Um documento obtido pela Agência Pública registra mais uma omissão do estado sob Jair Bolsonaro que deixou o território Yanomami, em Roraima, vulnerável à ação garimpeira ilegal. A mensagem é do dia 31 de março de 2021: “Hoje o fluxo de voos bateu todos os dias, passaram 30 aviões e cinco helicópteros. Cada dia que passa está aumentando”. A conversa registra colaboradores da Funai comentando entre si no WhatsApp a presença constante do garimpo na região da Base de Proteção Etnoambiental (Bape) Serra da Estrutura, região onde habitam os indígenas isolados Moxihatëtëma thëpë, que está localizada ao norte de Roraima, na Terra Indígena Yanomami.
Os isolados Moxihatëtëma são o único grupo em isolamento voluntário confirmado na TI pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Desde 2015, a Bape Serra da Estrutura estava desativada por falta de recursos, segundo o órgão indigenista. Mas em 2020, o Ministério Público Federal (MPF) de Roraima ingressou com uma Ação Civil Pública contra a União, o Estado de Roraima e a Funai para obrigar o estado a agir em decorrência do avanço do garimpo ilegal em meio a pandemia de Covid-19.
No ano passado, ainda sob Bolsonaro, a Funai disse que o sistema de proteção e monitoramento da região vinha sendo operacionalizado pela Bape, que foi reativada no final de 2020. “A iniciativa é fundamental para a proteção dos indígenas isolados que vivem no local”, disse o órgão.
Mas o documento obtido pela reportagem contradiz a Funai, à época comandada pelo delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier. O texto revela que servidores da própria Funai da região pediam socorro à Base de Proteção da Funai reativada em Roraima, que, em vez de servir à proteção indígena, servia ao garimpo. O documento com o pedido de ajuda foi endereçado ao Coordenador de Política de Proteção e Localização de Povos Indígenas Isolados da época e tem como assunto: “Segurança da BAPE Serra da Estrutura, Terra Indígena Yanomami”. O texto relata que o território vinha sofrendo invasões e ameaças “agravadas por preocupante e recente episódio”, ocorrido em 2021.
“[…] um helicóptero (prefixo PR-LNL) pousou próximo à construção [da BAPE Serra da Estrutura]. Como normalmente as aeronaves utilizam o final da pista para retirada de garimpeiros, o Colaborador L.* aproximou-se da aeronave e notou que o piloto portava uma ARMA. O piloto informou que achou ter visto algum colaborador fazer um sinal para parada e, imaginando que pudessem estar precisando de alguma coisa, realizou o pouso. Diante da negativa do colaborador, o mesmo alçou voo. Esclareço que é comum helicópteros sobrevoarem a Bape e utilizarem o final da pista para pouso”, diz trecho do documento.
Diante do episódio, o documento registra que é “inadmissível a continuidade da BAPE Serra da Estrutura sem o devido apoio policial ou militar para reforçar sua segurança e as atividades de proteção territorial no entorno, bem como garantir o bom funcionamento e incolumidade da equipe da Funai”.
O documento informa ainda que ofícios foram encaminhados às instituições de segurança pública e fiscalização ambiental para lidarem com a situação. O próprio registro da Funai informa que a movimentação de aeronaves e garimpeiros nas proximidades da BAPE Serra da Estrutura “tem aumentado de intensidade o que representa risco aos servidores e colaboradores da BAPE”. O documento ainda revela que os invasores têm “circulado armados nas proximidades da BAPE e tentado aliciar funcionários da Funai”. Fontes ouvidas pela reportagem disseram que a ajuda nunca veio.
As imagens acima, obtidas pela reportagem, são de dois helicópteros que utilizavam a base da Funai sem autorização, supostamente voltados a atividade garimpeira. Um deles, de prefixo PR-HTQ, não está inscrito no Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB), segundo a Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC). A aeronave também não possui autorização especial de voo da agência, o que significa que voava clandestinamente. Já a aeronave de prefixo PR-LNL, um helicóptero R44 II da marca Robinson Helicopter, citado no documento da Funai, com capacidade para três passageiros, pertence desde 2017 à seguradora Company Seguros S/A (antiga Company Participações S/A), sediada em Goiânia. A reportagem tentou contato com a Company Seguros mas até o momento não obteve resposta.
Crise humanitária
A crise humanitária que se abateu na Terra Indígena Yanomami, a maior do país, ganhou, enfim, os holofotes do mundo e a atenção nos primeiros dias do novo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A TI é assolada pelo garimpo de ouro — estima-se mais de 20 mil garimpeiros ilegais na região.
No território vivem cerca de 26 mil indígenas dos povos Yanomami e ye’kwana em 321 aldeias. O território foi reconhecido como de ocupação tradicional, demarcado e homologado em 1992.
O quadro de devastação já vinha sendo denunciado por entidades especializadas, órgãos de controle e imprensa há tempos.
No dia 20 de janeiro, o governo federal declarou emergência em saúde pública no território após identificar uma alta de casos de malária, desnutrição infantil e problemas de abastecimento.
Em visita a Roraima, Lula prometeu dar dignidade ao povo Yanomami. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, classificou a situação dos indígenas como uma emergência sanitária — pelo menos 1.556 pequenos Yanomami têm hoje algum déficit de peso e as crianças Yanomami morrem 13 vezes mais por causas evitáveis do que média nacional.
A Polícia Federal também instaurou inquérito policial na quarta-feira (25), por determinação do Ministério da Justiça, para apurar os crimes de genocídio, omissão de socorro, crimes ambientais, além de outros crimes conexos em Terras Indígenas Yanomami. A investigação tramita na Superintendência Regional da PF em Roraima e segue sob sigilo.
Segundo a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (Ministério Público Federal), a omissão do estado em assegurar a proteção de suas terras levou a grave situação de saúde e segurança alimentar sofrida pelos Yanomami.
Essa omissão do governo de Jair Bolsonaro também colocou em risco os indígenas isolados que habitam o território. “O garimpo tem sido a principal ameaça à reprodução física e cultural dos Moxihatëtëma, cujo território se encontra cercado pela invasão garimpeira”, diz um relatório da Funai revelado pela nossa reportagem em 2021.