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Soldados da missão da ONU comandada pelo Brasil abandonam haitianas grávidas; não existe sistema para reivindicação de paternidade através da organização

Reportagem
25 de novembro de 2014
08:55
Este artigo tem mais de 9 ano

Amy Bracken*

Quando os militares estadunidenses deixaram o Vietnã em 1973, deixaram algo de um legado vivo. Recrutas norte-americanos haviam engravidado dezenas de milhares de mulheres vietnamitas. O governo dos Estados Unidos eventualmente criou um visto especial para aquelas crianças, muitas delas pobres, e fundou um centro residencial para elas. Mas esta situação não se limita à ocupação americana do Vietnã, ou sequer a situações de guerra. Ela também é um efeito colateral, frequentemente esquecido, das missões de paz da ONU.

As Nações Unidas realizaram 69 missões de paz desde 1948, e há atualmente cerca de 100 mil membros uniformizados da ONU em 17 operações pelo mundo. É sabido que algumas deixam para trás crianças ou mulheres grávidas, mas não há qualquer sistema para reivindicação de paternidade através da organização.

Na cidade litorânea de Port Salut, Sasha Francesca Barrios, 5, tem a atenção de sua mãe e de alguns visitantes. Ela fala sobre a escola e canta a popular canção infantil haitiana Ti Zwazo, ou “Passarinho”. E quando sua mãe pede que identifique o jovem de pele clara em uma foto, ela logo responde, “Papa m”, ou “meu papai”.

Barrios vive em uma pequena casa com mãe, avó e tia. A mãe, Roselaine Duperval, conta que o pai de Sasha era um membro da Marinha na missão de paz da ONU no Haiti – comandada pelo Brasil – conhecida por seu acrônimo em francês, Minustah. Mas Barrios nunca o conheceu.

Sasha Barrios com a foto de seu pai, ex-integrante da Minustah. Foto: Amy Bracken
Sasha Barrios com a foto de seu pai, ex-integrante da Minustah. Foto: Amy Bracken

“Eles vieram aqui, e tinha um que era bom comigo,” Duperval conta. “Ele disse que me amava, e nós estávamos juntos. Eu nunca imaginei que, se eu ficasse com ele e tivéssemos uma filha, ele me abandonaria e não ajudaria a criança.”

Mas ela engravidou, e diz que o marinheiro, que era do Uruguai, deu a ela $200 no começo da gravidez, mas deixou o Haiti antes de Sasha nascer. Ela nunca ouviu falar nele novamente. Agora, Roselaine sobrevive com serviços de manicure e pedicure na casa das pessoas. “Eles vêm a nosso país para nos ajudar”, ela diz, “e não nos ajudam; têm filhos conosco e vão embora. Eu preciso de ajuda para minha filha, para pagar a escola. É responsabilidade da Minustah. Estamos em um país sem emprego. Precisamos de ajuda da ONU. Eles sabem que as tropas da Minustah deixam bebês aqui, crianças sem pais.”

Sete mães, sete filhos abandonados

Ela diz ‘nós’ porque conhece outras mulheres na mesma situação. Em fevereiro, a ONU levou até a capital sete mães, incluindo Roselaine, com suas cri aças para fazer testes de DNA. Agora as sete mulheres estão esperando pelos resultados. Um militar uruguaio diz que os supostos pais foram solicitados a enviar amostras de DNA. Se a paternidade for confirmada, fica a cargo da Justiça uruguaia decidir o que fazer.

É claro que comprovar paternidade e conseguir apoio à criança também é um desafio quando o pai é um haitiano local. Mas a ativista comunitária Miriame Duclair diz que é muito mas difícil quando o pai é um estrangeiro da missão de paz. “A diferença,” Duclair diz, “é que se o pai é haitiano, geralmente a família vai ajudar a mãe… Mas quando um estrangeiro deixa uma criança, não há ninguém para ajudar. Quando a ONU fala em vir ao Haiti para estabilizá-lo, não é verdade. Eles estão desestabilizando.”

A ONU possui uma política para facilitar alegações de paternidade e apoio à criança nesses tipos de casos, mas cabe ao país de origem dos soldados dar continuidade ao processo.

Relação de exploração

O coronel do Exército uruguaio Girardo Frigossi diz que, não importam quais sejam as circunstâncias, relações sexuais entre soldados da ONU e cidadãos locais nunca são aceitáveis. “Não há possibilidade de relação, consensual ou não,” ele diz, “porque o poder está com o soldado da ONU, porque eles têm comida, eles têm água, eles podem prover segurança, eles têm dinheiro.”

Sylvain Roy, da Unidade de Conduta e Disciplina (CDU) da ONU, é ainda mais claro. “Ainda que a mãe concorde,” ele diz, “o relacionamento é explorador.”

Rose Mina Joseph tinha 16 anos quando ficou grávida, ela conta, de um soldado uruguaio de 35 anos. Ela não descreve sua relação como exploradora, mas deixa claro que a comida oferecida por ele foi parte da situação. “Os missionários davam proteção, e ajudavam as crianças aqui,” ela diz. “Eles davam a elas um pouco de comida, e tudo mais, e a mim também.”

Ela mostra uma foto sua, no aniversário de 17 anos, com o namorado soldado atrás de um bolo e de uma mesa coberta por comida.

Anderson Joseph, de dois anos, com uma foto de sua mãe Rose Mina Joseph e seu pretenso pai, ex-integrante da Minustah. Foto: Amy Bracken
Anderson Joseph, de dois anos, com uma foto de sua mãe Rose Mina Joseph e seu pretenso pai, ex-integrante da Minustah. Foto: Amy Bracken

Mas, após ele deixar o Haiti, ele deixou de atender o celular e mandar dinheiro, conta ela.

Um oficial no Uruguai diz que o suposto pai concordou em fazer o teste de DNA. Se for comprovada a paternidade, o caso será decidido em um tribunal nacional. “Eu quero que a Minustah me tire da pobreza,” Joseph diz, “para colocar eu e minha criança em um lugar melhor.”

Nenhum pedido reconhecido

É um desejo comum, mas Joseph está em um território quase inexplorado, ainda que o Uruguai esteja fazendo algo sobre isso. A ONU começou a compilar estatísticas de reivindicação de paternidade apenas no ano passado. E elas mostram apenas 19 reivindicações substanciais contra membros de missões de paz pelo mundo entre 2010 e 2012. Um relatório independente sugere que havia muitos outros requerimentos antes da ONU começar a registrá-los. E muitas mães não estão pedindo paternidade porque não há um sistema conhecido para tanto. As mulheres de Port Salut só ganharam a atenção da ONU graças a um jornalista americano que escreveu sobre elas em 2011.

“Você não pode esperar que uma mulher vivendo no meio do Congo, por exemplo, consiga entrar com um pedido de reconhecimento de paternidade e apoio à criança em uma corte de outro continente,” diz Roy, da CDU. “Mas essa é uma situação com a qual precisamos lidar.”

E para aqueles que conseguem entrar com os pedidos, as coisas não parecem promissoras.

Um relatório da ONU do começo deste ano diz que, “Segundo o conhecimento da Organização, ainda não há um pedido de paternidade reconhecido através de ações judiciais em qualquer país com auxílio de tropas ou da polícia.”

 

Essa reportagem foi produzida pelo site 100Reporters, em parceria com o programa The World da Public Radio International. Clique aqui para ler o original, em inglês.   

* Amy Bracken é uma jornalista freelancer baseada em Boston que sobre questões relacionadas com o Haiti

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