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Baseada em documentos e depoimentos, investigação jornalística desmente versão oficial sobre o massacre no México e compromete o Exército e a Polícia Federal nas ações que levaram à morte de três estudantes e ao desaparecimento de 43 jovens

Reportagem
15 de janeiro de 2015
09:00
Este artigo tem mais de 9 ano

*Especial para Agência Pública

O governo do presidente mexicano Enrique Peña Nieto participou do ataque aos estudantes da escola normal rural de Ayotzinapa na noite de 26 de setembro em Iguala, no Departamento de Guerrero, que resultou em três mortos e 43 desaparecidos. Testemunhos, vídeos, relatórios inéditos e declarações judiciais que constam dos procedimentos da Procuradoria Geral de Justiça de Guerrero mostram que a Polícia Federal (PF) participou diretamente dos fatos.

Peña Nieto: administração envolvida em massacre de estudantes no México. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
Peña Nieto: administração envolvida em massacre de estudantes no México. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

A versão oficial do governo mexicano é de que o prefeito de Iguala, José Luis Abarca (PRD), supostamente ligado à quadrilha Guerreros Unidos, havia ordenado o ataque para evitar que os estudantes atrapalhassem um evento eleitoral de sua mulher, María de los Ángeles Pineda Villa, no centro da cidade. As polícias municipais das localidades de Iguala e Cocula teriam atacado e capturado os estudantes, depois massacrados e queimados pela quadrilha Guerreros Unidos sem que o Exército e a Polícia Federal tivessem conhecimento dos fatos.

Mas a investigação realizada para esta reportagem, com apoio do Programa de Jornalismo Investigativo da Universidade de Berkeley, Califórnia, revelou uma história bem diferente. Além da Polícia Federal, também o Exército mexicano participou do ataque.

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Um relatório inédito do governo de Guerrero, concluído em outubro e entregue pouco depois à administração de Peña Nieto, prova que os estudantes foram monitorados pelos governos estadual, municipal e federal no dia 26 de setembro, desde que saíram da escola, através do Centro de Control, Comando, Comunicaciones y Cómputo (C4), que reúne os três níveis de governo.

Às 17h59 o C4 de Chilpancingo informou que os normalistas estavam saindo de Ayotzinapa em direção a Iguala. Às 20 horas a PF e a polícia estadual chegaram à estrada Chilpancingo-Iguala onde os estudantes tinham feito uma arrecadação de doações. Às 21h22 o chefe da base da PF, Luis Antonio Dorantes, foi informado – pessoalmente e através do C4 – de que os estudantes tinham entrado na estação do ônibus; às 21:40 o C4 de Iguala reportou o primeiro tiroteio aos três níveis de governo.

De acordo com o relatório de investigação preliminar dos fatos, a Fiscalía General de Guerrero havia ordenado desde 28 de setembro que a PF informasse “com urgência” se seus integrantes participaram ativamente dos fatos ocorridos em 26 de setembro (entre as 20 horas e o dia seguinte), e, em caso positivo, quantos policiais estavam envolvidos. Também pediu o registro de entrada e saída de pessoal da base de operações da PF, localizada a cinco minutos do lugar do ataque, o número de patrulhas, e o registro do armamento usado entre 24 a 28 de setembro. De acordo com o relatório da investigação prévia (HID/SC/02/0993/2014) a PF nunca entregou a documentação exigida.

Entre os documentos reunidos por essa investigação estão 12 vídeos gravados nos celulares pelos estudantes durante o ataque. Em um deles, a presença da PF está claramente identificada. “Os policiais já estão indo, vão ficar os federais que vão querer nos provocar”, diz em uma das gravações um estudante, no momento em que seu companheiro Aldo Gutiérrez Solano acabava de levar um tiro na cabeça e jazia na rua em uma poça de sangue. Aldo ainda está em coma.

Por causa da pressão política, o governo de Guerrero se afastou das investigações em 4 de outubro, que passaram ao controle do governo federal, quando se ocultou a participação da PF e do Exército no ataque. Testemunhos foram manipulados para contribuir com a versão oficial dos fatos. Documentos da Procuraduría General de la República (PGR), obtidos pela reportagem, revelam que pelo menos seis dos supostos integrantes de Guerreros Unidos que testemunharam contra Abarca, policiais de Iguala e Cocula, foram detidos ilegalmente, espancados ou torturados antes de depor. Dois deles são Raúl Núnez Salgado, suposto operador financeiro da organização criminosa, e Sidronio Casarrubias, tido como líder.

A Equipe Argentina de Antropologia Forense, reconhecida mundialmente por sua experiência na localização de corpos dos desaparecidos da ditadura militar na Argentina, informou no dia 7 de dezembro ter identificado um corpo entregue pela PGR como sendo do estudante Alexander Mora. Um dentre os 43 desaparecidos. Mas a Equipe Argentina assinalou que a versão da PF – de que os restos mortais foram encontrados em um rio – não poderia ser verificada porque os técnicos forenses não estavam presentes durante a descoberta do corpo e não puderam analisar a área.

O governo os vigiava

Do relatório elaborado pelo governo de Guerrero sobre o ataque aos estudantes consta a ficha informativa número 02370, assinada pelo coordenador de operações da Região Norte da Secretaría de Seguridad Pública y Protección Civil de Guerrero, José Adame Bautista, com data de 26 de setembro. Ali se afirma que às 17h59 “o C4 Chilpancingo informou a saída de dois ônibus da viação Estrella de Oro, com os números 1568 e 1531, levando estudantes da escola rural Ayotzinapa em direção à cidade de Iguala…”.

Isso significa que os governos estadual e federal – além do municipal – estavam monitorando os estudantes antes do ataque, já que os três níveis de governo estão presentes no C4 de Chilpancingo e Iguala. Em 2013 houve várias reuniões públicas entre o governador Angel Aguirre e o Secretário de Governo Miguel Angel Osorio Chong reforçando essa cooperação.

Em seu relatório, Adame Bautista escreve que os dois ônibus chegaram às 20 horas à cabine 3 do pedágio de Iguala. Em uma ação coordenada, a polícia estadual, com quatro elementos, e a PF com cinco elementos e três patrulhas sob o comando do oficial Victor Colmenares Campos, “monitoraram” as atividades dos estudantes.

“A Polícia Estadual se fez presente no local, mantendo-se à distância dos jovens, que minutos depois decidiram se retirar do lugar sem que se registrasse nenhum incidente ou confronto”, relata o citado documento do governo de Guerrero.

Segundo depoimentos judiciais da investigação preliminar HID/SC/02/0993/2014 e outras testemunhas, Abarca e a esposa saíram da praça central de Iguala às 20h45 e foram jantar com oito membros da família em um restaurante modesto a 15 minutos do centro de Iguala. Quando os estudantes chegaram na estação central eram 9 da noite – e portanto a presença deles não afetaria o evento político, como alega a PGR justificando sua versão dos fatos.

A dona do restaurante, a senhora Lili, confirmou que a família saiu às 22h30 em absoluta tranquilidade junto com as respectivas escoltas e um motorista.

O prefeito de Iguala e sua mulher, irmã de narcotraficantes que atuam em Guerrero desde 2000, foram apontados pelo governo estadual e pela PGR como os principais responsáveis pelo ataque e desaparecimento dos estudantes e detidos no dia 4 de novembro em seu esconderijo na cidade do México. Abarca permanece preso, mas a PGR ainda não conseguiu uma ordem de prisão contra sua esposa.

Os estudantes

Omar García, líder do Comité de Orientación Política e Ideológica (COPI) da escola normal de Ayotzinapa explicou que este ano sua escola tinha se encarregado de conseguir 20 ônibus para que as escolas normais rurais fossem à tradicional marcha de 2 de outubro que rememora o massacre estudantil de 1968. Antes de ir a Iguala já tinham “capturado” oito ônibus e estavam em busca de mais no dia do massacre. Ao contrário da versão da PGR, afirmou que os estudantes nunca tiveram a intenção de protestar contra o prefeito e sua esposa.

A história da escola normal está marcada pela trajetória do guerrilheiro Lucio Cabañas, que estudou ali e na década de 1960 chefiou o grupo armado Partido de los Pobres em Guerrero. Seu movimento foi perseguido ferozmente pelo governo, particularmente pelo Exército na chamada “guerra suja”, quando ocorreram desaparecimentos e execuções. Desde então a escola é relacionada com a guerrilha e seus estudantes sofrem ataques e abusos de autoridade.

O ataque de 26 de setembro não foi apenas contra os estudantes mas contra a estrutura política e ideológica da escola. Um dos estudantes desaparecidos fazia parte do Comité Lucha Estudiantil (CLE), o órgão máximo de governo da escola normal, e 10 eram “ativistas políticos em formação” do COPI, segundo Omar García.

Garcia conta que os estudantes pegaram cinco ônibus. Dois foram em direção ao Periférico Sul e os outros três erraram o caminho. Testemunhas afirmam que por volta das 22 horas viram três ônibus de passageiros na rua Juan N Álvarez e que quando estavam perto da catedral os estudantes começaram a descer. O motorista do primeiro ônibus, Hugo Benigno Castro disse em depoimento judicial que os estudantes desceram para perguntar onde ficava a saída para Chilpancingo.

Foi ali o primeiro ataque. Ouviram-se tiros e as pessoas começaram a correr. O policial municipal Raúl Cisneros declarou que estava no lugar e admitiu que lutou com dois estudantes que supostamente queriam desarmar seu supervisor de turno, Alejandro Temescalco, e ele, por isso fizeram disparos para o ar. Apesar da rua estar cheia de gente não houve feridos. Os estudantes jogaram pedras e afugentaram as patrulhas. Os três ônibus seguiram então em direção a Periférico, já longe do centro, onde a rua é mais escura e pouco movimentada.

A Polícia Federal

O secretário de Segurança Pública municipal, Felipe Flores Velázquez, em sua declaração judicial do dia 27 de setembro, disse que às 21h22 recebeu uma comunicação telefônica de que os estudantes estavam tomando os ônibus. Afirmou ter ligado imediatamente para Luis Antonio Dorantes, chefe da base da PF, que lhe garantiu que estaria alerta.

O relatório do governo de Guerrero afirma que depois de tomar conhecimento da captura dos ônibus pelos estudantes a Secretaría de Seguridad Pública y Protección Civil do estado “reuniu todo o seu pessoal nas instalações da polícia estadual” e que essa mobilização se deu “diante dos fatos que estavam se desenrolando.”

“Às 21h30 os rádio operadores da polícia estadual de C4 Iguala e do Quartel Regional me deram a conhecer que as operadoras do serviço de emergência 066 tinham atendido a uma chamada telefônica em que se advertia que os estudantes da normal rural Ayotzinapa estavam fazendo confusão nas centrais de ônibus Estrella Blanca e Estrella de Oro…”, apontou Adame Bautista em sua ficha de informações. Ele especifica que na chamada se pedia “o apoio das autoridades”.

O C4 está sob o controle da polícia estadual mas há um rádio operador de cada uma das forças:  Exército, Polícia Federal, polícia estadual e municipal. As instalações da polícia municipal, da PF e do 27º Batalhão de Infantaria ficam na mesma zona, a uma distância de 3 a 4 minutos do local do ataque. Do C4 se controla a rede de câmeras de vigilância de Iguala, algumas localizadas no centro da cidade, onde ocorreram três ataques, mas apesar de requeridas pela Fiscalía General del Estado, as imagens dessas câmeras nunca foram entregues.

Às 21:40 o C4 de Iguala recebeu o aviso de “disparos de arma de fogo”. Segundo Adame Bautista a polícia estadual não atendeu à contingência por ordem do subsecretário de Prevención y Operación Policial estadual, Juan José Gatica Martínez, e por isso os policiais teriam ficado protegendo as instalações prisionais locais.

Natividad Elías Moreno, rádio operador da polícia municipal de Iguala, explicou em entrevista que o C4 de Iguala está conectado ao Sistema Nacional de Segurança Pública, controlado pela Secretaría de Gobernación, cujo titular é Miguel Ángel Osorio Chong. Afirmou categoricamente que todos os informes que chegam ao C4 são simultaneamente recebidos pela PF, Exército e as outras instituições.

“Se nessa noite as informações sobre a ocupação dos ônibus pelos estudantes e sobre o tiroteio chegaram na C4, todas as instituições se inteiraram do assunto?”, perguntaram-lhe na entrevista. “Definitivamente sim”, respondeu o rádio operador.

O Procurador Jesús Murillo Karam afirmou, em 7 de novembro do ano passado, que o “rádio operador da central de polícia de Iguala David Hernández Cruz” declarou que foi Abarca quem ordenou o ataque aos estudantes. De acordo com a cópia obtida da “Orden de los Servicios Operativos de Vigilancia así como de los Servicios Administrativos”, não existe nenhum empregado dessa corporação com esse nome.

Vídeos da noite infernal

Os estudantes sofreram quatro ataques durante a noite de 26 de setembro e a madrugada do dia 27. Uma operação precisa e bem orquestrada que supera as capacidades de qualquer polícia municipal mexicana.

O segundo ataque ocorreu algumas quadras antes de chegarem ao Periférico. As balas atingiram os vidros dos ônibus e furaram os pneus. Uma patrulha municipal impediu a passagem da caravana dos três ônibus e outras patrulhas ficaram por trás. Alguns estudantes tentaram passar por uma das patrulhas. O estudante Cornelio Copeño disse em sua declaração que esse foi o momento em que seu companheiro Aldo levou um tiro na cabeça e caiu no chão.

O motorista do ônibus disse que o ataque durou mais de 30 minutos. Os doze vídeos obtidos captaram a agressão. Em um áudio sem imagem se ouvem os disparos. Em outro se vê Aldo ao lado da patrulha agitando os braços. Em outra gravação se escuta os estudantes reclamando com os policiais que estavam na parte traseira dos ônibus recolhendo as cápsulas detonadas.

O terceiro ônibus foi o mais atingido. Os assentos e corredores estão manchados de sangue nas fotos tiradas pelos estudantes. Dali se levaram alguns dos 43 desaparecidos.

Em seu depoimento, o normalista Francisco Trinidad Chalma disse que havia cerca de sessenta policiais em volta de 17 ou 18 detidos do lado esquerdo do ônibus. Outros testemunhos dos estudantes falam em mais de trinta policiais “em posição de tiro”. Alguns descreveram que os agressores estavam equipados com joelheiras, capacetes, cotoveleiras e balaclavas acompanhados de uma patrulha que trazia equipamentos para metralhadoras. Investigações mostraram que a polícia municipal de Iguala não usava esse equipamento, que também não está entre os objetos apreendidos pela Fiscalía.

“… Eu perguntei aos colegas que estiveram na cena do crime quem os tinha baleado, e eles me disseram que primeiro os policiais municipais usaram uma patrulha identificada para impedir a sua circulação, e que quando alguns colegas ao lado tentaram reduzir para passar pela patrulha chegou a Polícia Federal que disparou contra meus pares, ferindo vários deles … “, disse à Fiscalía o estudante Luis Pérez Martínez, que afirmou ainda que os policiais federais estavam recolhendo as cápsulas para não deixar provas.

Uma testemunha entrevistada disse que foi ver o que se passava. Quando chegou, a rua estava fechada por policiais encapuzados, com armas grandes, uniformes escuros e com um detalhe que fixou na memoria: suas calças eram diferentes das usadas pela polícia municipal. Disse que ficou com medo e foi embora.

Os estudantes que estiveram durante os três ataques foram procurados, mas não foi possível localizá-los. Segundo informações, nas primeiras declarações prestadas na manhã do dia 26 eles deram nomes falsos por medo. Depois seus pais os tiraram da escola.

No dia 27 de setembro a PF assumiu o controle da segurança pública em Iguala e junto com o Exército participou da busca aos desaparecidos. Depois do ataque o chefe da base da PF, Luis Antonio Dorantes, e o oficial Victor Colmenares, que vigiou os estudantes quando eles chegaram à estrada, foram removidos do cargo, segundo informações da base policial.

A PGR pôs toda a culpa na polícia municipal de Cocula e de Iguala. No entanto, a base de Iguala tem uma única entrada e saída por onde não passam as pick-ups Roll Bar da polícia municipal que teriam levado os estudantes aos bandidos. Seria preciso embarcar os estudantes na rua chamando a atenção de todos os vizinhos que vivem ao lado da base policial, que disseram em entrevistas não terem visto nada de anormal naquela noite e que estranhavam que os policiais que serviam apenas para controlar os bêbados da cidade tivessem executado aquela operação.

Em depoimentos oficiais, os policiais de Iguala disseram que entre 22h30 e 23 horas receberam ordens para ir à base da PF, onde ficaram até o dia seguinte. Foi nessa hora que ocorreu o terceiro ataque.

O terceiro e quarto ataques

Às 23h Omar García chegou a Iguala junto com outros estudantes de Ayotzinapa depois de ter recebido um pedido do socorro de seus companheiros. Houve uma hora que os disparos pararam e não se via mais a polícia. Os estudantes chamaram a imprensa e enquanto davam entrevista um comando abriu fogo contra eles a distância. Dispararam a correr, mas muitos ficaram feridos e dois estudantes caíram mortos: Daniel Solís y Yosivani Guerrero.

Omar descreveu os disparadores como “gente treinada” que atacou “em formação” concentrando “os disparos de fogo no lugar em que estávamos”, afirmou. “Havia um tiroteio que vinha de uma altura e depois provenientes a outra altura”. Segundo os exames periciais, havia duas trajetórias de balas: uma de cima para baixo e outra de baixo para cima.

Os atacantes pararam para recarregar e foi essa a oportunidade que os estudantes tiveram para correr.

Junto com esse terceiro ataque houve uma quarta agressão contra um dos ônibus de normalistas que se dirigia ao Periférico Sul. De acordo com o relatório da Fiscalía o ônibus da Estrella de Oro foi atacado no trecho Iguala-Mezcala e ficou com os vidros quebrados e pneus furados. Encontraram pedras com vestígios de sangue e de gás lacrimogênio no veículo.

Também foi atacado por engano um ônibus de jogadores de futebol. Ali morreram mais três pessoas. Ao fim dessa noite, havia seis mortos, 29 feridos por arma de fogo e 43 desaparecidos.

Painel com os 43 desaparecidos de Ayotzinapa. Foto: Leandra Felipe/Agência Brasil
Painel com os 43 desaparecidos de Ayotzinapa. Foto: Leandra Felipe/Agência Brasil

Às 10 da manhã de 27 de setembro, o corpo de Julio Cesar Mondragón, o terceiro estudante assassinado, foi encontrado nas imediações do C4, na zona industrial de Iguala. Tinha o rosto destruído, sem um dos globos oculares e a calça enrolada até a debaixo dos glúteos. Não tinha marcas de tiro, morreu por fratura do crânio segundo a autópsia e por isso pode ter sido um dos estudantes sequestrados dos ônibus.

A participação dos militares

O secretário da Defesa do governo mexicano, Salvador Cienfuegos, disse aos deputados no dia 13 de novembro que o 27º Batalhão de Infantaria, comandado pelo coronel José Rodríguez Pérez, tomou conhecimento do ataque duas horas depois de ocorrido. Mas não foi isso que aconteceu.

Logo depois do segundo ataque, entre às 23h e meia-noite, o Capitão Crespo, do 27º Batalhão de Infantaria, usando uniforme militar camuflado, chegou à base da polícia municipal de Iguala junto com 12 militares fortemente armados a bordo de duas viaturas. Com o pretexto de que estaria em busca de uma moto branca, Crespo vasculhou todo o local. Mais tarde chegou um aviso de que havia uma moto retida no centro e Crespo foi procurado no Batalhão mas não estava lá. Testemunhas da visita do Capitão disseram que depois que souberam do desaparecimento dos estudantes a conduta de Crespo lhes pareceu ainda mais suspeita.

Uma faixa colocada nos arredores de Iguala no dia 30 de outubro, dirigida a Peña Nieto e supostamente assinada por um narcotraficante conhecido como “El Gil”, responsabilizava entre outros o Capitão Crespo pelo desaparecimento dos estudantes de Ayotzinapa, acusado de trabalhar para o crime organizado.

Outro comando militar apareceu entre meia-noite e uma hora da manhã no hospital para onde os estudantes haviam levado seu companheiro Edgar com um tiro no rosto. Segundo Omar Garcia, os militares os revistaram procurando armas, fizeram com que tirassem a camisa, depois os fotografaram e pediram seus nomes “verdadeiros”, como explicou Omar: “Se derem nomes falsos nunca mais ninguém vai encontrá-los”, disse textualmente o comandante militar segundo Omar, que entendeu a advertência como ameaça: “Estavam insinuando que iam sumir com a gente, nos deixar em algum lugar”.

Torturados antes de depor

"Protestar é um direito; reprimir é um delito", diz pintura na Escola Rural Raúl Isidro Burgos, em Ayotzinapa. Foto: Leandra Felipe/Agência Brasil
“Protestar é um direito; reprimir é um delito”, diz pintura na Escola Rural Raúl Isidro Burgos, em Ayotzinapa. Foto: Leandra Felipe/Agência Brasil

Documentos provam que, depois que a PGR assumiu as investigações em 5 de outubro, pelo menos cinco supostos integrantes de Guerreros Unidos que fizeram declarações contra Abarca e a polícia municipal de Iguala e Cocula foram torturados pela Marinha e pela PF antes de depor.

Sidronio  Casarrubias, acusado pela PGR de ser o líder máximo de Guerreros Unidos, foi detido no dia 15 de outubro entre as nove e dez da noite em um restaurante brasileiro embora a PGR tenha dito que ele havia sido capturado na estrada México-Toluca. Raúl Núñez Salgado, o dono de um açougue em Iguala que costuma organizar bailes na cidade, foi preso no dia 16 de outubro quando saía  de um centro comercial em Acapulco; antes do depoimento apresentava mais de trinta feridas em diferentes partes do corpo, hemorragia interna nos olhos, machucados nos ouvidos, hematomas de 12 por 8 centímetros no rosto, e marcas no pescoço, braços e costelas. Fez uma queixa de espancamento contra os marinheiros que o prenderam.

Carlos Canto, conhecido como “El Pato”, professor do Ensino Médio e dono do bar La Perinola, foi detido em Iguala no dia 22 de outubro. Em declaração judicial do dia 29 de outubro disse que foi torturado com choques elétricos e espancamento pela Marinha para acusar uma lista de nomes previamente preparada pelos militares.

No dia 7 de novembro de 2014 o Procurador Murillo Karam apresentou Patricio Reyes Landa, visivelmente machucado, como autor de uma suposta confissão de que havia matado e queimado os estudantes.

Francisco Lozano e Eury Flores foram presos pela Marinha em 27 de outubro em Cuernavaca, Morelos. De acordo com o exame físico da PGR, Flores tinha hematomas nas costelas, no olho, no lábio e disse que queria apresentar uma denúncia contra seu agressor. Lozano tinha uma ferida no tórax e outras marcas e declarou ter sido torturado pelos elementos da Marinha que o prenderam.

O contador Nestor Napoleón Martínez, filho de um funcionário da Secretaria de Saúde de Guerrero, foi detido em 27 de outubro. Ao se apresentar à PGR tinha mais de dez lesões, entre elas hematomas na região do estômago e na área dos testículos. Afirmou que tinha sido ferido durante a prisão.

Vidulfo Rosales, advogado dos normalistas e dos familiares dos desaparecidos, disse em uma entrevista que desde o início os estudantes apontaram a presença da PF nos ataques. E no final de novembro os estudantes acrescentaram novas declarações em seus depoimentos à PGR para incluir a participação dos federais e do Exército nos ataques.

No dia 21 de novembro o juiz Ulises Bernabé García foi convocado pela PGR e voluntariamente contou a visita do Capitão Crespo à base policial municipal, afirmando que os estudantes de Ayotzinapa nunca foram levados para lá, desmentindo a versão do governo federal.

Apesar dos documentos que provam que o governo vigiou os estudantes desde quatro horas antes do ataque, que soube do ocorrido durante todo o tempo e que suas forças de segurança participaram do ataque, até hoje – um mês depois desta investigação ser publicada no México – o governo de Enrique Peña Nieto segue negando os fatos e se recusando a dar uma explicação. Os pais dos estudantes desaparecidos, agora, exigem que se investigue a participação da PF e do Exército.

Anabel Hernandez é uma das mais respeitadas jornalistas investigativas do México, especializada em denunciar casos de corrupção, narcotráfico e abusos de poder. Colaboradora das revistas Reforma e Processo, sua obra mais conhecida é o livro “Los Señores del Narco”, publicado em 2010. Em 2012, recebeu da Associação Mundial de Jornais e Editoras de Notícias (WAN-IFRA) o prêmio Pluma de Oro de la Libertad. Foi eleita em 2014  pela organização Repórteres sem Fronteiras como um dos “100 heróis da informação”, ao lado de Julian Assange e Glenn Greenwald.

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