“Eu venho de uma família que a gente não tinha muitas opções de conhecimento sobre alimentação, até que eu tive oportunidade de trabalhar num coworking. Tinha gente de uma classe financeira diferente da minha, a galera poderia optar por picanha e comia lasanha de berinjela. Descobri que a alimentação saudável tinha um preconceito dentro de mim, mas que o sabor era muito bom. Meu nome é Hamilton Henrique, tenho 30 anos, sou morador de Recife e sou fundador do Saladorama.” Inicia-se assim um vídeo publicado no YouTube em 9 de novembro último.
Hamilton Henrique da Silva Ribeiro está há quase quatro anos contando essa história em palestras, vídeos e reportagens. Ele é de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, e seu forte é contar como conseguiu sucesso com um negócio social inédito. Em 2015, ele fundou o projeto Saladorama, que teria como missão “democratizar a alimentação saudável no Brasil”. Nas falas de Hamilton, trata-se de um delivery de saladas orgânicas feitas por pessoas da comunidade para serem vendidas nas favelas por preços acessíveis.
Mas, segundo funcionários e parceiros, não é bem assim que o Saladorama funciona na prática.
Com o Saladorama, que estaria presente em seis Estados, Hamilton afirma ter impactado até 400 mil pessoas, inclusive fora do país – até na África. Mas não há depoimentos, fotos, vídeos ou documentos que comprovem esse impacto ou qualquer outro resultado social. Enquanto ele dá entrevistas, é apoiado por empresas e convidado para eventos, o que de fato há são denúncias, relatadas à Pública, de pessoas que trabalharam ou se envolveram com Hamilton e seu Saladorama em diferentes cidades e períodos.
“Olhando de fora, tudo tá voando, estou em revista, gravando programa de TV, na rádio, vídeos rodando o mundo, jornais, eventos nacionais e internacionais e quase toda semana tem um blog replicando uma matéria já publicada…”, afirma ele em post de 2 de novembro passado.
Famoso em reportagens e palestras
Desde que fundou o Saladorama em 2015, Hamilton já concedeu entrevistas para mais de 20 mídias diferentes, entre eles os jornais O Globo e Folha de S.Paulo e a revista PEGN. Já esteve no programa Encontro com Fátima Bernardes, foi tema de reportagem no Globo Repórter e apresentou-se no GloboNews Prisma este ano. Nos últimos três anos, ele já participou também de alguns TEDxs pelo país – formato de conferência em eventos independentes onde realizadores do mundo expõem suas ideias em até 18 minutos.
Nos TEDxs realizados no ano passado em Volta Redonda (RJ), Blumenau (SC) e na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ele gasta mais de dez minutos, contando quem ele é, de onde veio e como chegou até a proposta de “democratizar a alimentação saudável”, mas fala pouco sobre a atuação do Saladorama e seus impactos sociais. Enquanto discursa, exibe uma apresentação com fotos genéricas no telão. Em Blumenau, em maio de 2017, Hamilton mostrou uma foto de cozinheiras, dando a entender que são elas que participam do projeto Saladorama na comunidade. Mas a imagem original é de uma cozinha comunitária de Contagem, Minas Gerais, publicada em 2013, e nada tem a ver com ele nem com seu projeto.
A cada gravação ou entrevista, ele cita números diferentes sobre as cidades e impactos do empreendimento social. Na matéria da revista Gol, edição de outubro passado, ele é personagem de uma pauta sobre alimentação e é creditado como “engenheiro” Hamilton da Silva – mas em outros locais afirma que abandonou a faculdade para ser empreendedor. Em alguns vídeos na internet, ele fala que é “preto, pobre e de favela”, em outros, que nunca morou em uma favela e que, para fundar o Saladorama, foi passar, então, uma temporada na comunidade para entender por que “o cara escolhe coxinha e não alface” para comer.
Assim como a maioria das matérias sobre ele, a revista Gol traz a história da “lasanha de berinjela” e da avó com diabetes para contar como surgiu a ideia de criar o Saladorama. “(Hamilton) se surpreendeu ao observar a alimentação de pessoas mais ricas quando trabalhou na zona sul: lasanha de berinjela e por aí vai. O estalo fez ainda mais sentido quando recebeu a receita médica do SUS para tratar a diabete de sua avó, com sugestões de cardápio na mesma linha.” O texto acrescenta ainda que o projeto já tem mais de 1.900 mulheres trabalhando e 400 mil pessoas impactadas – até 2022, o objetivo é chegar a 1 milhão – em seis estados. “Quero incluir o Saladorama em políticas públicas e mostrar que comer de forma saudável é um direito, não um privilégio”, afirma ele à reportagem da Gol.
Onde estão essas mulheres?
Recife é o principal ponto de divulgação do projeto. A unidade local da Saladorama fica na parte superior da casa da sogra de Hamilton, no bairro Nova Descoberta, região norte da cidade. As cozinheiras que foram contratadas pelo Saladorama na capital pernambucana relatam que, além de o projeto em nada se distinguir de um estabelecimento comercial, elas levaram calote de Hamilton e de Isabela Ribeiro, que é sócia e mulher dele. Segundo as funcionárias, durante algum tempo, o Saladorama chegou a receber pedidos através do aplicativo iFood e as saladas eram entregues em bairros de classe média e alta, e não nas comunidades. Elas dizem que o negócio nunca funcionou como ele propaga.
A cozinheira Jannaína da Silva, de 37 anos, moradora de Nova Descoberta, conta que fazia dezenas de saladas por dia. É ela quem aparece em algumas reportagens e no vídeo da Folha de S.Paulo que rendeu a Hamilton o prêmio Empreendedor Social de Futuro 2017, na categoria Escolha do Leitor. No material de divulgação, ela é apresentada como a principal “beneficiária” do Saladorama, mas Jannaína diz que trabalhava como empregada, e sem nenhum benefício. Na época em que o vídeo da Folha foi gravado, Jannaína estava com nove meses de gestação, esperando o quarto filho. Ao sair do Saladorama para ter o bebê, diz não ter recebido nenhum acerto financeiro de Hamilton, não apenas de licença maternidade, mas também pelos últimos meses trabalhados.
Ela afirma que, durante os quase dois anos em que ela trabalhou diariamente para Hamilton, das 7 às 15 horas, ganhava em torno de R$ 400 por mês e não tinha carteira assinada. No começo, segundo ela, eram feitas cerca de 1.500 saladas por mês. “Ele me pagava R$ 300, depois passou para R$ 400, R$ 500 e, no final, ficou uns três meses sem me pagar”, conta Jannaína, que antes de trabalhar lá vendia água no semáforo e tirava em torno de R$ 300. “Preferia estar no sinal até hoje do que ter ido trabalhar no Saladorama e ter acreditado nele.”
Para participar das reportagens e vídeos – que Jannaína lembra ter sido em torno de cinco vezes –, ela omitia a real situação e, a pedido de Hamilton, dizia que gostava de “verduras”. “Ele pedia para gente falar isso, ele dizia que ia fazer o Saladorama subir, ganhar prêmio e ia ser bom pra mim, mas nunca vi nenhuma ajuda dele, nem quando eu mais precisei”, diz ela, mãe solteira de três crianças e um jovem. Ainda de resguardo, ela solicitou apoio de Hamilton quando sofreu um acidente e quebrou a perna, mas não obteve retorno.
“Ele teve coragem de pedir para eu dar outra entrevista e eu disse que não tinha condição de sair da casa da minha tia com a perna quebrada. Da outra vez, eu fiquei o dia inteirinho gravando.” A Pública esteve no imóvel dela, de dois cômodos, que foi usado como cenário para as filmagens.
No vídeo (da Folha), Hamilton diz que promove a capacitação das cozinheiras e as incentiva a abrir o próprio negócio. Mas Jannaína garante que não fez curso nenhum, apenas trabalhava na cozinha improvisada da casa da sogra dele fazendo salada para fora. Há mais de um ano, desde que foi dispensada do Saladorama, ela está desempregada, pegando bicos de faxina e manicure. “Ele sempre dizia que ia acertar comigo, mas que estava sem dinheiro.” Agora, Jannaína diz estar decepcionada e com medo de ser prejudicada por ter mentido antes para “ajudar” o patrão.
Intimidações
Quando soube que alguém estaria fazendo uma reportagem relatando os verdadeiros fatos sobre ele, Hamilton abordou Jannaína. “Ele disse que, se eu falasse alguma coisa, eu ia ter que provar, que falar de boca não adianta nada”, afirma, garantindo que tem testemunhas do quanto trabalhou para ele e não recebia direito – ficou meses sem ganhar nada. Durante a produção desta reportagem, Hamilton prometeu novamente acertar as contas com ela e com Rebeca Thallya da Silva, de 21 anos, a outra cozinheira de Nova Descoberta a quem ele não pagou e ainda deixou com dívidas.
Rebeca foi trabalhar lá indicada por Jannaína, que ia ter a filha, e o Saladorama precisava de alguém para substituí-la. Foi alertada pela amiga de que o patrão não era bom pagador, por isso abriu uma conta no banco, fez seu cadastro no MEI (Microempreendedor Individual) para deixar tudo acertado com ele, mas o salário combinado nunca entrou. “Eles me pagariam R$ 500 por mês, mas o único dinheiro que peguei com ele, na época, foi R$ 120.” Ela ficou no Saladorama por dois meses e também participou de filmagens e repetiu as falas combinadas com Hamilton. Nesta semana, Rebeca informou que ele quitou o valor das dívidas que ela contraiu com taxas de bancos e imposto do MEI, cerca de R$ 900. À Jannaína, ele pagou R$ 300.
No período em que Rebeca esteve no Saladorama, no fim do ano passado, já não havia pedidos de saladas; ela conta que ficava no local o dia inteiro, para o caso de aparecer alguma gravação ou mesmo para faxinar. “Eu ia andando, todo dia a mesma rotina, subia uma ladeira e descia outra pra chegar lá. Tinha vez que eu ficava sozinha, eles iam lá só para gravar, depois me dispensavam”, afirma Rebeca, que não gosta de verdura, mas, quando a televisão esteve lá, conta que fez a salada, “a mulher filmou e foi embora”.
Em novembro de 2017, Hamilton disse que ela não precisava mais ir ao Saladorama, pois eles sairiam de férias, logo após o casamento dele com Isabela, e a chamaria de volta no princípio deste ano, o que não ocorreu. “Ele não convidou a gente para o casamento, disse que a festa seria feita com patrocínio, porque ele não tinha dinheiro”, conta Rebeca.
Empreendedorismo de palco
Além das cozinheiras, quem também acusa Hamilton Henrique de má gestão do projeto Saladorama em Recife é a administradora Polyanna Cintra, que ingressou no negócio em 2017 por ter experiência em empreendedorismo social e gostar de projetos de impacto. “Eu vi uma postagem deles [Hamilton e Isabela] no Facebook procurando alguém para a gestão, e todos os lugares falavam bem do Saladorama.”
Assim que iniciou a atuação com Hamilton, em maio do ano passado, ela conseguiu espaço em um programa de incubação com acompanhamento de consultorias para organizar a empresa. Passados alguns meses, ela percebeu que “tudo deles era feito de boca, não tinha nada, falavam o número que pensava na hora, marcavam reuniões e não apareciam, não respondiam e-mails”, explica Polyanna, acrescentando que via mais a intenção de ter um palco. “Faziam e montavam as coisas só quando tinha uma reportagem.”
Hamilton prometeu pagar R$ 500 pelo trabalho da administradora, mas nunca o fez. Polyanna, porém, estava mais preocupada com a desorganização deles em relação às cozinheiras, aos projetos e às parcerias que não estavam sendo cumpridas como o combinado. “Eles não geravam renda para todos os envolvidos, como anunciavam.” O restaurante do Saladorama, em Nova Descoberta, também não funcionava para quem quisesse comer no local, apenas delivery. “Eles compraram, às pressas, mesas e cadeiras para o pessoal da Folha [de S.Paulo] filmar”, lembra Polyanna. A Pública compareceu na unidade em setembro e foi informada de que ela estava fechada havia alguns meses, pois os donos tinham viajado. Os estabelecimentos vizinhos da casa e moradores que conversaram com a reportagem disseram não conhecer o Saladorama. Um rapaz tinha ouvido falar que eles saíram na televisão em uma reportagem sobre “essas coisas fitness”.
Segundo Polyanna, nas gravações que ela acompanhou, as “personagens” entrevistadas, além de Jannaína e Rebeca, eram da família de Isabela ou amigas. “Eu cobrava os resultados que eles tanto falavam nas matérias, mas não era visto. Entrei para fazer a gestão, mas eles nunca abriram quanto faturavam, eram desorganizados e prendiam tudo de um jeito que não deixavam a gente trabalhar”, afirma a administradora. Após o prêmio da Folha, no fim de 2017, eles ganharam visibilidade e mais apoios.
“O que não falta, hoje em dia, é empreendedor de palco”, considera Polyanna. Mas ela acredita que agora as pessoas estão começando a perceber e a desconfiar de quem sempre tem o mesmo discurso, mas deixou de criar, de provocar resultados, e fica tentando sobrevida fazendo livro, vendendo cursos e palestras.
Proposta com mulheres trans e negras
Em um ritmo de sempre lançar novos projetos e parcerias que rendem mídia, em meados de 2017 Hamilton fez um financiamento coletivo na internet com o objetivo de capacitar mulheres negras e trans de comunidades a ter seus próprios negócios no ramo da alimentação saudável. No primeiro semestre do ano passado, ele arrecadou quase R$ 32 mil de mais de 600 apoiadores.
A rede Monalisa, um projeto de Recife que conecta mulheres trans e travestis ao mercado de trabalho formal, ficou responsável por recrutar as trans para fazer o curso de “formação empreendedora e nutricional” com o dinheiro do crowdfunding. Antes da realização de qualquer atividade, as integrantes do Monalisa chamaram mulheres trans para participar da reportagem da Folha, em setembro, já que o Saladorama concorreria ao prêmio Jovem Empreendedor Social, concedido pela empresa. A pedido de Hamilton, elas se mobilizaram às pressas para fazer uma aula inaugural “representada”, gravando imagens e entrevistas falando do curso e da parceria com o Saladorama. Ativista trans na capital pernambucana, Robeyoncé Lima foi uma das entrevistadas pela reportagem. “Fui convidada pra fazer só uma fala no evento, mas não faria o curso depois, não fiquei sabendo de nada”, diz.
Mas o curso que capacitaria pelo menos 20 mulheres trans, conforme prometido como meta do financiamento coletivo, só aconteceu porque as integrantes da Monalisa, com ajuda de Polyanna Cintra (que fazia parte da equipe Saladorama), tiraram dinheiro do próprio bolso para viabilizar as aulas para 15 alunas e cobraram de Hamilton depois. Ele não apareceu nas aulas. Também não efetivou a promessa de que as trans participariam de um evento de alimentação remunerado e que duas delas seriam contratadas pelo Saladorama ao final da capacitação.
“Durante todo o curso, eu sempre tinha que desembolsar a passagem de ônibus das meninas do meu dinheiro, e era um sacrifício para eles [do Saladorama] me pagarem”, declara Polyanna. Foi ela quem deu as aulas sobre empreendedorismo. Hamilton pagou R$ 500 para uma nutricionista dar três meses de aulas duas vezes por semana, segundo Polyanna, e conseguiu da prefeitura de Recife a cozinha para o curso. Já o dinheiro do crowdfunding, “ele [Hamilton] dizia que tinha aplicado no banco”, afirma Polyanna. “Usaram a causa para se promover, nunca participaram de nada. Eu só continuei no projeto em respeito às alunas e à rede Monalisa”, acrescenta. Assim que terminou o curso, ela deixou o Saladorama, em outubro de 2017.
A esteticista Alexia Oliveira gravou entrevista na “aula inaugural” em 2017 representando as trans que fariam o curso. Hoje ela diz que o Saladorama apenas usou as trans de Recife para se promover. “A gente falou bem dele naquele dia [da entrevista] porque a gente achou que o projeto iria acontecer”, declara. Segundo ela, o curso ocorreu com muitas dificuldades e pendências: as passagens de ônibus nem sempre eram pagas e a alimentação às vezes era só um lanche, em um curso de três a quatro horas no horário da noite. Muitas estavam ali para sair da “avenida” (lugar de prostituição) e conseguir um emprego depois do curso, como foi prometido pelo Saladorama, acrescenta Alexia. “O que aconteceu nesse projeto é o que acontece na vida real: só recebemos promessas. Para ganhar um prêmio com mentiras, até eu ou você ganharíamos.”
Hamilton havia combinado também que a rede Monalisa receberia R$ 2 mil para fazer o recrutamento das alunas, o acompanhamento e a criação de conteúdo para as mídias. Só em outubro passado, depois de um longo ano de cobranças, pagou metade do valor combinado – esta reportagem já estava sendo apurada. Ele também só enviou os certificados seis meses depois da conclusão do curso para uma lista inicial de mulheres, sem nem confirmar a participação de todas. Os transtornos ocorridos antes, durante e depois do curso estão relatados em trocas de e-mails entre integrantes da Monalisa e Hamilton, aos quais a reportagem teve acesso.
Mayara Menezes, da Monalisa, conta que se mobilizou muito para conseguir uma turma de mulheres trans moradoras de comunidades: “Fizemos fotos de várias participantes, nos comprometemos de corpo e alma, e Hamilton começou a sumir, não respondia nossos e-mails, não ia às aulas”. Segundo Mayara, ele nunca apareceu, a não ser na reportagem da Folha. No mês passado, Hamilton a procurou para retomar a parceria e o curso com novas turmas, mas a Monalisa não quis dar continuidade. “Achamos falta de respeito com as mulheres trans, que participaram do curso na esperança de uma oportunidade de trabalho”.
Já sabendo das denúncias contra ele, Hamilton enviou um e-mail para Mayara em que dizia: “Nós como Saladorama precisamos entender se as afirmações de uma maneira pragmática tem haver [sic] com a Monalisa, não estamos falando da qualidade do curso pois isso entendemos que precisamos melhorar, o que estamos tentando entender é se o ‘boato’ de que o curso não aconteceu tem, em sua narrativa, alguma fala da Monalisa”.
Denúncias desde 2015
As denúncias contra Hamilton começaram a pipocar já em 2015, ano em que o Saladorama foi fundado, no Rio de Janeiro. Raíssa Nejaim tinha 23 anos quando conheceu Hamilton, em um coworking, e achou legal a ideia dele de investir em um negócio social. “Eu admirava o trabalho, como todo mundo quando vê as reportagens”. Raíssa participou das primeiras ações do Saladorama no Rio, quando eles ainda não tinham nem cozinha para fazer as saladas. Ela conseguiu fazer parceria com uma cozinha industrial de uma ONG e, no dia em que o Saladorama se mudou para lá, Hamilton já deu entrevista no local, falando que ali era a cozinha do projeto, lembra. Mas a parceria não se prolongou por muito tempo.
“Eu sentia que estava em um lugar em que ele mentia para se promover. Ele dizia que fazia capacitação empreendedora nas comunidades, mas nunca fez enquanto estive lá”, diz Raíssa. Hoje, ela se mostra impressionada com o fato de nenhuma reportagem nem as empresas que o apoiam terem checado os números que ele divulga e as pessoas que ele diz ajudar. Depois de seis meses trabalhando sem receber nada e tendo que tirar dinheiro do “cheque especial” para pagar contas da empresa, inclusive alguns salários de funcionários, ela percebeu que o projeto não era o que se divulgava e saiu. No ano seguinte, entrou na Justiça contra Hamilton para reaver parte do prejuízo financeiro, mas a juíza entendeu que ela tinha feito trabalho voluntário, consciente, para uma ONG (Saladorama). A conclusão do processo, de que ainda cabe recurso, apontou: “O fato de que a Reclamante, por mais de 6 meses, se ativou no projeto social do Reclamado, inclusive custeando as despesas, demonstra o caráter voluntário da prestação de serviços”. O valor da causa era R$ 32 mil.
Raíssa conta que precisou de tempo e apoio para se recuperar psicológica e financeiramente da experiência com Hamilton e o Saladorama. Hoje, ela entende que viveu uma relação abusiva de trabalho. “Foi muito difícil para mim. O que mais quero é me desvincular dele, não vejo mais nada sobre o Saladorama, tinha esperança que ele estivesse agindo corretamente em outros lugares”, afirma.
Desconfianças internas
Ao assistir a um TEDx de Hamilton em Recife, a empreendedora social Simony César começou a desconfiar de que os números e as falas dele estavam fora da realidade. “Eu sei o trabalho que dá para manter um projeto com a folha de pagamento toda em dia e ralo feito uma condenada para fazer a coisa andar.” Simony recebeu algumas denúncias contra ele dentro da rede de empreendedores.
Hamilton participou de programas de aceleração de projetos nos últimos anos, entre eles o da Red Bull Amaphiko (de 2016 a 2017), do qual Simony também faz parte. A empresa não quis comentar nada a respeito das denúncias ocorridas na época em que o Saladorama era apoiado pelo programa nem sobre eventuais ligações e divulgações dele junto à marca após a mentoria. “A Red Bull Amaphiko apoia empreendedores sociais por meio de um programa de mentoria que tem a duração de 18 meses. O Saladorama fez parte do programa em 2016 até junho de 2017. O projeto não é participante da edição vigente da Red Bull Amaphiko”, limita-se a informar.
Mesmo com as suspeitas, Hamilton continua recebendo apoios, inclusive financeiros. Em 2017, fez parte do programa piloto do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de apoio a afroempreendedores. Em maio deste ano, publicou em seu perfil que o Saladorama foi selecionado pelo Movimento Coletivo (plataforma de investimento em ações de impacto social lançada pela Coca-Cola Brasil).
“Visamos alcançar mais de 1,5 mi de investimentos externos ainda esse ano e atuar com excelência em todas as capitais e nos 3 países nos quais estamos nos comprometendo… Obrigado Movimento Coletivo por acreditar em nossa proposta para desenvolvimento nas comunidades, esse talvez seja um dos principais passos para o tão sonhado Prêmio Nobel”, escreve ele no Facebook.
O edital “Alimentação + Nutrição” (da Coca-Cola Brasil) aprovou seis projetos para receber o valor total de R$ 1,5 milhão, além de um ano de apoio e mentoria. O Saladorama é descrito no texto como uma “iniciativa que quer expandir a democratização do acesso a alimentação saudável, aproximando a produção agrícola familiar do consumidor das classes menos abastadas, por meio de venda porta-a-porta de comida pronta saudável nutricionalmente completa e de baixo custo”.
Franquias no Brasil
O site do Saladorama e as últimas reportagens informam que há unidades Saladorama em cinco cidades: Recife, Rio de Janeiro, Sorocaba, Florianópolis e São Luís. A única que tem telefone acessível online é Florianópolis. Entramos em contato com o número de celular disponível por WhatsApp e fomos informados de que o Saladorama funciona lá há dois anos em um restaurante na galeria do Ministério Público Federal (MPF), na beira-mar, local bem diferente e a 13 km da comunidade Monte Cristo, onde, em uma reportagem publicada no site UOL, em agosto do ano passado, Hamilton afirmava ser a unidade Florianópolis. Nessa mesma matéria, ele diz ter tido um faturamento de R$ 1,2 milhão, mas o Saladorama tem registro ativo de Microempresa (porte ME), com limite de R$ 360 mil a faturar por ano.
A unidade de São Luís e a de Sorocaba tiveram as páginas no Facebook e no Instagram deletadas. As últimas postagens que mencionam Sorocaba nas redes sociais é do início do ano passado, e São Luís, do fim de 2016. Ainda assim, são poucas as atividades encontradas em ambos os casos, nada em relação à comunidade. Em São Luís, uma atuação em um aniversário de criança e, em Sorocaba, pedidos de saladas para um evento de mulheres. A reportagem conseguiu contato via Instagram com a mulher que era responsável pelo Saladorama de Sorocaba, que informou apenas que a franquia não existia mais.
Na unidade do Rio de Janeiro, havia um entregador e duas cozinheiras moradoras da favela Santa Marta. Elas faziam saladas para entregar, mas não vendiam para a comunidade, e sim para bairros de classe média e alta, assim como em Recife. O rapaz supostamente responsável pelo Saladorama do Rio de Janeiro no momento afirmou por mensagem que o negócio ainda existe, mas não retornou quando questionado sobre como e onde atua.
O delivery no site e no iFood também não funcionam atualmente. Nos locais onde o Saladorama já funcionou, em algum momento, com entrega de saladas – Recife, Rio de Janeiro e Feira de Santana (BA) –, as informações das pessoas que trabalhavam neles são que não eram usados alimentos orgânicos, tampouco verduras compradas de agricultores locais, como é divulgado em matérias. As reportagens dizem ainda que o Saladorama produz 500 toneladas de orgânicos na agricultura familiar, mas não mostra onde nem como.
No vídeo que gravou para divulgar o crowdfunding (para capacitação de mulheres trans e negras), Hamilton usa novamente imagens da cozinheira de Recife, Jannaína da Silva, e diz que o Saladorama tem como missão “o empoderamento da base da cadeia, com agricultores, cozinheiras e entregadores da comunidade onde está estabelecido. Um produto plantado, colhido e entregue por eles mesmos”. Mas não há evidência do funcionamento desse formato de negócio social em nenhum dos estados citados por ele nas reportagens.
Feira de Santana (BA)
Franquias do Saladorama eram ofertadas por R$ 5 e R$ 8 mil, no modelo chamado “capilar“, caracterizado por vendas de saladas em bicicletas e carrinhos como os da Kibon, conforme documento de apresentação recebido pela reportagem. Mas a instalação de cozinhas em outras cidades chegava a ser oferecida por até R$ 30 mil, informaram fontes que trabalharam com Hamilton.
No fim do ano passado, Hamilton Henrique começou a negociar com um empreendedor social da Bahia a instalação de uma unidade em Feira de Santana. Fabrício Falcão se interessou pela proposta, estava encantado com o “sucesso” do empreendimento, acreditando no que Hamilton propagava. Em abril, recebeu o dono do Saladorama na Bahia, apresentou Salvador para ele e fecharam negócio. A novidade foi postada nos perfis da empresa.
Em Feira de Santana, a franquia de saladas sairia mais barato e em parcelas. Falcão teria, em troca, suporte, capacitação, uniformes, materiais de divulgação e marketing, tudo a partir da sede em Recife. Ele fez investimentos na cozinha, selecionou e treinou a equipe e colocou para funcionar em maio. Já Hamilton, segundo Falcão, não cumpriu nada do que prometeu, nem o contrato enviou, só pegou o dinheiro inicial. Ele chegou a pagar em torno de R$ 5 mil antes de decidir interromper a parceria.
Falcão chegou a contratar três pessoas para fazer as saladas na comunidade Alto do Papagaio, na unidade que funcionou por três meses. Hamilton sumia, não respondia às mensagens, enrolava, até que Falcão cansou, pois estava perdendo muito dinheiro, e desistiu do negócio. Só conseguiu vender uma salada para a comunidade, o resto foi para fora. “A proposta que eu acreditei era de vender dentro do Papagaio. Mas o modelo só funciona se educarmos a população e tivermos o apoio da rede para as vendas online. Fora isso não gera retorno, o ganho é muito pouco por unidade [de salada]”, explica Falcão. Sendo produtos orgânicos, a produção torna-se ainda mais cara. “Mas ele [Hamilton] disse que iríamos começar comprando nas feiras normais, depois iríamos capacitar alguém da comunidade para ser fornecedor.” Isso não aconteceu.
“Movimentei diversas pessoas e instituições para realizar os projetos de capacitação, mulheres assessoras de saúde do Saladorama, entretanto sem conseguir realizar nada. O sentimento é que fomos enganados”, desabafou em mensagem para Hamilton. Em resposta, o dono do Saladorama disse que tudo foi uma grande falha de comunicação. “Se você tivesse me contado como estava o nível de chateação eu teria acelerado as informações, mas tudo bem… O processo de reaver os custos, faremos sem problemas, vou só calcular junto ao contador e programar junto com você a data”, escreveu Hamilton. Dois meses e meio após essas mensagens, o ressarcimento ainda não chegou. “Hamilton tem um excelente poder de convencimento, mas ele deixa a desejar na hora de entregar o resultado”, diz Falcão.
Outras unidades estariam aguardando reaver o prejuízo do investimento malsucedido, de acordo com informações recebidas pela reportagem. Empreendedoras de São Paulo, da unidade Heliópolis, inaugurada neste ano, também estariam tendo o mesmo problema de falta de suporte da sede. Em julho, Hamilton iniciou um curso de formação de mulheres na comunidade de Heliópolis, postou nas redes sociais, mudando o direcionamento da franquia Saladorama instalada lá, que não estaria vingando com as vendas de saladas.
O que diz a Folha de S.Paulo
Hamilton venceu o prêmio pela escolha dos leitores, em votação na Folha on-line, em que se vota no carisma e na força da inovação proposta pelo empreendedor. De acordo com a Folha de S. Paulo, ele concorreu também na categoria Empreendedor Social de Futuro: avaliado pelo júri e com base em um relatório confidencial preparado pela consultoria Plano CDE, não ganhou. A Pública procurou a Folha para comentar as denúncias que se referem tanto a períodos anteriores como à época do prêmio. “O vídeo e as reportagens são radiografias de um momento da startup, que estava implantando e testando o seu modelo de negócio”, declara o jornal por meio de nota, acrescentando que quem deveria responder às questões levantadas pela repórter seria o próprio Hamilton. “Caso haja acusação formal ou processo público, a Folha e o comitê organizador do Prêmio Empreendedor Social poderão abrir processo interno para avaliação da permanência de Hamilton Silva como integrante da Rede Folha”, finaliza a nota.
A consultoria
A Plano CDE foi a consultoria responsável pela elaboração dos relatórios do Prêmio Empreendedor Social Folha 2017. Maurício de Almeida Prado, diretor executivo da Plano CDE, e Breno Barlach, gerente de projetos, enviaram uma nota à Pública. O texto começa com uma contextualização sobre a complexidade de ser um empreendedor social de base: “Todo empreendedorismo começa com um sonho. É comum ouvir de investidores que o empreendedor é alguém que ‘vende uma fantasia’, consegue levantar investimento e só depois vai torná-la realidade […]. Porém, alguns empreendedores sociais têm o sonho, mas não tem o acesso a investidores”. Por isso tudo, continua a nota, “o sucesso do empreendedor de periferia vale por dois”.
Sobre Hamilton e o Saladorama, a Plano CDE informou que, no final de 2017, eles analisaram e relataram “a fotografia de um momento de um perfil clássico de empreendedor social de base”. Concluíram que: “[…] o principal desafio deste empreendedor-sonhador era sua capacidade de gestão de diversas frentes de trabalho, impactada pela sua inexperiência e pela falta de um funcionário dedicado integralmente a isso. Problemas típicos de um Empreendedor Social de Futuro”.
Coca-Cola Brasil fará visita ao Saladorama neste ano
Procurada pela Pública, a Coca-Cola Brasil respondeu que o projeto Saladorama foi uma das seis iniciativas vencedoras do edital de alimentação e nutrição, “após passar pela avaliação de um comitê técnico e de uma comissão julgadora que não tinha acesso à identidade dos concorrentes”. De acordo com a empresa, a proposta atendeu a todos os requisitos, além de apresentar a documentação exigida (a reportagem não foi informada sobre quais os documentos pedidos).
Os projetos vencedores estão recebendo apoio do Movimento Coletivo (plataforma social da Coca-Cola) ao longo de um ano, com mentorias, cursos, acompanhamento mensal, envio de relatórios e prestação de contas do uso do recurso. Segundo a empresa, até o momento, a equipe do Saladorama vem cumprindo o cronograma. “O acompanhamento prevê também uma visita técnica de campo com equipe terceirizada especializada, que está agendada e vai gerar uma avaliação ainda este ano”, afirmou a Coca-Cola, através de nota enviada por e-mail à reportagem.
Resposta
Hamilton Henrique conversou com a Pública por mais de uma hora, mas preferiu que suas informações não fossem divulgadas nesta reportagem. Ele retirou a página do Facebook pessoal do ar na semana passada.