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A invenção da “primavera brasileira” por Steve Bannon

Depois de ser lançado por Bannon, termo “Brazilian Spring” vira hashtag e alcança os assuntos mais comentados do Twitter

Reportagem
9 de novembro de 2022
14:25
Este artigo tem mais de 1 ano

No dia 1 de novembro, pouco depois do posicionamento de Jair Bolsonaro (PL) sobre sua derrota nas urnas, Steve Bannon já comentava o episódio em seu podcast e programa de TV War Room. 

“A minha pergunta é: é esse o começo da primavera brasileira? Porque o povo está se levantando e ele não concedeu [não aceitou o resultado]”, questionou o ex-estrategista de Donald Trump ao empresário e comentarista da Jovem Pan Paulo Figueiredo. 

Essa foi a primeira vez que Bannon utilizou o termo “primavera brasileira” —  “Brazilian spring”, em inglês. Ele apareceria em ao menos outros dois dos seis episódios do Podcast sobre o Brasil nos dias seguintes, antes de se tornar uma hashtag no Twitter e bandeira norteadora para a campanha digital dos apoiadores do presidente. 

A seguir, virou um dos assuntos mais comentados no Brasil no Twitter, os trending topics, ao menos três dias seguidos (2, 3 e 4/11). O termo faz referência à “primavera árabe”, onda revolucionária de manifestações que ocorreu no Oriente Médio e no Norte da África a partir de 2010.

“Parece o início de uma revolução”, respondeu Figueiredo, afirmando que o processo eleitoral que derrotou Bolsonaro foi “injusto”. “A questão principal não é se houve fraude real no processo de contagem, porque isso é apenas uma parte. A eleição foi muito injusta desde o início. Bolsonaro jogou e concorreu sob regras diferentes de todos os outros candidatos, incluindo Lula”, disse o neto do General Figueiredo, presidente do Brasil durante a Ditadura Militar. Ele citou como exemplo o bloqueio das contas bancárias de empresários bolsonaristas que haviam defendido um golpe militar em grupo de WhatsApp.

“O ‘estado profundo’ processa e persegue apoiadores de um presidente conservador”, finalizou o comentarista. O conceito de “deep state” pode ser traduzido como “estado profundo” ou “estado paralelo” e faz parte de uma teoria da conspiração que acredita que existe uma elite global que controla o que acontece no mundo. O termo também foi usado pelo ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e faz parte do que é conhecido como globalismo

No momento em que Bannon e Figueiredo conversavam no podcast, os bloqueios nas rodovias por caminhoneiros que não aceitavam a escolha popular aconteciam em ao menos 23 estados brasileiros. Os eventos haviam começado a ser organizados semanas antes da vitória de Lula, como revelou apuração da Agência Pública

Os bloqueios diminuiriam nos próximos dias: último boletim da Polícia Rodoviária Federal indica que existem obstruções de rodovias em apenas 3 estados. 

Porém, mesmo com a diminuição do número de manifestações antidemocráticas nas estradas, alguns apoiadores do presidente derrotado continuam a contestar os resultados de uma eleição limpa e segura nas ruas e nas redes. Nos últimos dias, bolsonaristas se reuniram em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, o que Bannon achou digno de nota, já que fez vários programas para abordar a “primavera brasileira”. 

“A primavera brasileira já está aqui”, disse Vish Burra, um dos analistas convidados por Bannon no episódio do dia 2 de novembro. “Os patriotas do Brasil estão completamente indignados com o processo eleitoral”, defendeu. 

Burra é autor de um texto publicado no site The National Pulse em que chama as eleições brasileiras de “corruptas”. “A resistência globalista/marxista à presença de Bolsonaro no mais alto nível da política brasileira tem sido inflexível e implacável, principalmente dirigida pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil, irremediavelmente corrupto”, acusa. O artigo foi elogiado por Bannon no programa. 

De 2021 para cá, a disputa presidencial brasileira tem ganhado destaque no programa de Steve Bannon, já que o Brasil é considerado pelo ideólogo da extrema-direita como o um dos países mais importantes para a mobilização mundial do grupo. Foram mais de 200 menções ao país em 96 episódios, como mostrou a Agência Pública. “O Brasil, com essa disputa do Lula contra Bolsonaro, vai ser o último bastião de nós tentando dizer alguma coisa”, disse o ideólogo no programa de 7 de julho deste ano.

“Fraude” inventada como estopim da primavera brasileira

Matthew Tyrmand, membro do conselho do Projeto Veritas, uma organização conservadora que usa câmeras escondidas para expor e intimidar jornalistas, também foi um dos convidados de Bannon para falar sobre o Brasil. Ele apareceu em 4 dos 5 episódios que citaram o país.

Em 1º de novembro, ele disse que o pronunciamento de Jair Bolsonaro – no qual ele não reconheceu a derrota e disse que protestos “pacíficos” eram “bem-vindos” – serviu para que o presidente e seu grupo político “ganhassem tempo” para investigar possível fraude. “Se houver fraude, eles investigarão e tomarão as medidas constitucionalmente cabíveis”, afirmou Tyrmand. “Existe uma fraude a ser provada”, concordou Bannon.

Ao contrário do que afirmam Tyrmand e Bannon, as autoridades brasileiras e os observadores internacionais não identificaram nenhum indício de fraude nas eleições. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Tribunal de Contas da União (TCU) também confirmaram a segurança do resultado eleitoral após realizarem auditoria nas urnas. 

Mesmo diante de provas e posicionamentos concretos de autoridades reconhecidas internacionalmente, os convidados do podcast utilizam a narrativa falsa de fraude eleitoral para defender os atos que tentam manter Jair Bolsonaro no poder apesar da escolha da maioria da população brasileira. 

Em outro episódio, em 3 de novembro, Bannon mostra um vídeo dos protestos brasileiros. O conteúdo apresenta uma criança loira levando um buquê de flores e uma bandeira nacional a um militar que a recebe fazendo uma continência. “É emocionante. É uma garotinha com um buquê de flores subindo e entregando aos soldados, é a união do povo brasileiro com os militares”, diz. 

“Não se trata de um golpe militar, não é uma junta militar. Lembre-se, eles estão enfrentando uma classe criminosa transnacional. São ambas as parcerias com o partido de Davos, o Fórum Econômico Mundial do Partido Comunista Chinês. É isso que está tentando dominar o Brasil. O que você vê nas ruas é o povo do Brasil dizendo: ‘não queremos isso, não queremos nos tornar o que aconteceu em outros países latino-americanos que caíram nisso, como a Venezuela, como Cuba, como a Bolívia’”, completa.

Tyrmand comenta: “é poético porque mostra que os militares trabalham para as pessoas mais indefesas. É uma menina de sete anos e ele [o militar] a saúda. Isso quer dizer: ‘eu trabalho para você, eu trabalho para o povo brasileiro. Estou aqui para defender o Brasil de ameaças externas e domésticas. Estou aqui para defender a soberania brasileira’. E isso é muito importante”.

Steve Bannon e Matthew Tyrmand durante conversa em podcast
Steve Bannon e Matthew Tyrmand durante episódio de podcast

No mesmo episódio, Matthew Tyrmand também diz que os Estados Unidos, sob o presidente democrata Joe Biden, interferiram nas eleições brasileiras —  ele defendeu o mesmo argumento no programa de Tucker Carlson, na Fox News. O vídeo da participação de Tyrmand no programa de Carlson foi legendado e compartilhado nas redes sociais brasileiras. Uma das publicações no Facebook chegou a 224 mil visualizações e mais de 12 mil curtidas. Conforme checado pelo Comprova, coalizão de 43 sites jornalísticos, as informações são falsas. 

Os convidados de Bannon também corroboram a narrativa dos bolsonaristas a tentarem dar um verniz “constitucional” a pedidos explícitos de um golpe de estado pelos militares. 

Por exemplo, Tyrmand afirmou que o Art. 142 da Constituição Federal brasileira garante às Forças Armadas a função de “instituição estabilizadora da sociedade devido à sua história”. Porém, é consenso entre juristas que o Art. 142 não legitima ou sustenta uma intervenção militar nos Poderes da República. A informação de que o artigo “é para impedir movimento golpista, não apoiá-lo” também já foi publicada pelo site oficial do governo brasileiro.

Tyrmand esteve no Brasil para o CPAC [Conferência de Ação Política Conservadora, em tradução livre] de 2021 e foi interrogado pela Polícia Federal (PF). Ele também espalhou mentiras sobre fraude às vésperas do 1º turno, como também mostrou a Pública. Ele diz que, após suas falas sobre o país, recebeu mensagens de bolsonaristas o agradecendo por dar visibilidade aos protestos.

#BrazilianSpring no Twitter 

Duas hashtags em inglês estão sendo utilizadas pelos apoiadores de Jair Bolsonaro para promover os atos golpistas que contestam os resultados das eleições: #BrazilWasStolen (o Brasil foi roubado, em tradução livre) e #BrazilianSpring. A Pública analisou as citações a elas com mais de 100 curtidas desde 16 de agosto, início da campanha eleitoral.

A primeira vez em que apareceram foi em 1º de novembro, mesmo dia em que Bannon inaugurou o termo “Brazilian Spring” em seu programa. Nos dois dias seguintes, 2 e 3 de novembro, o uso caiu: apenas 9 citações chegaram a mais de 100 curtidas no total. O ápice veio em 4 de novembro, quando 406 tuítes com ao menos uma das hashtags foram curtidos mais de 100 vezes pelos bolsonaristas. Em 5 de novembro o número chegou a 270, e em 6, a 286. 

“Você conhece alguém que votou no Bolsonaro em alguma seção dessa?

Reprodução de publicação no Twitter com a hashtag ''#BrazilWasStolen''

Basta UM pra comprovar a FRAUDE!!!#BrazilWasStolen”, diz o tuíte mais retuitado da amostra. A postagem foi feita pela conta @gabisp22 e chegou a 17,8 mil retuites e 42,5 mil curtidas.

O segundo post mais retuitado (15,2 mil) busca dar instruções a outras pessoas que estão publicando conteúdo sobre os protestos: “Patriotas 🇧🇷 coloquem data 06/11/2022 e Hashtags #BrazilianSpring em todas as postagens para o MUNDO todo acompanhar o Grande movimento #BrazilWasStolen 👊🏻 Vídeo perfeito 👏🏻👏🏻 Nosso BRASIL 🇧🇷 jamais será um País PT Comunista”, diz @AlmydaRegina. 

Jouberth Souza (PL-MG), que de acordo com apuração da Pública funcionaria como um “nó de rede”, ajudando a impulsionar campanhas de desinformação pró-Bolsonaro, também se engajou. “ORDEM E PROGRESSO! #BrazilianSpring”, tuitou em 6 de novembro, com uma foto da bandeira do Brasil. O conteúdo chegou a 1,5 mil curtidas.

O veículo argentino Derecha Diario, que promoveu uma live na última sexta-feira (4) alegando ter provas de que houve fraude nas eleições brasileiras, mas compartilhando cálculos errados, publicou ao menos oito vezes as hashtags, chegando a 72 mil curtidas e 23 mil retuítes no total. Matéria do Estadão e checagem do Aos Fatos mostram que as informações são falsas. O perfil do veículo no Twitter foi retirado do ar por ordem da Justiça Eleitoral. 

Matthew Tyrmand também fez dois tuítes com a #BrazilianSpring. “Os brasileiros sabem que seus militares e policiais acreditam na defesa 🇧🇷 de ameaças estrangeiras e domésticas”, disse em 2 de novembro ao compartilhar o vídeo que mostra a menina loira nos protestos.

Reprodução de publicação no Twitter de Matthew Tyrmand com a hashtag ''#BrazilianSpring''

Bannon, Tyrmand, Jouberth e Fernando Cerimedo, dono do site Derecha Diário, têm ligação com Eduardo Bolsonaro, segundo apurações da Pública e do Estadão

No total, os tuítes com as hashtags chegaram a 2,1 milhões de curtidas, quase 685 mil retuítes e 66 mil respostas na rede. Ao menos 191 publicações foram feitas em outras línguas, que não o português. 67 foram feitas em inglês. 

Bannon agiu na falta de liderança brasileira, diz especialista

Isabela Kalil, antropóloga e coordenadora do Observatório da Extrema-Direita (OED), notou que a atuação de Bannon veio para preencher um vácuo de liderança. “Quando a gente está falando de movimentações que estão nas fronteiras da legalidade ou de fato na ilegalidade, fica mais fácil para as pessoas buscarem informações [com uma hashtag]”, explicou. Ela aponta que ao cunhar o termo Brazilian Spring, “Bannon acabou fazendo esse serviço”. 

“Na ausência de você ter uma liderança no Brasil que, de maneira mais clara, desse um caminho pra essa base [bolsonarista] e orientasse essa base em torno das ações, os brasileiros ficaram um pouco órfãos, e daí a relevância da fala do Steve Bannon. Como existia uma espécie de vácuo, qualquer coisa ajudaria a reforçar essas teses golpistas”, disse Kalil. “Não é que todo mundo que está compartilhando ouviu o War Room e segue o Steve Bannon, mas basta você ter um número de pessoas que fale ‘é essa a hashtag’, e as coisas são compartilhadas”, acrescentou.

De acordo com ela, o destaque dado ao Brasil internacionalmente nos últimos dias está conectado à realização das eleições de meio de mandato nos Estados Unidos, cujo dia final para a votação foi ontem (08/11). “Não me parece ter sido à toa que o Bannon tenha colocado gasolina nessa questão do Brasil na véspera da realização das midterms. Acho que tem a ver com um processo também de que a alegação de uma suposta fraude no Brasil ajuda a reforçar e mobilizar uma alegação de fraude também nas eleições nos EUA”, finalizou a pesquisadora.

Metodologia

A Pública assistiu aos 7 cortes sobre o Brasil disponibilizados no canal do War Room na plataforma Rumble entre os dias 28 de outubro e 4 de novembro. 

Os dados de análise do Twitter foram gerados a partir da ferramenta de busca avançada da rede. A reportagem buscou pelos tuítes com mais de 100 curtidas que contivessem as hashtags #BrazilWasStolen ou #BrazilianSpring entre 16 de agosto, início de campanha eleitoral, e 7 de novembro. A busca gerou uma planilha com 983 resultados.

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