Documentos inéditos, guardados há meio século nos arquivos do Superior Tribunal Militar (STM), jogam luzes no cenário que levou ao recrudescimento da ditadura militar, com a edição do AI-5 (Ato Institucional número 5) em dezembro de 1968. Depoimentos de personagens, relatórios oficiais e uma infinidade de papéis anexados a processos que somam cerca de 10 mil páginas, ao qual a Pública teve acesso, demonstram que o AI-5 fez parte de um plano para alongar a ditadura com atentados a bomba em série, preparados no final de 1967 e executados até agosto do ano seguinte por uma seita esotérica, paramilitar e de extrema direita.
Até esse momento, episódios de ação armada da esquerda, que também ocorreram, eram apontados como causa para a decisão dos militares de endurecer o regime.
Comandadas por um líder messiânico a serviço da linha dura do governo militar, as ações terroristas da direita, que chegaram a ser atribuídas, equivocadamente, às organizações de esquerda, segundo apontam as investigações, tiveram como estratégia aquecer o ambiente como preparação do “golpe dentro do golpe”, o que daria ao regime uma longevidade de mais 17 anos.
Na cadeia de comando do grupo se destacam um general da reserva Paulo Trajano da Silva, que se dizia amigo pessoal do então presidente-ditador Artur da Costa e Silva, e, na linha de frente do plano, um complexo personagem, Aladino Félix, conhecido como Sábado Dinotos, líder da seita, mentor e também autor dos atentados.
Formado por 14 policiais da antiga Força Pública (como era chamada à época a Polícia Militar de São Paulo), todos seguidores fanáticos de Aladino Félix, o grupo executou 14 atentados a bomba, furtou dinamites de pedreiras e armas da própria corporação, além de praticar pelo menos um assalto a banco, plenamente esclarecido. Foram os pioneiros do terrorismo, e os responsáveis pela maioria das ações terroristas registradas no período – um total de 17 das 32 contabilizadas pelos órgãos policiais.
Primeiros atentados foram da direita
A evidência de que foi a direita quem tomou a frente nas ações que serviram de pretexto para o fechamento do regime aparece pela primeira vez num relatório do delegado Sidney Benedito de Alcântara, assistente do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), sobre o inquérito em que a polícia esclarece os crimes a partir de prisões ocorridas em meados de agosto de 1968. Com data de 18 de dezembro, cinco dias depois da edição do AI-5, o delegado afirma que os atentados da direita “começaram bem antes do atual terrorismo de esquerda”, numa referência ao início da fase mais acirrada dos conflitos armados que marcaram a fase mais dura da repressão política.
Pela cronologia das investigações, os paramilitares começam furtando dinamites, no final de dezembro de 1967, armas no Quartel-General (QG) da Força Pública em 16 de janeiro de 1968, e executam explosões de bombas entre 10 de abril até 19 de agosto, com atentados em série, o último deles dois dias antes de o grupo ser desbaratado.
Os alvos principais dos atentados, cuja autoria o grupo de Aladino Félix assumiria, foram justamente os órgãos que depois centralizariam a repressão contra a esquerda em São Paulo: o II Exército, cujo QG ainda funcionava na rua Conselheiro Crispiniano, o prédio do Dops, instalado então no largo General Osório, e o QG da Força Pública, na praça Júlio Prestes, todos na região central.
O grupo explodiu também bombas na Bovespa (Bolsa de Valores de São Paulo), no oleoduto de Utinga, em prédios onde funcionavam os setores de alistamento da PM (era Força Pública) e de varas criminais da capital (Lapa e Santana) e em pontilhões e trilhos que davam acesso à estrada de ferro que ligava o litoral e os subúrbios da região metropolitana ao centro da capital.
As ações de esquerda, porém, que mais tarde se alternariam com as da direita, se iniciaram apenas em 19 de março de 1968, com a explosão de uma bomba que feriu três estudantes na biblioteca do consulado dos Estados Unidos, no Conjunto Nacional, na avenida Paulista. O atentado mais grave, que matou o soldado Mário Kozel, sentinela do QG do II Exército, já funcionando no Parque Ibirapuera, só ocorreria em 26 de junho do mesmo ano.
O general Silvio Corrêa de Andrade, chefão da Polícia Federal em São Paulo, chegou a sustentar à época, em entrevistas, que o governo não tinha dúvidas sobre quem estaria por trás de todos os atentados. “Sabemos de onde partiu o golpe: foram os homens da esquerda. Mas acabaremos por agarrá-los”, disse ele.
O mesmo general se mostraria surpreso quando o grupo de Aladino Félix acabou se revelando através de uma investigação criminal de rotina, à revelia dos órgãos de informação do governo federal, que mirava apenas descobrir os autores do roubo a uma agência do Banco Mercantil e Industrial (BMI) de Perus, ocorrido no dia 1º de agosto de 1968.
Maconheiros e malandros
O delegado Ruy Prado de Francischi, lotado na 40ª DP, em Vila Santa Maria, na zona norte, rastreando os passos de “maconheiros e malandros”, conforme consta no relatório do Dops, recolheu informes sobre a quadrilha que roubou o BMI. O delegado descobriu que os assaltantes, com os rostos cobertos por lenços (estilo copiado dos filmes de faroeste, então a coqueluche de Hollywood), haviam rendido o vigia e funcionários da agência com armas furtadas do QG da Força Pública, em 16 de janeiro, de onde haviam sido levados uma metralhadora INA, três pistolas Walther e 13 revólveres Taurus.
Identificados, presos e conduzidos ao xadrez do Deic, os quatro assaltantes, todos já fichados à época por crimes comuns, depois de intensas sessões de tortura, contaram que o mentor do roubo havia sido o soldado da Força Pública Jessé Cândido de Moraes, o segundo homem na hierarquia do grupo. Preso no dia 21 de agosto, e também submetido a variados tipos de sevícias, o policial citou, pela primeira vez, o nome de Aladino Félix como um dos destinatários do dinheiro roubado.
Autor de livros sobre ufologia e de profecias bíblicas, místico venerado por um séquito, Aladino Félix tinha servido como militar na Segunda Guerra e era reconhecido por relevantes serviços prestados ao golpe de 1964, além de manter contatos com autoridades do regime militar. Como um delator de luxo, fornecia informações sobre as ações das organizações de esquerda e supostas conspirações contra o governo envolvendo oficiais da Força Pública.
Detido um dia depois de Jessé, em 22 de agosto, Aladino Félix foi levado para o Deic. Lá, também torturado, conforme atestaria um laudo pericial da própria polícia, mas longe da influência das autoridades federais, descreveu em detalhes, num manuscrito de 25 páginas em folhas de caderno espiral, todos os atos praticados por seu grupo nos oito meses que antecederam sua prisão. Aladino Félix, abandonado pelo governo, que perdeu o controle sobre sua prisão, passa a contar por que organizou o grupo. De acordo com ele, a motivação básica das ações era levar o regime a assumir medidas ditatoriais agudas. Num dos trechos do manuscrito, Aladino Félix afirma que recebia ordens da Casa Militar do Palácio do Planalto, chefiada à época pelo general Jayme Portella, e de fontes do Ministério da Justiça através da Polícia Federal.
Poderia ser apenas bravata, mas um dos papéis apreendidos em seu escritório, no 21º andar do edifício Martinelli, não deixa dúvida sobre as relações de Aladino Félix/Dinotos com o escritório central da Polícia Federal (PF), em Brasília:
“Prezado senhor Dinotos,
Recebi sua carta e desde já aceite meus agradecimentos pelas informações nela contidas.
Encaminhei imediatamente cópia das informações ao meu Diretor, tendo ele ficado também impressionado e levará o assunto às autoridades superiores.
Esperando contar com a valiosa cooperação que o senhor vem prestando, aguardo novas notícias”.
A carta, datilografada numa folha com o brasão da República e timbres do Ministério da Justiça e Polícia Federal, é assinada pelo inspetor Firmiano Pacheco, com data de 8 de maio de 1968, portanto três meses antes de Aladino Félix e seu grupo serem presos.
A onda de atentados era de pleno conhecimento do governo, que tinha consciência, segundo Aladino Félix, de que o regime entrara numa fase de desgaste e estava em meio a uma forte crise quatro anos depois do golpe. “Brasília queria que nossas ações continuassem até dezembro de 1968 ou janeiro de 1969”, escreve no manuscrito, entregue à polícia em 27 de setembro de 1968. Todos os integrantes de seu grupo, ouvidos em inquéritos civis e militares, reafirmariam que a motivação era levar o regime a editar medidas de exceção.
Aladino Félix sustenta que, diante de pressões que só aumentavam, o governo concordara com a linha dura do regime. “Para evitar a reformulação dos planos revolucionários, a única forma proposta e aceita pelo governo federal, através do general Paulo Trajano, foi a ação terrorista”, escreve no mesmo manuscrito. Segundo Félix, “o terrorismo foi então como uma saída de emergência para o governo federal, pois não podia agir contra tantos implicados na trama e nem lhes convinha dar-lhes a liberdade para reassumir as rédeas que lhes foram arrancadas pela revolução de março de 1964”.
Todos os integrantes do grupo contaram, depois de presos, que no caso do furto das armas Trajano participou dos detalhes do planejamento e, diante da possibilidade de identificação dos autores, garantiu que “acertaria” com a Polícia Federal um jeito de evitar que fossem encontradas impressões digitais. Disseram que o general ainda forneceu um álibi caso surgissem suspeitas sobre o sumiço dos envolvidos no dia da ação: todos estariam com ele, Trajano, numa caçada no Mato Grosso
O general Paulo Trajano
Apontado por Aladino Félix como o homem que deu a ordem para o furto das armas no QG da Força Pública e do atentado a bomba no antigo QG do II Exército, Trajano expressa espontaneamente no depoimento que prestou no dia 2 de setembro de 1968, no inquérito aberto pelo II Exército para investigar o envolvimento do general com o grupo, um desejo de que, cem dias depois, se revelaria profético: “O governo federal deveria aproveitar o momento para endurecer o regime, acabando de vez com a desordem reinante no país”, disse.
Ao Dops, que assumiu o caso assim que o grupo se responsabilizou pelos atentados terroristas, o general Trajano conta que havia relatado o furto das armas ao então chefe da PF no Rio (Guanabara à época), general Luiz Carlos Reis de Freitas. Afirma que, assim que soube do furto das armas na casa de Aladino Félix, chegou a comentar com Freitas que o episódio serviria para “desnortear” oficiais da Força Pública que, segundo versão nunca comprovada, conspiravam contra o governo.
A mesma história foi contada por Aladino Félix em seu relato-confissão. Segundo ele, os oficiais da Força Pública preparavam uma rebelião para derrubar Costa e Silva. O movimento teria sido gestado na França, através de contatos do ex-presidente Juscelino Kubitschek com Charles de Gaulle, numa articulação que envolvia, no Brasil, os dirigentes da Frente Ampla liderada por Carlos Lacerda e apoiada por outros líderes cassados pela ditadura. O levante ocorreria no dia 25 de janeiro, com o assassinato do presidente e do ex-governador Abreu Sodré. Nesse dia, diz, Costa e Silva estaria na capital, participando das comemorações em homenagem ao aniversário da cidade. Lacerda também estaria em São Paulo, num evento no Teatro Municipal, de onde daria a senha para desencadear a rebelião, que seria seguida por levantes na Brigada Militar gaúcha e nas PMs de Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, Goiás e Bahia.
No início de janeiro, segundo as investigações, Aladino Félix e Trajano se encontrariam várias vezes. O general diria que ouvira e acreditara na conspiração e, como era amigo de Costa e Silva, que anos antes havia sido seu comandante no Segundo Batalhão de Infantaria do Exército em São Paulo, decidiu informar o governo. No depoimento, diz que Aladino Félix teria se passado como aliado dos conspiradores e chega a afirmar, numa versão que a própria polícia acha delirante, que viu um primo e homem de confiança de Lacerda, Paulo Bucker Lacerda, “confabulando” com o místico no escritório deste.
O general sustenta que, convencido dos riscos que o regime e o presidente corriam, procurou a chefia da Polícia Federal do Rio de Janeiro (à época Guanabara). De fato, dias depois, ele e Aladino Félix foram ao Rio e detalharam o que sabiam – este colocou tudo num relatório datilografado. A PF passou a tratar como informação real e a repassou ao chefe da Casa Militar do Palácio do Planalto, general Jayme Portella. Costa e Silva, então, cancelou a viagem a São Paulo.
No dia 27 de janeiro, com Marinha e Aeronáutica de prontidão, o Exército cercou e fez uma série de incursões pela capital paulista, mas nada de anormal foi registrado. Só em março os jornais noticiariam que um golpe havia sido abortado e apontavam o principal responsável pelo desmonte dessa rebelião: Aladino Félix. Era aplaudido pela direita e, em entrevistas, chegou a afirmar que enviou, sim, um bilhete que chegara às mãos de Costa e Silva.
Nos meses seguintes, as ações da direita e da esquerda se alternariam. A VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) colocaria a bomba na sede do Estadão, que à época estava instalado na rua Major Quedinho, no centro da capital, e roubaria um paiol de armas no Hospital Militar do Exército. Por outro lado, os paramilitares dariam curso aos atentados em série. Num só dia, 19 de agosto, véspera das primeiras prisões por causa do roubo ao BMI, explodiriam as bombas no Dops e nas varas distritais criminais da Lapa e de Santana.
Os terroristas e o militar
Com o esclarecimento do roubo ao BMI, vieram à tona o furto das armas e os demais atentados. Trajano admitiu, em depoimento ao Dops, que foi informado e viu as armas furtadas na casa de seu amigo Aladino Félix, mas negou que soubesse das demais ações.
Depoimentos e acareações feitas pela polícia colocam o general, no entanto, na cena em que se planejou o furto: todos disseram que, consultado sobre a ação, o general pediu um tempo para responder, e que só teria dado a ordem de execução depois de conversar com o comando da PF no Rio.
Um dos militares do grupo, o sargento Rubens Jairo dos Santos, diretamente envolvido em várias explosões de bomba, aponta o dedo direto para o amigo do presidente: “O general Trajano deu a ordem para colocar a bomba no QG do II Exército”, afirmou o militar em depoimento. O objetivo, segundo ele, era assustar e alertar o então comandante da força, general Syseno Sarmento, sobre a continuidade da conspiração entre oficiais da Força Pública, mesmo depois de “abortado” o “plano” de assassinar o presidente.
O delegado do Dops tachou de “evasivas” as respostas do general nas acareações e afirmou que os que o acusaram de envolvimento no furto se comportaram de maneira firme e convincente. Mas, em relação à suposta conspiração contra Costa e Silva ter motivado o comportamento do general, o delegado Sidney Benedito de Alcântara se mostra mais crédulo. Em seu relatório, ele diz que o general Trajano “queria ser solidário a Costa e Silva, com quem servira na vida militar e de quem recebeu valiosos apoios”. Reconhece, no entanto, ser implausível que um militar experiente se deixasse iludir por teorias conspiratórias que o teriam feito assumir “conduta terrorista”. No final do relatório, repete o que imagina ter passado pela cabeça do líder da direita ao ordenar os ataques aos seus seguidores: “O governo ver-se-á na contingência de adotar represálias, impondo um regime de força, desviando, dessa forma, o Brasil do abismo a que está caminhando”.
Poupado pela Justiça Militar de São Paulo, que nem sequer o considerou investigado, Trajano se tornaria alvo de um inquérito só mais tarde, aberto inicialmente no Rio e, depois, transferido para o II Exército, em São Paulo. Foi preso em setembro no QG da Segunda Divisão do II Exército até que concluísse seu interrogatório, algo como uma prisão provisória nos dias de hoje. Mesmo acusado de terrorismo, foi solto alguns dias depois por decisão unânime dos ministros do STM, entre os quais votou contra a decretação de prisão preventiva o general Ernesto Geisel, que em 1974 sucederia o general Emílio Garrastazu Médici, chefe do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) no período dos atentados da direita.
O SNI e a farsa
As suspeitas de que a cúpula do regime militar sabia dos atentados da direita em São Paulo são reforçadas por um relatório do SNI de agosto de 1969. Numa retrospectiva sobre o papel da Força Pública, então com 36 mil homens livres do “micróbio vermelho” e, portanto, “força antirrevolucionária” a favor do regime, o agente diz que o grupo de Aladino Félix tinha a intenção de levar todo o arsenal dos 350 homens que integravam o antigo Departamento da Polícia Militar e que a autoria do atentado ao QG da Força Pública foi encoberta por oficiais graduados da corporação, supostamente mancomunados com as ações paramilitares.
O agente informa que o soldado Jessé, que classifica como “lugar-tenente” de Aladino Félix, e os sargentos Rubens Jairo dos Santos e Juarez Nogueira Firmiano, que participaram da maioria dos atentados, chegaram a ser presos no mesmo dia em que o petardo explodiu no QG da Força Pública, em 10 de abril de 1968, destruindo um dos elevadores. Os três foram soltos, frisa o agente do SNI, sem nem sequer serem investigados.
“No dia seguinte ao da explosão, após o término do expediente, o major Edson [Edson Isaac Corrêa] desceu à prisão e os colocou em liberdade por ordem do cel. Vilela [José Vilela dos Santos, então comandante do Estado Maior da Força Pública]. É evidente que tais elementos, se pressionados, iriam revelar o plano e para que isso não acontecesse, os oficiais tomaram aquela atitude”, escreve o agente do SNI.
O responsável pelo inquérito policial-militar (IPM), capitão Cid Benedito Marques, orientado por superiores para “nada investigar”, passou então a ouvir pessoas que o agente denomina de “trouxas”. O depoimento de Aladino Félix nesse IPM foi só para cumprir tabela: o místico negou que soubesse de qualquer detalhe e foi dispensado com as honras de sempre. “Referido IPM encontrou sérios obstáculos para nada apurar, somente vindo à tona mais tarde [os atentados], com a descoberta pela Polícia Civil do terrorista Sábado Dinotos”, afirma o agente do SNI.
“Será que é cego?”
No IPM da Força Pública há outras evidências de que entre os arapongas que integravam os órgãos de informação do governo as ações do grupo eram um segredo de Polichinelo. A mulher de um dos soldados envolvidos, Alice Moreira, revela, em depoimento prestado no início de maio, que algumas reuniões de planejamento das ações ocorreram em sua casa.
Alice afirma que Aladino Félix sempre estava presente, se apresentava como judeu anticristão e anticomunista, falava de discos voadores, religião – parte de um proselitismo esotérico que a polícia chamou de “isca dourada” – e, no que de fato interessava, encerrava suas palestras com um discurso político radical, pregando a destruição de estabelecimentos públicos. Alice diz ter tomado conhecimento, nessas reuniões, de que as armas furtadas estavam com o líder do grupo.
Há, ainda, nos autos do mesmo IPM outros indícios que jamais poderiam ter sido menosprezados numa investigação rigorosa: um bilhete que, embora anônimo, já esclarecia, em abril, de onde partiam os atentados. O autor se dirige ao capitão Cid Benedito Marques e vai ao ponto: “Será que é cego? Onde está a sua experiência de soldado? Não vê que o plano terrorista que se desenvolve em São Paulo está estreitamente ligado ao cidadão Aladino Félix e que os maiores terroristas, seus seguidores, na maior parte, são da Força Pública?”, diz o signatário, que se apresenta como amigo secreto do capitão e assina com o curioso pseudônimo de “Altos Significados”. Os quatro meses seguintes seriam marcados por intensos atentados a bomba praticados pelo grupo.
Apontado por Aladino Félix como um dos conspiradores que pretendiam derrubar Costa e Silva, o capitão acabou afastado do IPM. As investigações só seriam retomadas mais tarde por outro oficial, quando o delegado Francischi já havia destrinchado as ações do grupo a partir do roubo ao BMI, em agosto.
Ao concluir seu relatório, no dia 30 de maio de 1968, o capitão Cid apontava “Sábado Dinotos e seus sectários” como suspeitos das ações terroristas, “atividades essas”, ele faz questão de destacar, “que já são do conhecimento do II Exército, DOPS e Polícia Federal”. Não há registro de qualquer procedimento aberto pelos órgãos federais até a prisão do grupo.
“Com um pouco mais de chance, teria o cap. Cid desbaratado ainda no início todo o grupo terrorista e, o que é melhor, teria evitado uma série de atentados terroristas”, escreve, em 12 de outubro de 1968, o tenente-coronel Raul Humaitá Villa Nova, no relatório que encerraria o IPM da Força Pública.
Conforme demonstra a cronologia dos episódios relatados nos autos, o grupo surgiu como força paramilitar no final de 1967, executou as primeiras ações em janeiro, intensificou os atentados de abril a agosto e só seria descoberto, por acaso, pelo vínculo com um roubo comum. O caso, como se viu, foi esclarecido com o uso da tortura por um setor da Polícia Civil, o Deic, que reprimia os crimes contra o patrimônio, mas não se vinculava à polícia política. As investigações deixam claro que, apesar das fortes evidências sobre a autoria dos atentados, a extrema direita agiu com intensidade e desenvoltura até a prisão de Aladino Félix, em 22 de agosto.
O grupo foi investigado durante cinco anos, de 1968 a 1973, em três inquéritos civis (um deles tocado pela Polícia Federal, tão pífio que não chegou a nenhuma conclusão), dois IPMs, um processo da Segunda Auditoria da Justiça Militar paulista e, ainda, duas apelações, que tramitaram no STM e, finalmente, no Supremo Tribunal Federal (STF).
“Gênio e louco”
Quando a história do terrorismo veio à tona, o conceito do homem que “salvara” a vida do presidente e evitou a “contrarrevolução” virou de pernas para o ar. De lúcido e paparicado colaborador do regime militar, Aladino Félix passou a ser tratado como um doido. A polícia o descreve depois como um místico que falava ter sido contatado por alienígenas e que se apresentava como o ungido que reunificaria as 12 tribos de Israel, enfim, um Messias.
À exceção do general Trajano, que o conhecia havia cinco anos e intermediou os contatos de Aladino Félix com as altas fontes do governo, todas as outras autoridades militares ouvidas no IPM do II Exército passaram a descrevê-lo como excêntrico. “Imaginação fértil e fantasiosa”, disse, em 23 de outubro de 1968, o coronel Edgard Barreto Bernardes, da PF, designado para averiguar as denúncias sobre o plano de assassinato de Costa e Silva.
“Pessoa com ideia fixa sobre subversão, atentados e conspiração”, acrescentou o então chefe da PF no Rio, coronel Florimar Campello. O diretor-geral da PF, general Luiz Carlos Reis de Freitas, afirmou que era um “lunático esperto e oportunista em busca de notoriedade”. O delegado Alcântara o perfilaria como misto “de gênio e de louco”.
Concatenadas, as declarações das autoridades, todas prestadas no mesmo dia, em depoimento que consumiu menos de uma lauda datilografada, levavam à desconstrução de Aladino Félix. O governo só não conseguiria explicar por que teria acreditado nos delírios de um místico a ponto de determinar a manobra militar em janeiro de 1968 para inibir uma suspeita história de golpe.
Como a imprensa já estava sob censura, as mesmas autoridades que acreditam no seu relato em janeiro e eram informadas diariamente pelo SNI nem se deram ao trabalho de esclarecer por que passaram a tratá-lo como lunático só sete meses depois da primeira investigação. Já no primeiro relatório sobre o caso, o delegado Alcântara afirmava que Aladino Félix “realmente” tinha contatos com autoridades do governo federal até ser preso.
Crime e perdão
Em 30 de setembro de 1970, a Segunda Auditoria da Justiça Militar de São Paulo afastou Trajano do processo por achar que “não era o caso” de investigá-lo. Os quatro conselheiros, acatando o relatório do juiz Nelson Machado Guimarães (o único civil da turma e cuja atuação ficou marcada por sentenças implacáveis e duras com militantes da esquerda), consideraram que não havia provas sobre os atentados e condenaram Aladino Félix e o soldado Jessé Cândido de Moraes, pela Lei de Segurança Nacional, a cinco anos de reclusão por “terrorismo”, apenas com base no furto das armas. Os demais envolvidos foram condenados a penas mais baixas, entre um e três anos.
Com a abertura de IPM contra o general Trajano, detentor de foro privilegiado, o processo subiria para o STM. Lá, inconformado com a sentença, o advogado do grupo, Juarez de Alencar, sustentou toda a linha de defesa no perfil dos réus e nos objetivos políticos dos atentados que, segundo ele, haviam sido desvirtuados no inquérito policial. Disse que Aladino Félix e os militares “estavam convictos, na sua posição de homens de direita, e de defensores da Revolução de Março, da absoluta legalidade revolucionária de suas ações”.
Alencar lembra que Trajano, “companheiro e amigo” de Costa e Silva, deu ao regime “notícia indiscutível da intentona”, argumentou que “quem está com o governo não pode ser condenado pelo próprio governo” e pediu não apenas a absolvição de todos, mas também que os militares liderados por Aladino Félix fossem perdoados, reincorporados à Força Pública e promovidos.
Foi atendido quase plenamente. Em outubro de 1970, seguindo parecer da procuradora Mary do Valle Monteiro no recurso de apelação, os ministros do STM absolveram todos os demais acusados e reduziram a pena de Aladino Félix para oito meses. O STM descartou os atentados a bomba e os demais crimes, fixando a pena só pelo furto das armas, procedimento bem diferente do aplicado pela mesma justiça aos militantes da esquerda armada.
Aladino Félix permaneceu preso, aguardando um exame de sanidade mental solicitado pelo Conselho Permanente de Justiça, este convencido pelos argumentos de que se tratava de um doido. O general Paulo Trajano da Silva, já absolvido, também estava livre de desconfortos.
Semi-imputável
O laudo assinado por dois psiquiatras forenses, José Roberto Belelli e Carlos Roberto Hojaij, o define como detentor de personalidade egocêntrica, com inteligência acima da média e domínio pleno dos temas sobre os quais era instado a falar, mas, no final, corrobora a tese das investigações: “Não se trata de doente mental. Trata-se de portador de perturbação da saúde mental cuja capacidade de entendimento ao tempo dos fatos era apenas parcial”, dizem no documento encaminhado no dia 7 de outubro de 1971.
A procuradora Mary Valle Monteiro, que antes considerara que o processo inteiro era “tudo loucura”, já esperava o resultado. “A conclusão de que é fronteiriço não nos decepciona. É um semi-imputável”, afirma, pedindo a confirmação da sentença de oito meses de reclusão, plenamente acatada pela turma do STM, conforme despacho do ministro Lima Torres, em 12 de janeiro de 1972. “É, no mínimo, um lunático”, acrescentou o ministro. Inconformado com o estigma de débil mental, Aladino Félix recorreu ao STF.
Sem que nenhum fato novo tenha ocorrido, o recurso de apelação dormitou 21 meses no STF até que o relator, ministro Rodrigo Alckmin (tio do presidenciável tucano Geraldo Alckmin) encerrasse o caso no dia 9 de outubro de 1973, com um despacho de cinco linhas, em que negava provimento à apelação. Aladino Félix e os demais envolvidos já estavam em liberdade e o país, mergulhado na ditadura, vivia sob o AI-5 os horrores dos anos de chumbo.
Aladino Félix amargou uma longa temporada atrás das grades. Foi preso pela primeira vez em 22 de agosto de 1968, mas teve a prisão relaxada em 17 de outubro pelo juiz da 9ª Vara Criminal de São Paulo, responsável pelo processo relacionado ao roubo ao BMI de Perus. A soltura, na verdade, foi um cochilo dos militares responsáveis pelo IMP do II Exército, que empreenderiam uma verdadeira caçada para prendê-lo novamente nove meses depois. No dia 15 de setembro, ele conseguiu escapar pela porta da frente da Casa de Detenção, no Carandiru, mas acabou preso novamente uma semana depois.
Ironicamente, foi levado para o Presídio Tiradentes, onde teve de conviver com presos políticos de esquerda. Estava entre os detentos contados num mutirão do Judiciário destinado a avaliar o cumprimento de penas no final de 1971. Só seria solto definitivamente em janeiro de 1972, depois de cumprir, em regime fechado, mais de três anos de cadeia, dois anos e quatro meses a mais do que o tempo previsto na sentença definitiva.
Aladino Félix morreu aos 68 anos, em circunstância prosaica (complicações geradas por medicamentos que havia ingerido para uma simples cirurgia de hérnia), no dia 11 de novembro de 1985, ano em que o país, já livre da ditadura, ingressava na redemocratização e ele mergulhava no ostracismo.