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Reportagem

“Vamos retroceder 15 anos sem o Célio de Barros”

O velocista Nelsinho conta a luta para impedir a derrubada do estádio de atletismo vizinho ao Maracanã, num país que menospreza "esporte de negros"

Reportagem
1 de março de 2013
09:00
Este artigo tem mais de 11 ano

De Célio de Barros ele entende. Ex-velocista de 100, 200 metros e de revezamento 4×100 metros, Nelson Rocha dos Santos tem sua história pessoal vinculada ao estádio de atletismo colado ao Maracanã. Ali treinou durante anos antes de ser campeão estadual, brasileiro, sul-americano e mundial. Depois, como diretor técnico da FARJ (Federação de Atletismo do Estado do Rio de Janeiro), preocupava-se em manter o estádio em boas condições para os atletas. Hoje, Nelsinho, como é conhecido, divide suas atividades como professor de educação física entre a rede municipal de ensino e a academia da Polícia Militar. No Célio de Barros, continuava dando aulas para crianças de um projeto social.

Com essa história, não admira a indignação de Nelsinho diante da anunciada demolição do Célio de Barros como parte das obras de reforma do Maracanã. “Estamos retrocedendo 15 anos no mínimo. Em pleno ciclo olímpico”, diz referindo às próximas Olímpiadas no Rio de Janeiro. Resistindo ao desastre iminente, Nelsinho trabalha em uma articulação entre a CBAt (Confederação Brasileira de Atletismo), a IAAF (International Association of Athletics Federations) e a FARJ para defender a permanência do estádio.

Vamos começar pelo básico: qual é a importância do estádio Célio de Barros para o atletismo do Rio de Janeiro e do Brasil?

O estádio Célio de Barros foi concebido para fazer parte do complexo do Maracanã. E foi assim porque técnicos e atletas das gerações anteriores fizeram por onde com seus rendimentos. Gente como José Telles da Conceição, a nossa primeira medalha olímpica no atletismo; Aída do Santos, a primeira mulher a ficar em quarto lugar na Olimpíada e a única mulher da delegação em Tóquio (1964); além de outros que lutaram para que o esporte se elevasse à categoria atual. O Célio de Barros foi um reconhecimento. E foi feito de maneira simples, com pista de terra e arquibancada de madeira. Depois, ele foi reconstruído e fizeram o que é hoje – puseram as pistas de material sintético, por exemplo. Isso já com a minha geração presente: João Carlos Oliveira, Rui da Silva, Silvina das Graças, José Eusébio, pessoas de um talento imenso. Quando foi erguido era disparado o melhor da América Latina. Ainda hoje ele é importantíssimo e um dos mais modernos. A geração atual, que está prestes a fazer história, vai perder esse equipamento. É a minha filha, a Evelyn (dos Santos, velocista), a Rosângela (Santos, velocista), o Aldemir (da Silva Júnior, velocista)… Há atletas que estão se preparando para as Olimpíadas e atletas que treinam lá saindo de uma opressão social muito grande; aquele estádio é cercado de comunidades ocupadas pelas UPPs, e as crianças dessas comunidades vão lá treinar. O atletismo é praticado em sua grande maioria por pessoas humildes. Nós aqui estamos perdendo esse equipamento que é o único no estado. O único. E o cara vai derrubar, vai demolir para fazer um estacionamento. Não tem sentido! Tenho vídeos e sei de projetos que foram feitos, inclusive com a participação do governo do Estado, da Emop (Empresa de Obras Públicas, órgão do estado do Rio), mostrando como ficaria o Maracanã em 2014 com o entorno todo preservado: com o Célio de Barros, o Júlio Delamare… Então é mentira quando o nosso secretário da Casa Civil (Régis Fitchner) diz que o projeto do Maracanã sempre foi esse. E a demolição será uma perda irreparável para o atletismo do Rio de Janeiro e do Brasil. (Veja aqui o vídeo que mostra o projeto da Prefeitura do Rio para o Maracanã. E aqui o vídeo do projeto do governo do estado do Rio para o estádio)

Há muitos atletas de ponta que treinam, ou treinavam, lá no Célio de Barros regularmente?

A Evelyn, que é a minha filha, vai lá duas vezes na semana. A Rosângela treina em outra pista, mas de vez em quando ela também está lá porque o piso do Célio de Barros é mais suave. E o Aldemir, outro com índice olimpíco do Rio de Janeiro, treina lá todos os dias, assim como outros meninos que em 2016 poderão estar disputando uma vaga. É um equipamento fundamental não só para os atletas que estão lá como para a geração que está por vir. Nem todo atleta treina no Engenhão. [O Célio de Barros] é o único estádio em condição de realizar competições com conforto e segurança aqui no Rio. Desafio alguém a mostrar outro equipamento desse nível no estado.

Houve algum diálogo anterior do governo do Estado com as federações de atletismo para apresentar o projeto previsto para o Célio de Barros? Como foi o diálogo?

Não houve nada. Diálogo nenhum. Foi uma coisa surpreendente. Nós tivemos acesso posterior a dois projetos. Um deles é da Prefeitura e é até assinado pelo Burle Marx. E o outro é da Emop (Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro), que é do estado do Rio, falando que os estacionamentos iriam ficar de 1 a 4 km de distância [do estádio]. Fomos enganados. Houve uma audiência pública em que o pessoal do Comitê Popular do Rio nos avisou que o edital de licitação que estava para ser discutido nesta audiência pública. Ali eles nos alertaram que o Célio de Barros seria demolido, junto com a Escola Municipal Friedenreich, o Júlio Delamare, o Museu do Índio… Tudo ia para baixo. Aí é que nós fomos informados. Se o governo disser que houve diálogo, é mais uma mentira. E, aliás, não teve audiência pública nenhuma: o que aconteceu ali foi o secretário da Casa Civil falando e quando alguém questionava, ele não respondia nada, apenas continuava de onde parou. Foi algo feito para validar o que já estava assinado.

Recentemente, a pista do Célio de Barros foi interditada. Como foi que isso aconteceu? Simplesmente um belo dia ela apareceu desse jeito?

Exatamente isso. Já estavam rolando boatos que o local ia ser demolido. Um belo dia, os atletas chegaram e o guarda da porta do Célio de Barros disse: “Olha, vocês não vão entrar mais”. E o portão estava lacrado na semana seguinte. Foi assim que aconteceu. Ainda tem material de atletas lá dentro junto com o entulho da obra do Maracanã. [O portão do Célio de Barros foi lacrado no dia 9 de janeiro deste ano]

E como você vê a posição do governo de construir outro estádio de atletismo nas proximidades do Célio de Barros?

Eles falaram isso quando foram pressionados pela IAAF (International Association of Athletics Federation). Mas eu te pergunto: cadê a maquete? Em quanto tempo isso será feito? Como é que eu vou acreditar numa pessoa que me mostra o vídeo de uma reforma com o meu estádio lá e depois diz que vai virar estacionamento? Essa mesma pessoa está me dizendo de boca que vai fazer outro estádio e eu vou acreditar?

Tida como uma das grandes promessas do atletismo brasileiro, a velocista Rosângela Santos (foto) treinava no Célio de Barros. Na imagem ela aparece no Troféu Brasil de Atletismo (Crédito: Reprodução)

Até então não havia nenhuma posição oficial do governo do Rio sobre construir outro estádio?

Um governo sério teria sentado e dito: “Olha, está aqui o projeto, vamos discutir, formem uma comissão para discutirmos isso junto com vocês”. Para construir um estádio de atletismo, não vão gastar menos do que R$ 300 milhões. E eu te pergunto: como é que se derruba um bem público de R$ 300 milhões? Não existe isso de maquete, de qualquer outra coisa… Eu ainda não vi sequer uma maquete virtual. Não sei o local onde ficará esse estádio. Aliás, ninguém sabe.

O Célio de Barros ainda era, antes de sua interdição, um estádio capaz de abrigar competições internacionais de atletismo?

Com certeza absoluta. O Célio de Barros recebeu o meeting internacional até 2007, mas depois da inauguração do Engenhão passou a ser lá . Mas o estádio pode abrigar tranquilamente um Troféu Brasil de Atletismo. Com reforma, poderia abrigar as Olimpíadas! Eles foram deixando o estádio se deteriorar: a pista já não estava em boas condições, quando você buscava material, não tinha mais, para mim já era intencional. Algo para usar como um argumento a mais e dizer: “Já está se deteriorando mesmo, vamos derrubar”. Só que a gente é persistente, não sai dali. Eu estive agora em Manaus conversando com o presidente da CBAt (Confederação Brasileira de Atletismo), o doutor Roberto Gesta, que é o presidente da Sul-Americana e também o representante da IAAF em toda a América do Sul. E eu fui lá conversar com ele, pedindo que a IAAF fosse efetiva nesse processo. Ele afirmou que a IAAF vai entrar forte no questionamento ao governo em relação ao estádio. Vamos fazer uma comissão, o doutor Gesta me deixou encarregado disso. Vamos ver se assim nós conseguimos fazer uma interlocução com o estado, com o COB, já que o doutor Nuzman deu uma declaração completamente infeliz…

Que declaração foi essa?

Está na Agência Brasil. Se você abrir lá o site, você vai ver que ele disse o seguinte, que a demolição do Célio de Barros não implica em prejuízo nenhum. O Nuzman falou isso. Eu fiquei tão decepcionado que imediatamente fiquei com dor de cabeça. Não entendo como um dirigente como ele não tenha pelo menos chamado algum órgão responsável pelo atletismo, alguns atletas, para saber o que está acontecendo. Ele [Nuzman] justificou a afirmação dizendo que os treinos de atletismo estão no Engenhão. É verdade, o Botafogo cedeu uma área, mas lá ainda é precário. Aquele campo de fora, que era uma pista de atletismo, hoje é uma área que é um campo de treinamento de futebol do Botafogo.

Há programas de fomento e desenvolvimento do atletismo nas pistas do entorno do Engenhão?

Até tem um projeto lá, que é da Vale, mas também é um projeto meio “emprestado”, na hora que tem treino de futebol, todo mundo tem que parar. Aquilo ali, infelizmente, não era para ser, mas é do Botafogo. Acho até que o campo lá de dentro eles poderiam arrendar mas as pistas de fora tinham que ser do atletismo, como projetado, e foi tudo pago com dinheiro público. Então olha, o atletismo do Rio deu um retrocesso sem o Célio de Barros de, no mínimo, uns 15 anos. Em pleno ciclo olímpico.
E como você avalia esse retrocesso à luz da declaração de Nuzman em meio ao ciclo olímpico em que o Brasil se encontra?
As pessoas estão vendo muito o lado econômico e o lado de marketing dos megaeventos esportivos, como as Olimpíadas. E eu te pergunto: qual foi o legado que o Pan deixou para o esporte? Nenhum. E com a Olimpíada estou vendo que vai ser pior, ainda mais com atitudes e declarações como essa. Eles já tiraram a máscara e disseram: “Olha, o nosso interesse é nos negócios e não o interesse esportivo. Vocês fizeram tudo para que isso viesse para nós, mas nós não vamos dar nada em troca”.

Você acha que o projeto do Maracanã denota um favorecimento do futebol profissional em detrimento de esportes olímpicos como o atletismo?

Penso que o futebol está sendo usado como pretexto para outros interesses. O futebol é uma paixão mundial. Tudo o que você fizer que venha a favorecer ao futebol logicamente que o grande público, sem o esclarecimento devido, apoia. Eles fazem um trabalho de marketing maravilhoso e ainda vendem isso junto com a paixão que o futebol já traz. Estão usando o futebol para jogar uma cortina de fumaça nas vistas das pessoas. Não culpo o futebol, mas esse uso indireto que os dirigentes fazem. Dava muito bem para ter lá o Célio de Barros, o Júlio Delamare e uma belíssima praça de futebol. Eu tenho certeza que todo mundo ficaria feliz.

Você falou em um atraso de 15 anos para o atletismo do Rio de Janeiro com a demolição do Célio de Barros. Dá pra medir o tamanho do prejuízo para as pessoas que moram nas comunidades do entorno do Maracanã e se beneficiam dos programas de atletismo?

Vou lhe falar uma coisa. Ali existem seis UPPs. Você vê que realmente melhorou muito a segurança aqui no Rio, mas não dá para entender pacificação, pelo menos eu não entendo, só com polícia. O secretário de Segurança Pública do Rio, pelo menos no discurso, também não entende. Eu entendo que, atrelados à pacificação, tenham que vir projetos que atendam àquelas comunidades. E o Maracanã tem uma importância fundamental em receber parte da população dessas comunidades para fazer natação, atletismo, ou mesmo tentar usar o Maracanãzinho para handebol, basquete, vôlei. O complexo esportivo era para isso. Para mim não é possível uma pacificação sem o pilar do esporte. Aquela comunidade ali e a própria Secretaria de Segurança Pública perdem um excepcional aliado na luta contra a marginalidade. Os jovens perderam um instrumento importantíssimo da formação deles. Só para você ter uma ideia. Tem uma menina que participa de um dos projetos, o nome dela é Yasmin Muniz, ela é da comunidade do morro do Salgueiro, do Borel. Ela ganhou uma bolsa de estudos integral, já está no segundo ano do ensino médio em um bom colégio. E ela veio de onde? De um projeto social do Célio de Barros. Se não houvesse aquele projeto, essa menina estaria aonde? Existe um elo muito grande com projetos sociais. Ali treina gente de todo tipo: desde os que estão iniciando até os que já têm duas Olimpíadas.

Diante disso tudo que conversamos, eu gostaria que você me dissesse: como é a tarefa de militar pelo atletismo no Brasil?

Como atleta, você tem muito pouco apoio institucional. Para você ter uma ideia, atletas e técnicos perderam o Time Rio, que apoiou financeiramente atletas de diversos esportes, inclusive de atletismo, que estavam no Rio de Janeiro. Esse programa dava várias condições, como uma equipe multidisciplinar, nutricionistas, tudo pago pela prefeitura do Rio de Janeiro. E esse projeto acabou. Quer dizer, o nosso prefeito Eduardo Paes assinou o destombamento do Célio de Barros. Quando ele fez isso, deu chances ao Sérgio Cabral de fazer o que quisesse. E logo depois o projeto, Time Rio acabou. Isso mostra que militar hoje pelo atletismo no Rio e no Brasil é tirar forças não se sabe de onde. É você estar sempre solitário. Deixado de lado pelo governo, pela imprensa… Sofremos uma pressão muito grande. E você sabe também que o atletismo é um esporte muito discriminado. Até em função dele ser praticado por muitos negros, não tenha dúvida disso. Falo isso com muita tristeza, mas é verdade. Você não vê vontade política ou cidadã de nenhuma parte. Somos nós e nós mesmos.

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