 40 famílias de extrativistas que havia ali na época de sua criação, em 1996, foram expulsas nas últimas duas décadas pelos invasores. 

A Pública conversou com dois dos poucos moradores tradicionais que sobraram ali. Eles vivem em uma casa simples de madeira, num terreno encurralado por criações de gado ilegais, que cresceram 300% nos últimos sete anos. Costumavam tirar o sustento da seringa e da coleta de castanha-do-pará, mas precisaram se adaptar à realidade imposta pelo desmatamento. “Castanha não tem mais, está em extinção”, contou um deles à reportagem. “Desmataram as áreas todinhas, não tem mais mata, floresta.”

O homem narra que, embora a devastação ocorra ali há muito tempo, “de três, quatro anos pra cá foi muito mais [destruição], avançou mais”. Questionado se tem esperança de ver a situação revertida, ele lamenta: “Na realidade, se tivesse botado uma fiscalização severa em cima desde o começo pra não desmatar, não entrar, tinha conseguido salvar. Porque o nosso país não tem lei. Ele tem a lei no papel, mas não é cumprida”.

Bois em fazenda ilegal na Resex Jaci-Paraná, à beira do rio de mesmo nome
Bois em fazenda ilegal na Resex Jaci-Paraná, à beira do rio de mesmo nome

Agro é bandeira eleitoral

O norte de Rondônia, onde estão a Resex Jaci-Paraná, o Parque Guajará-Mirim e a TI Karipuna, é parte da região conhecida como Amacro, que abrange também o sul do Amazonas e o leste do Acre. A área é considerada a nova fronteira do desmatamento da Amazônia: no ano passado, concentrou 12,2% do total de florestas suprimidas no país, um incremento de quase 30% na comparação com 2020, segundo o MapBiomas. O termo, uma junção das siglas desses estados, ficou conhecido em 2019, quando os três governos estaduais propuseram implementar um projeto conjunto de desenvolvimento agrícola com esse nome, prontamente apoiado pela gestão de Jair Bolsonaro. 

Para Laura Vicuña Manso, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) que trabalha com os Karipuna e outros grupos indígenas de Rondônia, a tentativa de redução da Resex e do parque está inserida nesse contexto. “Desafetar essas duas unidades de conservação é abrir a fronteira para aquilo que a gente chama de Amacro, que é converter essa região do norte de Rondônia, Acre e Amazonas numa região de pura soja – esse é o intento”, diz. 

O Amacro é inspirado no Matopiba, iniciativa que fomentou a expansão da agropecuária nas áreas de cerrado no Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia a partir de 2015 e provocou uma série de conflitos envolvendo empresas e comunidades tradicionais (leia mais aqui). Por lá, o boom do agro anda de mãos dadas com a destruição ambiental: em 2021, a região foi palco de quase um quarto (23,6%) do desmatamento ocorrido em todo o Brasil.

O governo de Marcos Rocha foi um dos patrocinadores do Amacro, lançado em Porto Velho em dezembro de 2021 depois de ganhar uma roupagem verde e ser rebatizado de Zona de Desenvolvimento Sustentável (ZDS) Abunã-Madeira. Na ocasião, Rocha e os governadores do Acre, Gladson Cameli (Progressistas), e do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil) – ambos também bolsonaristas e candidatos à reeleição –, assinaram uma carta de intenções para a execução do projeto em 32 municípios. 

Essa ideia de desenvolvimento pautada no agronegócio, que avança em Rondônia à custa da derrubada da floresta, é bandeira eleitoral dos dois candidatos que encabeçam a disputa pelo governo do estado e que, conforme indicam as pesquisas, devem ir para o segundo turno. No mais recente levantamento do Ipec realizado no estado, divulgado no último sábado (17), o coronel Marcos Rocha aparece com 38% das intenções de voto, contra 27% do segundo colocado, o senador Marcos Rogério (PL), que ficou famoso durante a CPI da Covid por ser defensor ferrenho de Jair Bolsonaro. 

O agro, força política muito expressiva no estado, é exaltado em seus planos de governo. O de Rocha afirma que “Rondônia é o Estado da agricultura e do agronegócio” e que, em um segundo mandato, vai “fortalecer e continuar apoiando nossos produtores”. No de Rogério, há uma seção específica sobre o tema, destacando que o setor é responsável por 14,24% do PIB do estado e que o objetivo é “incentivar o produtor rondoniense para tornar Rondônia a maior potência agro do país”.

O cacique André Karipuna no rio Jaci-Paraná
O cacique André Karipuna no rio Jaci-Paraná – ele pediu que seu rosto não fosse mostrado por conta das ameaças que vem sofrendo

O sociólogo Luiz Fernando Novoa Garzon, professor da Universidade Federal de Rondônia (Unir), destaca que Rocha é um outsider eleito no rastro de Bolsonaro em 2018. “Ele não é um cara orgânico do agronegócio, então é como se tivesse sempre à caça da posição majoritária do agro regional local”, explica. 

Garzon lembra que a carreira pregressa do governador não tem fortes relações com o setor rural: inicialmente oficial do Exército, em 1990 se tornou oficial da PM de Rondônia, tendo chefiado seu Centro de Inteligência; depois ocupou cargos de gestão em colégios militares e, por último, foi secretário municipal de Educação de Porto Velho e secretário estadual de Justiça. Por isso, Rocha teve que abraçar as demandas do setor rural, como a desafetação de unidades de conservação e a criação do Amacro, para manter seu apoio, extremamente importante para qualquer um que governe o estado.

Disputa pelo bolsonarismo

A conexão com os ruralistas é um elemento importante do alinhamento de Rocha e Rogério ao bolsonarismo, o campo político dominante no estado, que mostrou sua força já em 2018, quando Bolsonaro, então no PSL, ganhou de lavada do presidenciável do PT Fernando Haddad no segundo turno, com 72,18% dos votos válidos contra 27,82% do opositor. Rondônia foi o único estado do Brasil em que o presidente saiu vitorioso em todos os municípios nas duas etapas do pleito.

De maneira um pouco menos acachapante, a vitória de Bolsonaro no estado deve se repetir nas eleições de outubro: de acordo com o Ipec, o presidente tem 58% das intenções de voto entre os rondonienses, contra 26% de Lula (PT), que lidera a disputa em nível nacional.

Garzon explica que o espólio do bolsonarismo no estado, “que é grande e tem essa relação de cumplicidade com o ilícito”, está dividido entre os dois candidatos que lideram a disputa. 

A briga, inclusive, foi parar na Justiça: o PL, partido de Bolsonaro e Rogério, entrou com ação judicial pedindo que Rocha não associe sua imagem à do presidente em propagandas políticas. No fim de agosto, o Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia acatou o pedido e determinou que o atual governador não faça mais uso da estratégia. Depois disso, Bolsonaro gravou um vídeo autorizando que qualquer candidato no estado, independentemente da filiação partidária, utilize seu nome em peças publicitárias.

*O verdadeiro nome foi ocultado para proteger a identidade do entrevistado

*Colaboraram Bianca Muniz e Bruno Fonseca

Arquivo pessoal
Christian Braga/Greenpeace
Marcela Bonfim/Agência Pública
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Nilson Santos/Governo de Rondônia
Reprodução/Marcos Rogério

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