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Opositores de Maduro denunciam que governo confisca imóveis, ameaça e prende moradores e até vizinhos

Reportagem
30 de julho de 2024
18:46

Em julho de 2023, os amigos do major-general Iván Hernández Dala, chefe da Direção de Contrainteligência Militar (DGCIM) da Venezuela, compartilharam abertamente fotografias da festa de casamento do militar com sua atual esposa, Paola Dávila. A ocasião foi celebrada em uma casa próxima à Laguna de Caraballeda, no estado litorâneo de Vargas, ao norte de Caracas. Os convidados não tiveram pudor em mostrar nas imagens o que beberam, comeram e dançaram.

A quinta Los Gnomos, que naquela noite serviu como local para a festa, até 2020 era uma residência familiar. Na época, em plena pandemia, funcionários da contrainteligência militar tomaram o lugar sem uma ordem judicial. Ao inquilino e à sua família foi exigido que desocupassem o imóvel, com apenas 15 dias para retirar todos os seus pertences.

A proprietária da residência e locadora dos desalojados era Isabel González Capriles. Seu avô construiu a casa em 1967, onde cresceram, primeiro, sua mãe, Mitzy Capriles de Ledezma, e depois a própria Isabel com suas quatro irmãs.

Isabel González Capriles, que agora vive na Alemanha, é enteada do ex-prefeito de Caracas, o opositor Antonio Ledezma, atualmente exilado na Espanha, e esposa do ex-ministro de várias pastas dos governos de Hugo Chávez, Andrés Izarra.

O que era o patrimônio dessa família é hoje um abrigo para os agentes de contrainteligência, que transformaram o local em um espaço de usos múltiplos. Lá acontecem festas, reuniões e até operações da DGCIM, um órgão de segurança cujos líderes foram sancionados pela União Europeia e pelos Estados Unidos por cometerem violações de direitos humanos.

Em 2013, González Capriles deixou a Venezuela e alugou a casa para uma família. Por sete anos, o inquilino e seus três filhos viveram lá, até que em 2020 os agentes da DGCIM invadiram o local. Eram pelo menos 20, armados, e disseram que a casa estava “confiscada”. Desde então, são muitas as fotografias que Dávila, esposa de Hernández Dala, publicou em sua conta privada do Instagram, mostrando-se desfrutando das instalações dessa propriedade.

González Capriles também afirmou, em entrevista para esta reportagem, que os vizinhos viram outros oficiais da DGCIM entrarem na propriedade, como o recém-promovido coronel Alexander Granko Arteaga, chefe da Divisão de Assuntos Especiais do órgão. Granko Arteaga aparece em relatórios do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos como parte da cadeia de comando que ordenou e executou torturas contra presos políticos na Venezuela. Ele foi acusado também de violação de direitos humanos no Tribunal Penal Internacional.

Segundo González Capriles, atualmente, da Laguna de Caraballeda, é possível observar dois barcos que a DGCIM ancorou no cais da propriedade. Além disso, em um passeio realizado por Armando.Info e Connectas, foi possível perceber que funcionários desse corpo de segurança estão presentes na área, com dois de seus veículos estacionados do lado de fora. Os funcionários entram e saem com frequência. A grade, que sempre foi branca, foi pintada de preto.

Assim como a enteada do ex-prefeito Ledezma, muitos dos políticos ou figuras públicas que se exilaram da Venezuela fugindo do regime chavista não só foram levados ao exílio, mas também tiveram suas propriedades confiscadas, sem nenhum processo legal. 

Treze pessoas entrevistadas para esta história conjunta de Armando.Info e Connectas manifestaram sentir-se indefesas, sem que lhes seja permitido reclamar esses bens. Advogados e organizações locais na Venezuela, também consultados, concordaram.

A maneira de agir tem sido semelhante em quase todos os casos. Uma comitiva, seja da DGCIM, do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin, polícia política) ou da Polícia Nacional Contra a Corrupção (PNCC), chega à propriedade desabitada de algum perseguido político que se encontra no exílio. Sem ordem de busca, eles entram, vasculham e levam tudo o que encontram. Muitos vizinhos das vítimas denunciaram que os funcionários levam outros bens, como carros ou computadores, e até foram vistos transportando caixas e sacos cheios de roupas e brinquedos.

Agentes do DGCIM em frente a propriedade confiscada na Venezuela
Os confiscos são realizados pelo DGCIM, Sebin e PNCC; os afetados denunciam que os agentes entram em suas propriedades sem ordem judicial

Em alguns casos, realizam várias buscas para continuar esvaziando “o quarto das lembranças”, como descreveu para este relatório o ex-prefeito de Caracas Antonio Ledezma desde seu exílio em Madri, referindo-se a uma música do cantor e compositor venezuelano Reynaldo Armas. A família Ledezma-Capriles não só teve confiscada sua propriedade em Caraballeda, mas também um apartamento em Santa Rosa de Lima, um bairro de classe média alta no sudeste de Caracas, do qual Mitzy Capriles, esposa do político, é proprietária.

Desde abril de 2015, Ledezma viveu nesse apartamento sob prisão domiciliar, por uma acusação de associação criminosa e conspiração. Meses antes, havia sido detido arbitrariamente na sede do Sebin na Praça Venezuela, em Caracas, até obter uma medida cautelar para se submeter a uma cirurgia de hérnia e iniciar um período de prisão domiciliar. Em novembro de 2017, finalmente conseguiu escapar do país.

A busca e o posterior confisco da residência onde esteve confinado ocorreram seis anos após seu exílio. Em agosto de 2023, funcionários da PNCC apresentaram-se no apartamento em Santa Rosa de Lima. Vizinhos contaram depois ao ex-prefeito que homens encapuzados e armados forçaram a fechadura, entraram e levaram caixas com seus pertences. Quando partiram, deixaram um aviso na porta no qual, ainda hoje, se lê: “Fechado”.

Muitas das propriedades que o Estado confiscou nos últimos anos pertencem a pessoas que foram acusadas pela Justiça chavista de crimes como traição à pátria, associação criminosa e conspiração, ou que simplesmente participaram ativamente da oposição política. No entanto, a represália atinge também outros perfis, como acadêmicos, diplomatas e intelectuais.

Após as buscas e o roubo dos pertences de cada uma dessas pessoas, os corpos de segurança costumam trocar as fechaduras das propriedades dos exilados. Nenhum deles recebe uma notificação ou citação sobre o que está acontecendo com seus bens. Depois dos acontecimentos, não recebem informações ou acesso ao processo do caso.

Além disso, aqueles que tentam denunciar o ocorrido, como os advogados dos despojados, tornam-se alvos de ameaças de morte. Alguns deles foram ameaçados por agentes de segurança, que chegaram a apontar armas ou transportá-los para o Helicoide, o edifício no oeste de Caracas que serve como sede do Sebin, bem como uma prisão para presos políticos.

Imagem aérea de Caracas, capital da Venezuela
Estado confiscou propriedades de opositores e outros, sem notificação, ameaçando até advogados com armas e prisão no Sebin

Estado sem defesa

Assim aconteceu com Enrique Perdomo, advogado defensor de Bony Pertíñez, esposa de Iván Simonovis, ex-secretário de Segurança Cidadã da Prefeitura Metropolitana de Caracas.

Simonovis foi um dos primeiros presos políticos do governo de Hugo Chávez, condenado a 30 anos de prisão pelos acontecimentos de 11 de abril de 2002 em Caracas. Ele passou 11 anos confinado na sede do Sebin até que, em 2014, recebeu uma medida cautelar de prisão domiciliar devido ao agravamento de sua saúde. Em julho de 2019, conseguiu escapar de sua casa na região de La Florida, no norte de Caracas, para se estabelecer nos Estados Unidos.

Poucos dias após a fuga, um grupo de funcionários do Sebin apareceu na residência, que pertence à sua esposa. Na época, Pertíñez estava na Alemanha. Foram os vizinhos que a avisaram de que sua casa estava sendo confiscada.

“Nunca tive acesso à informação. Não me notificaram de nada, nem ao meu advogado. Atribuem a Iván crimes de traição à pátria e associação criminosa, relacionados à sua fuga. E eles vincularam essa apreensão ao caso de Iván”, disse Pertíñez, entrevistada para esta história.

Seu advogado, Enrique Perdomo, chegou ao local horas depois de informarem Pertíñez sobre a busca. Ao chegar, os funcionários já haviam partido. Perdomo decidiu passar a noite na casa, como precaução, caso ocorresse uma segunda busca. E de fato: no dia seguinte, os funcionários do Sebin voltaram. O advogado Perdomo foi preso e levado para o Helicoide, onde ficou um ano detido, acusado de obstrução à administração da justiça. Lá, ele sofreu um infarto que afetou seu olho esquerdo.

Durante a busca e confisco da casa dessa família, uma das vizinhas também foi presa, a presidente do conselho do condomínio local na época, Antonia Turbay. Ela também passou um ano presa no Helicoide, onde sua saúde piorou. A mulher foi acusada então de supostamente colaborar com a fuga de Simonovis.

Os casos das famílias Ledezma-Capriles e Simonovis-Pertíñez resumem a dificuldade que os afetados enfrentam para se defender da confiscação arbitrária de suas propriedades.

Em 28 de maio de 2019, o Tribunal para Crimes Associados ao Terrorismo, com jurisdição nacional, emitiu uma medida cautelar de confisco sobre a casa de Pertíñez. Essa propriedade está registrada em nome da Sociedad Mercantil Pertíñez Heidenreich Publicidad C.A., da qual Bony Pertíñez é a única acionista.

“Os bens pertencentes a pessoas que não tenham participação nos atos delituosos, comprovada a sua propriedade, devem ser devolvidos imediatamente pelo juiz”, alega Pertíñez, que também é advogada.

Em outubro de 2019, sua defesa apresentou um documento solicitando informações sobre os fundamentos nos quais o tribunal se baseou para decretar a medida cautelar, assim como o acesso imediato ao processo e cópia autenticada. Mas eles não aceitaram nem forneceram a informação solicitada.

Então, solicitou um mandado de segurança constitucional perante o Tribunal Especial Competente, recurso que, em 2020, foi declarado inadmissível. Segundo consta nos autos, o tribunal considerou que Pertíñez não tinha legitimidade nem para atuar no referido processo penal nem para se opor à medida de confisco do imóvel, por não ser parte constituída.

“Neste processo de confisco nunca recebi uma resposta oportuna e eficaz, por isso me encontro em um estado de indefensibilidade em relação aos direitos fundamentais que me assistem, entre eles o direito à propriedade e o direito à defesa”, argumenta Pertíñez. “O Estado venezuelano”, continua, “se apropriou indevidamente da minha casa, sem me deixar demonstrar a licitude da minha propriedade nem solicitar a sua devolução. Além do exílio forçado ao qual fui submetida, causam-me um grande dano. Não é apenas uma casa, é o seu lar, o seu vínculo emocional, a sua lembrança, a sua vida… Meus filhos e eu não temos uma casa para onde voltar. São 15 anos de vida que eles têm com eles. Mas já entendi que, se isso faz parte do custo da liberdade de Iván, então não tem preço.”

Imagem de arquivo mostra os filhos de Bony Pertíñez
Aos afetados, como Bony Pertíñez e seus filhos, não lhes foi dado acesso a informações sobre a situação de suas propriedades

Segundo o artigo 116 da Constituição em vigor desde 1999, apenas “em caráter excepcional podem ser objeto de confisco, mediante sentença definitiva, os bens de pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras, responsáveis por crimes cometidos contra o patrimônio público, os bens daqueles que se enriqueceram ilicitamente sob a proteção do Poder Público e os bens provenientes de atividades comerciais, financeiras ou quaisquer outras vinculadas ao tráfico ilícito de substâncias psicotrópicas e entorpecentes”.

Dois advogados entrevistados para esta história, que têm atuado em vários casos de pessoas afetadas por esse tipo de desapropriação e que, por segurança, preferem não revelar seus nomes, concordam que essas confiscações são inconstitucionais e fazem parte de um sistema de justiça politizado. “Estamos falando que, em nenhum desses casos, houve uma condenação nem há crime contra o patrimônio público. Também não foi permitida a presunção de inocência. Não se pode confiscar ou apreender um bem sem nenhum processo ou condenação. E, no caso dos exilados, é ainda pior, já que no país é proibido o julgamento à revelia”, explicou um deles.

Os advogados explicam que o Estado venezuelano agora realiza essas confiscações no âmbito da Lei de Delinquência Organizada e Financiamento ao Terrorismo, aprovada em 30 de abril de 2012, durante o governo de Hugo Chávez. No caso dos exilados, o artigo 58 dessa lei serve de justificativa. Ele estipula que, “decorrido um ano desde que se praticou a apreensão preventiva sem que tenha sido possível estabelecer a identidade do titular do bem, autor ou partícipe do fato, ou este o tenha abandonado, o promotor ou a promotora do Ministério Público solicitará ao tribunal de controle seu confisco”.

No entanto, os advogados explicam que, na prática, nem mesmo esse processo é cumprido: “As pessoas não são notificadas, aqueles que não têm vínculo com o processo não podem intervir como terceiros. Aqueles que estão supostamente vinculados não podem exercer oposição nem designar advogados. Estamos falando, então, de um processo estruturado para que o acusado não possa se defender”.

Segundo a mesma lei, quando a decisão de confisco por parte do tribunal de controle se tornar definitiva, o bem passará à ordem do órgão competente ou do Serviço Especializado para a Administração e Alienação de Bens Apreendidos ou Confiscados (SEB). Então, esses bens passam a ser de utilidade pública.

Agente de segurança do governo da Venezuela em frente a propriedade confiscada
As forças de segurança geralmente ocupam e mantém a custódia das casas dos exilados políticos

Pena adicional

A confiscação arbitrária de propriedades de exilados políticos não ocorreu apenas nos últimos anos, nem apenas durante o governo de Nicolás Maduro.

Seu antecessor, o falecido Hugo Chávez, ainda é lembrado no país pela cadeia nacional de rádio e TV em que apontava diversos locais ao redor da Plaza Bolívar de Caracas enquanto ordenava em voz alta: “Expropriem!”.

Diego Arria foi um dos afetados naquela época. Ex-ministro do primeiro governo do social-democrata Carlos Andrés Pérez (1974-1979), ex-representante da Venezuela na ONU e ex-presidente do Conselho de Segurança, Arria sofreu a desapropriação de uma fazenda, La Carolina.

No final de abril de 2010, funcionários do Instituto Nacional de Terras (INTI), juntamente com membros da Guarda Nacional Bolivariana (GNB), apareceram na propriedade, na Estrada Panamericana entre Bejuma e Nirgua, no estado de Yaracuy, e ordenaram a todos os trabalhadores que se retirassem do local, informando-os de que as terras passaram para as mãos do Estado.

Pouco tempo depois, em novembro de 2011, Arria se inscreveu como pré-candidato para eleições primárias da oposição, visando às eleições presidenciais da Venezuela de 2012. Quase simultaneamente, apresentou ao procurador principal do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia uma denúncia contra Hugo Chávez por crimes contra a humanidade.

“Se você quer sua fazenda, tem que me derrubar”, respondeu então Chávez diante das câmeras de televisão. Assim como Pertíñez, Arria apresentou diversos recursos e solicitou informações aos tribunais, sem obter resposta. Até hoje, seu caso continua engavetado.

Seu advogado, Rubén Rumbos, teve uma pistola colocada em sua boca assim que chegou à fazenda, teve os dentes quebrados e foi ameaçado de morte caso não assinasse o documento que autorizava a expropriação. “Os próprios funcionários do INTI estavam armados, quando eles não têm competência para isso. São funcionários públicos administrativos, e estavam com armas de 9 milímetros!”, lembrou Rumbos, consultado para esta história.

A fazenda de 373 hectares está hoje inoperante.

O ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez
Hugo Chávez, em cadeia nacional, ordenou “Expropriem!”, afetando diretamente exilados políticos como Arria

As confiscações, assim como as invasões de propriedades, fazem parte de um sistema de perseguição e repressão do Estado venezuelano, segundo afirmam organizações internacionais. Em 2017, a Anistia Internacional publicou em seu relatório “Noites do Terror: Ataques e invasões ilegais a residências na Venezuela” que forças de segurança e grupos civis armados apoiados pelo governo invadiram violentamente as casas de pessoas para intimidá-las e dissuadi-las de participar de manifestações e qualquer outra forma de protesto.

“Na Venezuela, não há lugar que esteja a salvo do poder perverso das forças de segurança. Nem mesmo o próprio lar”, afirmou na época Erika Guevara-Rosas, diretora da Anistia Internacional para as Américas.

Entre abril e julho de 2017, período em que por mais de três meses houve protestos de rua na Venezuela, com um saldo de pelo menos 120 mortos, organizações locais de direitos humanos registraram 47 invasões ilegais em 11 estados do país, justamente quando os distúrbios estavam em seu auge.

“As autoridades venezuelanas descobriram uma nova e inquietante forma de reprimir a dissidência em sua ânsia aparentemente interminável de infundir medo na população”, completou Guevara-Rosas na publicação da Anistia Internacional.

O coronel Oswaldo García Palomo está preso há quase cinco anos na sede da DGCIM em Boleíta Norte, Caracas. Seu caso inclui torturas que foram documentadas e denunciadas pela missão do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas e pelo Tribunal Penal Internacional.

García Palomo foi vítima de múltiplas invasões de suas propriedades. Além disso, confiscaram outras três propriedades de sua família.

A primeira invasão ocorreu em fevereiro de 2018, quando funcionários da DGCIM chegaram à casa do militar em Altos Mirandinos, uma zona de classe média do estado de Miranda, a sudoeste de Caracas, onde se encontravam seu filho e sua esposa, Sorbay Padilla. Repetindo o padrão dos outros casos, os agentes não tinham nenhuma ordem de invasão, mas invadiram a casa e levaram computadores, roupas e documentos. Além disso, detiveram os familiares de García Palomo, que ficaram desaparecidos por quase uma semana em uma casa clandestina de tortura em Caracas, conforme relataram há um ano em uma entrevista para o Armando.Info.

Após serem liberados naquele mesmo mês de fevereiro, eles deixaram o país. Três meses depois, em maio, a DGCIM invadiu novamente a propriedade em Altos Mirandinos. Naquele momento, vivia lá a sobrinha do coronel, Ariana Granadillo, que também foi sequestrada e levada para uma casa clandestina de tortura.

Coronel Oswaldo García Palomo posa para foto com seus cachorros no quintal de sua casa
O coronel Oswaldo García Palomo passou cinco anos preso na sede do DGCIM; nesse tempo, confiscaram três propriedades de sua família

Esse atropelo à propriedade não foi o último que a família sofreria, pois, conta Padilla, no final de 2022 voltaram a fazer o mesmo: “O que os vizinhos me disseram é que, desde aquela vez, deixaram as portas da minha casa abertas e são vistos carros pretos [parados na frente] e funcionários entrando e saindo”, diz.

A família teve confiscado também um apartamento que tinha na urbanização El Rosal de Caracas, assim como uma pequena fazenda em El Palenque, estado de Guárico. “A pessoa que cuidava dessa terra foi espancada, roubaram tudo o que tínhamos e tomaram a fazenda. Sabemos que há pessoas vivendo lá, mas não as identificamos, e os vizinhos têm muito medo de nos contar algo”, acrescenta Padilla.

O modus operandi se repetiu em seu apartamento de El Rosal: disseram-lhe que havia alguém morando lá. “Quando liguei para o condomínio para saber, responderam que nem pensasse em continuar investigando e perguntando”. Seu marido, militar, perdeu também a pensão e nenhum dos dois tem acesso às suas contas bancárias.

Padilla teve que pedir asilo no Canadá, de onde continua denunciando as condições precárias e desumanas em que seu marido é mantido na sede da DGCIM. “Começar em um novo país é difícil. Sofri muito por causa daquela casa, não pelo material, mas pelas lembranças do meu lar. Entendi que tinha que deixar para trás para seguir em frente. Mas a verdade é que também, como família, perdemos esse capital econômico”.

Seus vizinhos sofreram o mesmo que nos outros casos documentados. Após as invasões e confiscações, vêm as ameaças e um terror generalizado nas áreas onde estão localizadas as propriedades.

As 13 vítimas consultadas para esta história coincidiram em que seus vizinhos, juntas de condomínio ou funcionários de segurança têm medo de denunciar o que está acontecendo. Por exemplo, Isabel González Capriles contou que funcionários da DGCIM foram aos apartamentos do prédio em frente à sua casa para proibir os moradores de enviar fotos ou vídeos da quinta Los Gnomos.

Após as invasões e confiscações, vêm as ameaças e um terror generalizado nas áreas onde estão localizadas as propriedades. Outros líderes políticos exilados afirmaram que não puderam fazer nenhuma denúncia pública porque seus entes queridos continuam sob ameaça de serem detidos pelo Sebin.

Reprodução de conversa no WhatsApp
Depois das invasões e confiscos, vêm as ameaças e o terror generalizado nas áreas onde as propriedades estão localizadas

A confiscação dos bens de líderes opositores no exílio às vezes alcança as propriedades dos membros de suas equipes de trabalho. Foi o caso dos assistentes do fundador e coordenador nacional do partido Primero Justicia (PJ), Julio Borges, que desde seu exílio em Valência, Espanha, contou que sua propriedade na urbanização Santa Eduviges de Caracas também foi invadida e confiscada em agosto de 2018, cinco meses após sua saída da Venezuela.

“Esvaziaram tudo, roubaram tudo: carros, roupas dos meus filhos… Desde então, invadiram minha casa várias vezes e enviam membros do Sebin sempre que Maduro menciona que estou envolvido em um ato conspirativo”, relatou Borges.

Ele confessa que não denunciou esse fato porque nenhum advogado aceita assumir sua defesa. Ao seu assistente, Fernando Zambrano, e ao resto de sua família, confiscaram no total cinco propriedades entre 2018 e 2020. Uma delas, localizada no edifício B3 do La Lagunita Country Club, em El Hatillo, Caracas, foi cedida pelo Serviço Especializado para a Administração e Alienação de Bens Apreendidos ou Confiscados a Raúl José Rodríguez Ugarte, que é sócio de Roberto Leyba Morales. Leyba é advogado do escritório Venezuelan Attorneys, que defendeu a empresa Petróleos de Venezuela em vários casos. Em algum momento, além disso, foi parceiro de María Gabriela Chávez, segunda filha do falecido Hugo Chávez.

Os advogados entrevistados comentaram que algumas das propriedades confiscadas ou foram atribuídas a funcionários públicos ou têm outro uso. Por exemplo, a casa de Gustavo Tovar, ativista de direitos humanos e cineasta, agora é a sede do Serviço Nacional para o Desarmamento (Senades).

Gustavo Tovar começou seu exílio em 2012, quando foi para o México após ter sido acusado de traição à pátria. Dois anos depois, funcionários do Ministério do Interior e Justiça chegaram à sua casa, na zona de Sebucán, no nordeste de Caracas. A residência havia funcionado até então como centro de reuniões do Movimento Estudantil e também como local de trabalho para organizações não governamentais, como Sin Mordaza e Futuro Presente.

O advogado de Tovar, Mario Guillermo Massone, que estava presente durante a invasão da propriedade, relatou, também do exílio na Espanha, que, quando chegou ao imóvel, a diretora do escritório do Senades, Delia Rondón, reconheceu que a propriedade se tornaria a sede do organismo. “Naquele momento, solicitei uma ordem judicial e não me deram. Roubaram tudo o que havia na casa: roupas, louças, televisores, computadores, liquidificadores…” Um funcionário, Yeimy Varela, que cuidava da casa desde que Tovar deixou a Venezuela, foi detido durante a invasão e ficou dois anos e meio preso no Helicoide.

Armando.Info e Connectas constataram que, atualmente, a casa não tem identificação do Senades, mas está guardada por dois vigilantes. Não havia movimento na propriedade, apenas escombros e um carro estacionado.

O caso da casa de Tovar não é uma exceção. Carlos Vecchio, coordenador nacional do partido Voluntad Popular (VP), embaixador nos Estados Unidos durante o governo interino de Juan Guaidó e exilado desde 2014 em Washington DC, tinha alugado seu apartamento em El Rosal, Caracas. Mas funcionários do Sebin disseram ao inquilino que ele deveria sair imediatamente e informaram que a propriedade estava confiscada.

Meses depois, uma conhecida de Vecchio, que tinha uma cópia da chave, foi ao apartamento e tentou abrir a porta, mas a fechadura já havia sido trocada. Em seguida, no prédio, informaram que ali estava morando Milagros Zapata, magistrada do Supremo Tribunal de Justiça.

Legalizar o Ilegal

Em 28 de abril de 2023, a Assembleia Nacional, controlada pelo chavismo, aprovou a Lei de Extinção de Domínio com o objetivo de “estabelecer mecanismos que permitam a identificação, localização e recuperação dos bens e efeitos patrimoniais originados por atividades ilícitas ou destinados a essas atividades, bem como a extinção dos direitos e atributos relativos ao domínio dos mesmos em favor da República, mediante sentença, sem contraprestação ou compensação alguma”.

Essa mesma lei permite transferir ao Estado a titularidade dos bens relacionados com atividades consideradas como crime na legislação “contra a corrupção, a delinquência organizada, o financiamento do terrorismo, a lavagem de dinheiro e o tráfico ilícito de substâncias psicotrópicas e entorpecentes”, mesmo que não haja uma sentença no processo penal correspondente.

Os advogados entrevistados concordam que esse é um mecanismo que certifica e acelera o processo de confiscação que, na prática, já vem sendo feito. Organizações da sociedade civil, como Acceso a la Justicia, denunciaram que a nova lei poderia ser aplicada com fins diferentes daqueles para os quais foi concebida. “Um dos pontos mais destacados é que o projeto não contempla a hipótese de que a pessoa titular dos bens a que se aplica a medida de extinção de domínio seja declarada inocente, uma situação que causaria danos irreparáveis”, afirmou um porta-voz da organização.

Os advogados explicam que um dos perigos dessa lei é que ela não está vinculada à demonstração da responsabilidade penal, de modo que o Estado pode, com o “mero apontamento”, agir contra os bens do acusado. “Com essa lei, não é necessário demonstrar que o crime ocorreu. Se analisada sob uma perspectiva de insegurança jurídica, qualquer lei que implique a redução dos direitos em uma justiça politizada só será utilizada contra opositores políticos”, opinou um dos advogados que pediram para ter sua identidade resguardada.

Além disso, o porta-voz do Acceso a la Justicia explicou também que essa lei estabelece que os bens declarados em extinção de domínio serão alienados a título oneroso pelo Executivo nacional, e os recursos obtidos de sua venda serão destinados, entre outras finalidades, “a financiar o funcionamento do sistema de proteção social e a realização dos direitos humanos, a fim de garantir o adequado funcionamento de serviços públicos de qualidade, bem como para recuperar, manter e ampliar a infraestrutura pública”.

No entanto, a lei não estabelece quais mecanismos devem ser empregados pelo Executivo para garantir e, sobretudo, supervisionar o cumprimento desses objetivos, a fim de evitar qualquer irregularidade.

“A isso se soma o fato de que, enquanto se profere uma sentença, o que na tradição venezuelana pode levar anos, esses bens são entregues à administração de entidades públicas que não prestam contas [sobre o uso dos bens], ou, pior ainda, são utilizados indevidamente para o desfrute de algum funcionário”, explicam. “E, nesse sentido, uma grande falha do projeto é não obrigar a dar publicidade sobre como esses bens são geridos, tanto desde que são adjudicados cautelarmente quanto quando são definitivamente adjudicados ao Estado”, completam.

No contexto da promulgação dessa lei em abril do ano passado, Nicolás Maduro anunciou que mais de mil bens haviam sido confiscados em um mês. Entre esses ativos estavam 361 veículos de luxo, 52 caminhões, 38 apartamentos de luxo, 28 “casas-mansão”, 23 máquinas pesadas, 19 aeronaves, 16 escritórios, 13 complexos empresariais, nove motocicletas, nove ônibus, sete embarcações, sete empresas, seis edifícios, uma pousada, um clube e armas. “O valor está calculado, por enquanto, em vários milhões de dólares”, disse o mandatário.

O atual presidente da Venezuela, Nicolás Maduro
Durante o ato de promulgação da Lei de Extinção de Domínios, Nicolás Maduro fez um balanço dos bens apreendidos em apenas um mês

Três meses antes da promulgação dessa lei, o Estado realizou várias invasões das propriedades de membros da junta diretiva da Assembleia Nacional eleita em 2015 e ainda liderada pela oposição desde o exílio, desde janeiro de 2023. A primeira a denunciar esses fatos foi a presidente da Assembleia, Dinorah Figuera. De Valência, Espanha, contou que funcionários da DGCIM chegaram ao seu apartamento em Caracas, forçaram a fechadura e informaram a dois de seus vizinhos que aquela residência não pertencia mais à sua dona.

O mesmo ocorreu com o secretário da Assembleia e militante do partido Un Nuevo Tiempo (UNT) José Antonio Figueredo, exilado desde 2019 em Atlanta, Estados Unidos. Em seu caso, dois de seus negócios em Maracaibo, estado de Zulia, foram invadidos pela DGCIM. Os agentes levaram os pertences de ambos os negócios, uma loja de artigos esportivos e outra de iluminação. “Ameaçaram os donos que me alugavam os locais e, a partir desse momento, fui obrigado a fechar meus dois negócios”, relatou.

José Ignacio Hernández, que de fevereiro de 2019 a junho de 2020 desempenhou o cargo de Procurador Especial durante o governo interino de Juan Guaidó, também foi alvo de múltiplas invasões. Após declarar essa designação como inconstitucional, o governo de Maduro decidiu adotar medidas penais contra Hernández, como o congelamento de seus bens e a proibição de saída do país.

“Perdi o acesso às minhas contas bancárias, o dinheiro que tinha terminou desvalorizado pela inflação. [Lá] eu tinha uma parte importante das minhas economias, que perdi. Além disso, fui bloqueado em todos os sistemas de identidade. Minha cidadania foi revogada pelo regime da Venezuela. Congelaram meu passaporte e não me permitem renová-lo. Fui apátrida por muitos anos e não podia realizar nenhum trâmite com o Estado. Não só confiscam sua propriedade, mas também seus direitos cidadãos”, lamenta Hernández dos Estados Unidos, onde se encontra exilado junto com sua família.

A PNCC foi duas vezes à sua casa em Caracas. Na primeira, colocaram uma etiqueta que dizia “Confiscada” e trocaram a fechadura. Na segunda, em outubro de 2020, quatro meses após ele ter renunciado ao cargo, invadiram novamente a casa, levaram documentos, roupas e outros bens. Embora não haja ninguém morando no local, parece que o Estado quer cuidar da fachada de qualquer forma: um funcionário da urbanização contou, durante a visita ao local realizada por Armando.Info e Connectas, que há seis meses alguns milicianos limparam e pintaram a casa.

“Lá eu tinha todas as minhas lembranças: cartões de Dia dos Pais, fotografias, livros… Confiscam suas memórias, isso é o mais doloroso”, afirma Hernández. “Além do imóvel, que também era meu principal patrimônio, no final te tiram a memória física da sua vida”, conclui com resignação.

Por causa dos riscos envolvidos, Armando.Info e Connectas acordaram que para esta história a repórter NÃO buscaria a versão dos acusados, vinculados a corpos de segurança e entidades do Estado venezuelano.

Tradução:

*Esta reportagem foi publicada originalmente em Armando.Info, site de jornalismo investigativo fundado por jornalistas venezuelanos. A investigação foi feita em parceria com a Connectas, plataforma para jornalismo investigativo para as Américas.

Reprodução/Instagram/Paola Dávila
Reprodução/Instagram/Paola Dávila
Arquivo pessoal/Isabel González C.
Fernando Flores/Wikimedia Commons
Arquivo pessoal/Bony Pertíñez
Arquivo pessoal/Bony Pertíñez
Valter Campanato/Agência Brasil
Arquivo pessoal/García Palomo
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Prensa Presidencial Venezuela/Reprodução/Twitter

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