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Armas de fogo com maior potência, liberadas pelo governo, têm sido usadas em crimes

Reportagem
24 de outubro de 2022
06:00
Este artigo tem mais de 2 ano

Faltavam poucas horas para o início do ano de 2022, quando o engenheiro Reges Amauri Krucinski saiu para a área externa da casa no bairro Vilage, em Porto Seguro. Era 31 de dezembro e ele havia acabado de matar a tiros sua esposa, J., na casa em que estava com a família — e onde havia três crianças. Atrás de Krucinski, foi sua filha de 14 anos, que tirou a arma das suas mãos e, com o auxílio de um pano, colocou o instrumento do crime no forno da casa. 

Enquadrado pela polícia como feminicídio, o crime ocorreu no Revéillon do ano passado na Bahia, e foi um dos sete eventos com essa característica ocorridos no país naquela noite. O assassino foi preso em flagrante e segue preso. O processo, ao qual a Agência Pública teve acesso, se encontra no final da fase de instrução e o próximo passo será a decisão do juiz sobre levar o caso a júri popular. 

Na casa onde ocorreu o crime, a polícia encontrou uma pistola calibre .380 ACP — a arma do crime —, um revólver de calibre 357 Magnum e uma espingarda calibre 12, além de um abafador de tiros e uma “substanciosa quantidade” de munições, como descreveu o Ministério Público da Bahia em sua denúncia. 

O caso de J. é emblemático pelas armas que foram usadas para ceifar sua vida. Até maio de 2019, atiradores civis como Krucinski, que possuía registro de CAC (caçador, atirador desportivo e colecionador) junto ao Exército, não poderiam adquirir nenhuma dessas armas legalmente.

Isso mudou com um decreto de Bolsonaro de maio de 2019, que redefiniu como armas de uso permitido aquelas cuja energia cinética de disparo não supere 1.620 joules. O limite anterior era menos da metade, fixado em 407 joules. 

Atendendo ao decreto de Bolsonaro, o Comando do Exército, órgão que regulamenta quais armas são de uso restrito às Forças Armadas e quais armas são de uso permitido para civis com autorização, editou uma portaria listando os novos calibres permitidos. 

Armas de calibres mais altos, como as que foram liberadas para civis pelos decretos, têm maior potência e maior precisão, o que eleva o risco e a letalidade. 

“Não à toa, as pistolas .40, por exemplo, são armas usadas pela polícia”, diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Sou da Paz. Muitos dos calibres flexibilizados nos decretos eram antes restritos às forças de segurança estaduais e federais. Pistolas .40, por exemplo, são empregadas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, enquanto a Polícia Federal e o Exército utilizam mais comumente pistolas 9mm. Também incluídos dentre os calibres liberados pelo decreto estão armas usadas pelas forças de segurança do Estado do Rio de Janeiro, como carabinas .40 S&W e .30 Carbine. 

O número de pistolas 9mm — também liberadas para civis pelos decretos de Bolsonaro — apreendidas no Distrito Federal cresceu 475% de 2019 para 2021, segundo uma reportagem do SBT News, usando dados de LAI. É um indicativo de que armas recém-liberadas estão entrando em circulação rapidamente — e logo mudando de mãos. 

Para entender o crescimento das armas de fogo em crimes contra mulheres é importante olhar para a mudança na regra de declaração de efetiva necessidade, medida tomada por Bolsonaro menos de um mês após assumir o cargo. Antes, para ter uma arma de fogo, qualquer civil deveria apresentar uma declaração de efetiva necessidade, uma justificativa do porquê precisaria daquela arma. Esse pedido era, então, analisado pela Polícia Federal para ver se a necessidade de fato era justificada.

O decreto 9.685, de 15 de janeiro de 2019, tornou “presumida” a declaração de efetiva necessidade. Isto é, presume-se que toda declaração seja verdadeira, então basta declarar para obter a posse da arma. A medida se aplica para agentes públicos e militares, inclusive inativos, residentes em área rural, residentes em áreas urbanas com altos índices de violência, proprietários de estabelecimentos industriais e comerciais e CACs registrados no Exército.

Essa análise, segundo explica Ricardo, do Sou Paz, freava um pouco a aquisição para posse. Na prática, significa que essa facilitação da posse veio acompanhada por uma diminuição no controle e na fiscalização sobre a pessoa que terá acesso a esse equipamento. 

Na imagem uma arma de fogo disparando.
Decreto do governo federal liberou armas à população antes restritas às forças de segurança

Risco agravado

Logo em sua primeira pergunta, o Formulário Nacional de Avaliação de Risco Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), trata da presença da arma de fogo. Ao perguntar se o agressor já ameaçou a vítima com a finalidade de atingi-la, o formulário apresenta arma de fogo como a primeira opção a ser marcada. Esse formulário, instituído em Lei de 2021, deve ser usado pela Polícia Civil, Ministério Público ou Poder Judiciário no primeiro momento de atendimento à vítima de violência doméstica.  

“Se vê que existem instâncias que estão preocupadas, que percebem que a presença de arma de fogo agrava o perigo para as mulheres”, disse à Pública Marisa Sanematsu, diretora do Instituto Patricia Galvão. “Mas há muita gente que ou não está querendo enxergar ou até está jogando contra, colocando as mulheres mais em risco ainda, porque arma na mão é risco sempre”, completou. 

Especialistas apontam que a presença de uma arma de fogo aumenta em muito o risco de violência num contexto doméstico, apesar de armas brancas ainda serem o instrumento predominante em feminicídios, de acordo com o Anuário 2020 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

No entanto, quando se olha para mortes de mulheres em geral, o que inclui violência urbana, a arma é de fato o instrumento predominante. Um estudo divulgado pelo Instituto Sou da Paz em agosto de 2021 identificou que a arma de fogo foi o instrumento responsável por 51% das mortes de mulheres brasileiras entre 2000 e 2019. 

Em 2021 a arma de fogo foi o instrumento que provocou 65% das fatalidades de mulheres, de acordo com o Anuário do FBSP. Em feminicídios, mais especificamente, armas brancas ainda são o objeto predominante, enquanto armas de fogo respondem por 29,2% das mortes. É importante considerar, no entanto, que há, historicamente no Brasil uma subnotificação nos casos de feminicídio, já que muitos que possuem essa motivação ainda acabam enquadrados como homicídio. 

É também necessário lembrar que há uma diferença racial nos feminicídios: segundo o Anuário, em 2021, 62% das vítimas eram mulheres negras e 37,5% brancas. 

Em mortes violentas, em geral, a diferença aumenta: 70,7% das vítimas são negras e 28,6% brancas. 

A arma não só é um risco apenas para a violência consumada — aquela que termina em violência física ou morte — mas também porque contribui para o ciclo de violência. 

Em seu livro “Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência”, o gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, explica que mesmo que o gatilho não seja acionado, a arma desempenha um papel de destaque na sequência de intimidações e agressões e representa uma importante barreira para que a vítima da violência doméstica efetivamente denuncie seu agressor. 

Medir esse efeito secundário, mais invisível, é um desafio, já que ele pouco se reflete em estatísticas, explicou à Pública Sanematsu, do Instituto Patrícia Galvão. 

Risco expandido

Para além da mulher-alvo desse ciclo de violências, a presença de uma arma de fogo no contexto doméstico também afeta outros ao redor. 

“Quando olhamos para o impacto da presença de armas de fogo nas residências, temos diversos dados que apontam que quanto maior o número de armas e circulação maior a vulnerabilidade especialmente de mulheres, crianças e adolescentes, que são esses grupos mais vulneráveis a esse tipo de violência no âmbito doméstico”, explica a coordenadora jurídica do Instituto Alana, Ana Cláudia Cifali.

Uma pesquisa da Sociedade Brasileira de Pediatria publicada em 2019 apontou que ​​a cada 60 minutos uma criança ou adolescente morre em decorrência de ferimentos provocados por arma de fogo no Brasil. Nos últimos 20 anos, 145 mil jovens morreram por disparos de armas, aponta a pesquisa, que utilizou dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), atrelado ao Ministério da Saúde.

Mesmo quando crianças e adolescentes não são as vítimas diretas dessa violência, o efeito é perverso e deixa sequelas imensuráveis. 

 “Assassino, eu te odeio! Você matou minha mãe”, disse a criança de 10 anos, filha de J. após presenciar o crime. Segundo a denúncia do MP, após atirar contra a esposa, Krucinski ainda constrangeu a filha da vítima ao fechá-la num quarto da casa. Um bebê de dez meses, filho do casal, também estava no mesmo ambiente quando o engenheiro. atirou contra J. 

“Eles estão num momento especial da vida humana, que é quando a arquitetura cerebral dessas crianças está se desenvolvendo. Então presenciar uma violência especialmente nessa fase da vida pode trazer efeitos muito prejudiciais, principalmente  por uma questão chamada estresse tóxico em crianças e adolescentes, que gera um sofrimento psíquico e prejudica o desenvolvimento infantil, pode levar esses impactos tanto na saúde física quanto psicológica”, disse Cifali à Pública

Presenciar agressões tão cedo pode ainda levar a uma naturalização da violência como forma de resolução de conflitos, o que pode significar, lá na frente, um adulto violento. Nos casos de violência contra a mulher, mais especificamente, há um impacto ainda maior, como a naturalização do machismo e uma perpetuação dos ciclos de violência.

Para Marisa Sanematsu, do Instituto Patricia Galvão, há uma falta de visão da parte do governo, cujo viés é o de “proteção da família”. “Eles não enxergam que a ocorrência da violência doméstica prejudica a família inteira”, disse. 

A morte de J. provocou uma rachadura na família. Depois do crime, a filha de J., que presenciou a morte da mãe aos 10 anos, foi levada para morar com uma tia. O outro lado da família, do irmão de J., não tem contato com a menina desde o crime. As redes sociais da criança foram apagadas e qualquer elo cortado. “O que deveria unir a família nos quebrou”, lamentou uma familiar de J. à Pública que não quis ser identificada. 

Na ilustração, as balas de arma de fogo. Em primeiro plano, um deles se destaca dentro de uma aliança com sangue escorrendo.

Descontrole

Fazia menos de um mês que a família morava em Porto Seguro quando Reges Amauri Krucinski assassinou J. Foi a segunda mudança em pouco tempo em um relacionamento que evoluiu rapidamente, segundo familiares com quem a Pública conversou. 

O casal se conheceu em 2019 no litoral paulista e pouco depois Krucinski, originalmente do Rio Grande do Sul, se mudou para São Bernardo do Campo, região do ABC Paulista onde J. vivia. O casal chegou a comprar uma casa, mas decidiram mudar-se para o litoral baiano para construir uma pousada no Sul do Estado. Levaram um bebê de poucos meses, fruto do relacionamento, e as filhas que cada um têm de casamentos anteriores, de 14 e 10 anos. 

A casa de São Bernardo do Campo permaneceu por muitos meses intocada. Ali estavam outras armas que pertencem a Krucinski e que não foram averiguadas pela Polícia, segundo familiares com quem a Pública conversou, que afirmaram ter alertado investigadores sobre a existência destas. Um familiar ouvido em depoimento pela Polícia disse que Krucinski alegava ter cerca de 11 armas. Recentemente, um caminhão levou embora todos os pertences da casa, disseram familiares. Não se sabe o destino das armas. 

Questionada pela Pública, a Polícia Civil da Bahia disse “não ter conhecimento da existência dessas armas em São Paulo. Todas as armas foram apreendidas no local do crime.”

O “esquecimento” das armas é ilustrativo de como a fragilização nos controles das armas de fogo dificulta o trabalho policial e aumenta o risco de que essas armas sejam roubadas ou extraviadas

Um dos pontos-cegos em investigações do tipo é o acesso limitado aos sistemas do Sinarm, da Polícia Federal, e do Sigma, do Exército. Via de regra, armas legais no Brasil estão registradas em um dos dois sistemas, a depender de quem concedeu a autorização de posse da arma. 

“É muito grave. Sabemos que, no Brasil, e não só as delegacias de mulheres, mas as polícias em geral, as civis especialmente, têm muita dificuldade de acessar o Sigma, e conseguem acessar de forma um pouco mais facilitada o Sinarm. E aí você tem um universo enorme de armas que você não consegue acessar, quando elas são numeradas, para conseguir obter informação mais precisa para quem ela foi vendida ou revendida”, diz Carolina Ricardo, do Sou da Paz.

O Exército, órgão responsável pelos CACs, informou em setembro de 2022 ter 1,731 milhão de armas registradas no Sigma. No mesmo mês, a Polícia Federal disse ter expedido 117 mil registros de arma de fogo até junho deste ano. 

Carolina Ricardo, do Sou da Paz, explica que, em casos de feminicídio, obter informações sobre a arma não costuma ser tão necessário, já que na maior parte das vezes, o autor é conhecido e frequentemente alguém do círculo íntimo da vítima. 

Mas em crimes em geral, como homicídios, investigar a trajetória e origem da arma é primordial para entender o impacto que essas armas e munições têm na violência e na criminalidade. Medidas como a remoção da marcação de munições, que estaria prevista pelo projeto de lei 3.729, fragilizam ainda mais o trabalho policial. 

Em primeiro plano uma arma de fogo com óculos, e ao fundo várias maletas com armas.
Fragilização no controle das armas de fogo dificulta o trabalho policial

Falta de registros

Em um caso de violência doméstica em que a arma seja o instrumento empregado, a autoridade policial deve verificar se o agressor possui registro ou porte e, caso sim, notificar a instituição que concedeu a autorização. 

Tais diretivas foram estabelecidas em agosto de 2019, quando a Lei Maria da Penha foi editada para prever a apreensão de arma de fogo sob posse do agressor em ocorrências de violência doméstica e a notificação da instituição responsável pela concessão do registro ou da emissão do porte. 

O problema é que nem a Polícia Federal e nem o Exército mantêm dados sistematizados de ocorrências em que armas registradas em seus sistemas foram utilizados em ocorrências de violência doméstica. 

A Pública solicitou à Polícia Federal e à Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército por meio da Lei de Acesso à Informação as notificações recebidas por cada organismo de ocorrências de violência em que o agressor possuía arma de fogo registrada nos respectivos sistemas, como estabelece a Lei Maria da Penha. 

A DFPC negou o pedido, alegando que as informações estariam protegidas por dados pessoais. Foi só na terceira instância, quando um recurso chegou à Controladoria-Geral da União, que foram feitos esclarecimentos.  “A suspensão da autorização de posse e/ou porte de arma de fogo pela autoridade competente não gera nenhum evento no SIGMA que possa identificar essa situação, inviabilizando a extração de dados do sistema que indiquem proprietários nessa condição”, escreveu a CGU em resposta ao recurso.

Já a Polícia Federal informou que “não dispõe de controle (…) de ocorrências de violência doméstica em que o agressor possuía arma de fogo registrada no SINARM” e complementou “que além de as determinações judiciais chegarem diretamente nos Estados e Delegacias Descentralizadas (não havendo um canal único de informação), também não há um campo específico no Sinarm para os casos de suspensão de posse/porte e/ou cancelamento de porte para os casos da Lei Maria da Penha. Apenas há o campo impedimento, que pode ser marcado por diversas razões além de decisões judiciais exaradas em casos envolvendo a Lei 11.340/2006.”

Na resposta, o DPF admite a possibilidade de passar a manter registro claro no sistema de casos de violência doméstica. “Será solicitado à DARM/CGCSP/DIREX/PF, responsável pelo SINARM, que analise a viabilidade de inserir campo estruturado no sistema que permita identificar mediante simples pesquisa o registro de novas ocorrência de violência doméstica vinculada a determinado porte ou registro (posse) de arma de fogo, em atualizações futuras do sistema.

Desafios

Por serem mais letais que armas brancas, a chance de sobrevivência das vítimas é menor. A delegada da Polícia Civil piauiense Eugênia Villa explica que os maiores desafios não estão nos trâmites jurídicos ou burocráticos para apreender a arma, mas sim em fazer com que as mulheres peçam ajuda antes que seja tarde demais.

“O grande desafio é porque as mulheres são assassinadas em silêncio, elas não chegam até a polícia”, disse Villa à Pública, acrescentando que entre 80 a 90% dos casos de vítimas fatais que chegam até sua divisão são de mulheres que nunca procuraram a polícia.

Foi na tentativa de mitigar esse cenário e facilitar que vítimas peçam ajuda que a Secretaria de Segurança Pública do Piauí lançou em 2017 o aplicativo Salve Maria, que permite denúncias anônimas. A ferramenta já foi adotada por outros Estados brasileiros e tem sido estudada por outros países

A delegada Eugênia Villa, que se tornou uma referência nacional ao instituir linhas de investigação e treinamento específicas para feminicídio, alerta que, diferentemente de feminicídios com arma branca, cujo acesso é facilitado, crimes com arma de fogo são facilmente possíveis de serem prevenidos. 

“Uma arma branca é uma arma doméstica, que era o que a gente via mais sendo utilizado nos feminicídios domésticos. Quer dizer, uma faca qualquer pessoa tem dentro de casa. Quem é que não tem uma faca para cortar uma carne, preparar um alimento, não é verdade? Então ficava difícil a gente evitar esse feminicídio”, disse a delegada. 

“Agora uma arma de fogo, não é uma arma comum. Não é um instrumento doméstico, então é possível a gente reduzir essa mortandade se nós pudermos controlar ou proibir acesso à arma de fogo”, acrescentou.

*Essa reportagem foi produzida com apoio do Pulitzer Center for Crisis Reporting

Peretz Partensky/Wikimedia Commons
Amanda Miranda/Agência Pública
Marcelo Camargo/Agência Brasil

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