Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Brasília a quente, enviada às terças-feiras, 8h. Para receber as próximas edições por e-mail, inscreva-se aqui.
Em uma área de floresta no norte de Mato Grosso, neste momento um grupo de indígenas isolados vive um dos capítulos mais ameaçadores de sua existência. Declarada como de posse permanente dos indígenas em 2016 no governo de Dilma Rousseff, a Terra Indígena (TI) Kawahiva do Rio Pardo hoje está cercada, a leste e a oeste, por focos “gigantescos” de desmatamento e constantes invasões de grileiros e madeireiros em duas reservas extrativistas vizinhas que deveriam estar protegidas pelos governos de Mato Grosso e do Amazonas.
Na última quinta-feira (14), a maior organização indígena do país, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), enviou ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin um ofício de 17 páginas que denuncia um futuro a curto prazo aterrador para o grupo que vive em isolamento voluntário. “A TI Kawahiva do Rio Pardo vem sofrendo pressão tanto ao lado oeste, quanto ao lado leste, no que pode ser considerado como um verdadeiro ‘abraço da morte’, também expresso no conceito de Cercamento”, diz o documento assinado por Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib.
Fachin é o relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 991, ajuizada em junho de 2022 pela Apib em virtude das “ações e omissões” promovidas pelo governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) que colocaram em risco os povos indígenas isolados e de recente contato no país.
Na quarta-feira (13), a Defensoria Pública da União (DPU) já havia emitido uma recomendação ao governador de Mato Grosso, Mauro Mendes (União), declarado apoiador de Bolsonaro, à secretária de Meio Ambiente, Mauren Lazzaretti, e ao secretário de Segurança Pública, o coronel PM César Augusto de Camargo Roveri, para que promovessem “imediatamente a desintrusão e cessação de desmatamento, extração ilegal de madeira e da reserva extrativista Guariba-Roosevelt”. A unidade de conservação de 164 mil hectares foi criada em 1996 nos municípios de Colniza e Aripuanã (MT). Desde 2019, a DPU acompanha a ameaça aos isolados e cobra uma ação efetiva das autoridades do governo estadual.
Em março passado, um destacado indigenista da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Jair Candor, que atua na frente de proteção aos isolados Kawahiva, informou, em ofício à Funai, que equipes da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) “atuavam na região”, mas a atividade “tem sido cada vez menor e não tem sido suficiente para reprimir e impedir o avanço dessas invasões e desmates gigantescos”.
“Na maioria das vezes essas ações [de fiscalização] implicavam na apreensão de motosserras e outros bens utilizados em crimes ambientais, mas nem sempre com a consequente apreensão e/ou inutilização de maquinários e construções ilegais que servem de base para esses infratores. Sendo assim, mesmo com a aplicação de multas e apreensão de motosserras, esses ‘grileiros’ sentem-se encorajados a permanecerem no local, como se possuíssem o direito de ocupar essas construções”, explicou Candor. Foi uma expedição liderada por Candor em 1999 que confirmou a existência dos isolados.
No ano passado, uma operação da Sema flagrou um grupo de invasores abrindo, com retroescavadeira, uma estrada ilegal dentro da unidade de conservação.
E não apenas os indígenas isolados estão em risco, também as próprias comunidades agroextrativistas que vivem na Reserva Extrativista (Resex) Guariba-Roosevelt estão ameaçadas pelas constantes invasões, conforme pontuou outro ofício da DPU, de abril passado, subscrito pelo defensor público federal regional de direitos humanos Renan Vinicius Sotto Mayor. Em maio de 2022, um grupo de grileiros incendiou um barracão de seringueiros no mesmo dia em que deveria ocorrer uma audiência pública organizada pelo Ministério Público de MT para discutir as invasões.
No último dia 1º de maio, a organização não governamental Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI), que teve como um dos fundadores o indigenista Bruno Pereira, assassinado no Vale do Javari em junho de 2022, informou à 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF) que a situação verificada na região norte de Mato Grosso é “uma das consequências da política anti-ambiental e anti-indígena levada a cabo” desde o início do governo Bolsonaro, em janeiro de 2019.
Da posse de Bolsonaro até 2022, “houve um aumento substancial do desmate nas duas Resex”, diz o relatório do OPI, que denunciou também “um verdadeiro ‘abraço da morte’” contra os isolados. Durante o governo Bolsonaro, foram desmatados 55 quilômetros quadrados apenas na Resex Guariba-Roosevelt, “um incremento de mais de 180% em relação ao período 2015-2018”, diz o relatório do OPI. Na Resex Guariba, foram desmatados 11 quilômetros quadrados, um “aumento de 10.000%”.
“O território indígena está cercado por invasores que inicialmente instalaram-se na Resex Guariba-Roosevelt [Mato Grosso] e avançaram também sobre a Resex do Guariba [Amazonas]. Grileiros e madeireiros assolam também a área do município de Colniza (MT) situada na porção sudeste do entorno da terra indígena, se aproximando perigosamente de seus limites”, relatou o OPI no ofício assinado pelo seu coordenador-executivo, Fabio Nogueira Ribeiro.
Em 2016, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso havia tentado excluir 107 mil hectares da Resex Guariba-Roosevelt, mas a Justiça estadual depois tornou nulo o decreto legislativo. A tentativa de redução foi “um sinal claro aos grileiros, que invadem terras públicas e protegidas sempre na expectativa de iniciativas do poder público para regularização fundiária de invasões ilegais”, disse o OPI.
O OPI informou ainda que, “além da ausência de fiscalização dos governos estaduais e do estímulo parlamentar às invasões”, uma estrada ilegal foi aberta por grileiros e madeireiros e “tem servido de rota para os invasores que ameaçam a existência dos isolados da TI Kawahiva”.
“A estrada teria sido autorizada oficialmente pelas prefeituras de Colniza (MT) e de Nova Aripuanã (AM), garantindo acesso mais fácil de criminosos tanto à Resex Guariba-Roosevelt quanto à Resex Guariba. A via passa a menos de 3 km da terra indígena e contribui significativamente para as atividades ilegais na região. As leis municipais que possivelmente autorizaram a abertura da estrada não encontram abrigo no ordenamento jurídico, uma vez que versam sobre unidades de conservação estaduais.”
Na ADPF ajuizada pela Apib em defesa dos povos isolados, o ministro Edson Fachin determinou à União, em novembro passado, que adotasse “todas as medidas necessárias para garantir a proteção integral dos territórios com presença de povos indígenas isolados e de recente contato”. Sobre a terra Kawahiva, Fachin ordenou a apresentação de um “cronograma para conclusão da demarcação da terra indígena”.
A Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu da decisão quase no final do governo Bolsonaro. O então advogado-geral, Bruno Bianco Leal, alegou que a decisão de Fachin deveria ser revogada e que as determinações do ministro “ingressam no núcleo essencial da ‘reserva de Administração’, promovendo uma verdadeira troca dos sujeitos responsáveis pela execução das políticas públicas”. Fachin rejeitou o recurso.
Embora declarada em 2016 pelo Ministério da Justiça, a Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, com 411 mil hectares, permaneceu sem homologação pela Presidência da República ao longo dos governos Michel Temer (2016-2018) e Bolsonaro. De acordo com levantamento feito pelo indigenista Leonardo Lênin em 2016, os isolados que habitam o território são provavelmente sobreviventes de um povo falante da língua hawahiva, da família linguística tupi-guarani, como outros povos “tais como Amondawa, Parintintin, Tenharim, Karipuna, Juma”.
“No entanto, ao contrário desses outros povos, os Kawahiva do Rio Pardo são caçadores e coletores. Especula-se que deixaram de exercer a agricultura em função das estratégias de constante fuga que adotaram por conta do histórico de ataques sofridos em seu território.”
A presença dos isolados na região era conhecida desde os anos 1980, mas foi confirmada em 1999, após uma expedição realizada pela Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena, da Funai. Em maio daquele ano, dois madeireiros foram surpreendidos por um grupo de indígenas isolados que jogaram contra o acampamento galhos e ouriços de castanha. Assustados, os madeireiros fugiram e relataram o evento na cidade de Colniza. A história chegou ao conhecimento do antropólogo João Dal Poz. Ele notificou o Ministério Público e a Funai, que por fim confirmou oficialmente o registro do grupo.
Os isolados do rio Pardo, ao que tudo indica, continuam empreendendo suas fugas e deslocamentos pela mata. Mas galhos e castanhas já não assustam os invasores e suas máquinas de destruição.