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Entrevista

O que está por trás do livro que Assange segurou ao ser preso?

Em entrevista à Pública, Paul Jay, autor do livro em que relata conversas com o falecido filósofo Gore Vidal, afirma que fundador do Wikileaks quis denunciar Estado de Segurança Nacional dos EUA

Entrevista
2 de maio de 2019
14:00
Este artigo tem mais de 4 ano

Quando o ativista Julian Assange foi arrastado por policiais para fora da Embaixada do Equador em Londres, em 11 de abril, pondo fim a sete anos de exílio, um fato chamou a atenção de quem assistiu à cena ao redor do mundo: o fundador do Wikileaks segurava, entre as mãos algemadas, o livro “Gore Vidal: History of The National Security State”. Trata-se de uma coleção de entrevistas do falecido romancista e ativista político norte-americano Gore Vidal. A obra, até então pouco conhecida, rapidamente se tornou um best-seller.

O livro, publicado em 2014, é uma parceria entre Gore Vidal e o jornalista Paul Jay, editor do site americano The Real News Network, conhecido por uma linha editorial progressista. Em entrevista à Agência Pública, Jay explicou a tese trazida pelo livro brandido por Assange: como a militarização dos EUA após a Segunda Guerra Mundial criou uma narrativa do medo que aponta ameaças internacionais, exigindo constante investimentos na indústria armamentista – e como o Estado americano se tornou dependente dessa narrativa.

Para Jay, “não há dúvidas de que querem pegar Assange” para mandar uma mensagem de que não se pode “ferrar” com a indústria militar norte-americana. “O que Chelsea Manning expôs e o Wikileaks divulgou foi direto no coração dessa ameaça ao Estado de Segurança Nacional. Eles não querem que o povo norte-americano saiba quão bárbaros os soldados americanos e a guerra americana são”, afirmou.

As acusações contra Assange nos EUA, que estão por trás da disputa internacional pela sua extradição, se referem justamente ao vazamento, por meio do Wikileaks, de inúmeros documentos que provam crimes de guerra praticado pelas Forças Armadas norte-americanas no Iraque e do Afeganistão.

Leia a entrevista.

Você pode resumir o conceito de Estado de Segurança Nacional dos EUA e o termo da Presidência Imperial, na visão de Gore Vidal?

Depois da Segunda Guerra Mundial os EUA emergiram como o único superpoderoso do mundo. E, em vez de reduzir o tamanho das Forças Armadas, do investimento para elas, e voltar à chamada “era de paz” os EUA se encontraram em uma posição em que poderiam, essencialmente, dominar o mundo.

O país construiu um complexo industrial militar que teve início na Primeira Guerra, mas em maior escala na Segunda Guerra. Muito da economia norte-americana foi militarizada e isso permaneceu por muitas razões. A primeira é que o gasto militar era visto como uma forma de lidar com a potencial recessão do pós-guerra. Mas, principalmente, eles viram que poderiam encontrar grande vantagens econômicas em controlar a Europa, o Japão e, até mais importante, a Ásia, a África e a América Latina. A justificativa para criar esse complexo militar era que a União Soviética representava uma ameaça e os EUA tinham que se defender. Eles chamam de Departamento de Defesa, mas um dos argumentos de Gore é poderia se chamar Departamento de Ataque. Isso porque a postura militar buscava uma hegemonia global e não a defesa.

É muito claro que toda a ideia de que a União Soviética era uma ameaça militar era bobagem. Mas isso ajudou a justificar gastos massivos na construção do arsenal nuclear dos EUA e de todo o complexo militar. Então o argumento de Gore é como esse Estado Nacional de Segurança se tornou uma parte predominante tanto da economia quanto do Estado. E para justificá-lo, eles precisam continuar tendo ameaças.

O fundamental aqui é que a questão é ganhar dinheiro e não defender o povo americano. É taxar e extorquir o povo norte-americano a pagar por tudo isso. Porque isso dá vantagens comerciais para corporações norte-americanas e quantidades enormes de dinheiro para as indústrias dos EUA. E isso defende interesses estratégicos, como petróleo no Oriente Médio ou na Venezuela. A questão é a oligarquia dos Estados Unidos mantendo sua posição como a mais rica e poderosa oligarquia do mundo. Essa é a principal função do Estado Nacional de Segurança.

Você acredita que, com a eleição de Trump, esse Estado Nacional de Segurança, um estado de exceção criado pelo medo como ideologia, foi aprofundado?

Acredito que está em uma posição mais agressiva e desafiada. Isso porque os EUA não são mais, realmente, o único grande poder do mundo.

Hoje não sei se o Estado Nacional de Segurança está mais profundo agora, só está lidando com uma situação na qual, especialmente a China tem uma economia que está se tornando próxima do tamanho da economia dos EUA. De acordo com analistas militares dos EUA, as Forças Armadas Chinesas estão alcançando as estadunidenses. Talvez seja verdade. Acredito que a China tem um poder regional. Regionalmente a China já está a par do que os EUA podem fazer com forças convencionais na Ásia.

Então não acho que o Estado de Segurança Nacional está aprofundado, está apenas lidando com uma nova situação. Ele está muito poderoso. A proposta de orçamento do Pentágono era menor do que o orçamento destinado pelo próprio Trump e pelo Congresso para a área. Eles estão construindo toda uma nova geração de armas nucleares, têm porta-aviões que custam 14 bilhões de dólares cada. A única razão de ter esses porta-aviões é projetar poder. Não tem nada defensivo em um porta-avião.

A maior parte das indústrias militares garante que produzam armas em todos os estados dos Estados Unidos de forma com que todos os estados tenham empregos dependentes disso. Então quando você fala sobre cortes no orçamento militar, todos os estados, em teoria, perderiam empregos.

O mais perigoso disso no momento é que eles precisam do “quase-guerra”. Eles gostam de “quase-guerra” no Oriente Médio, e no momento o alvo principal é o Irã. E quanto mais perigoso fica mais armamentos os estadunidenses compram, mais armamentos os sauditas compram, os israelenses, os egípcios… Os militares de todo o mundo vão à loucura.

Você acredita que a própria perseguição ao Assange e ao Wikileaks são consequências desse Estado Nacional de Segurança?

Com certeza. O ponto sobre as guerras norte-americanas, o pior pelo menos, é que a maior parte delas cometem crimes de guerra. A guerra do Iraque, do Vietnã, ambas foram crimes de guerra por si sós, apenas por terem sido conduzidas. Não foram guerras defensivas. De acordo com a ONU, a única guerra legítima é quando você está em ameaça iminente de ser atacado. Nenhuma das guerras americanas desde a Segunda Guerra Mundial aconteceram porque os EUA estavam sob ameaça de ataque iminente. Então foi uma guerra ilegal atrás de outra. A cultura das Forças Armadas estadunidenses é ser super-ultra-agressiva. E tudo isso depende do segredo. O povo americano claramente se opôs à Guerra do Vietnã, e quando ouviu as histórias das atrocidades, isso inflamou a opinião pública.

O que Chelsea Manning expôs e o Wikileaks divulgou foi direto no coração dessa ameaça ao Estado de Segurança Nacional, porque eles não querem que o povo norte-americano saiba quão bárbaros são os soldados americanos e a guerra americana. Então o Estado de Segurança Nacional dos EUA não quer apenas evitar que [esse vazamento] aconteça de novo. Realmente quer mandar uma mensagem de que não se pode ferrar com eles. Não há dúvidas de que querem pegar Assange para provar esse ponto.

Ele está sendo acusado pelo que fez com Chelsea Manning. E neste ponto, como um jornalista, e pensando no trabalho jornalístico do Wikileaks, havia uma obrigação de expor os crimes de guerra. E toda essa bobagem sobre documentos classificados e como isso prejudicou os EUA… Não, os crimes de guerra feriram os EUA! Os crimes de guerra em nome do povo norte-americano feriram a América. A única diferença é que o Pentágono alega que Julian ajudou Chelsea a conseguir os documentos, e isso o fez um pouco mais proativo do que só receber a informação. É bobagem. A questão fundamental é que eles expuseram crimes de guerra e muitos jornalistas fazem muitas coisas para conseguir seus furos.

Quando foi retirado do embaixada, Juliana Assange segurava o livro “Gore Vidal: History of The National Security State”

 

Como jornalista e editor-chefe de um veículo jornalístico independente, você acredita que a prisão de Assange é uma ameaça à liberdade de imprensa?

É definitivamente uma ameaça para delatores. Houve mais prisões de delatores durante o governo de Obama, então isso é uma política real do Estado de Segurança Nacional: assustar os delatores. Para os jornalistas, sim e não. É certamente uma mensagem de que se você ajudar a fonte de alguma forma eles irão contra você. Mas eles não foram atrás de nenhum dos jornais que trabalharam com o Wikileaks, o que incluiu o New York Times, o Washington Post, jornais na Alemanha, no Brasil e em todas as partes do mundo que foram parceiros do Wikileaks. Nenhum deles foi denunciado porque eles não podem provar que qualquer um desses jornais ajudou Chelsea. Então ainda não está claro. Mas isso fará com que as pessoas que fazem essas decisões nesses veículos deem um tempo [nas publicações do tipo].

O grande perigo aqui não é a prisão de Assange, apesar de ser uma mensagem para delatores.

Qual a relação entre o conceito do Estado de Segurança Nacional e as pessoas que acreditam que os EUA são a maior democracia do mundo e que, portanto, teria o dever de “levar democracia” para o resto do mundo?

Essa é toda a mitologia. Gore Vidal foi o melhor ideólogo nesse sentido, ele chama os EUA de Estados Unidos da Amnésia. Não há memória histórica na cultura de massas aqui. Quando o Vietnã foi realmente exposto e as pessoas entenderam o quão agressivo e sem princípios essa guerra foi, com o passar dos anos, as pessoas esqueceram sobre, porque a mídia corporativa não fala sobre. O mesmo com a Guerra do Iraque. As pessoas descobriram quão bárbara foi essa guerra, mas com o passar dos anos, até o Obama, que supostamente era contra essa guerra, passou a defendê-la. A liderança do Partido Democrata hoje está tão ligada ao Estado de Segurança Nacional quanto os republicanos. Eles sempre têm que trazer essa mitologia de volta, de que os EUA trazem democracia para o mundo. Se você vive na Ásia, na África ou na América Latina, você pensa que os EUA trazem ditaduras para o mundo. Mas os americanos não vivem lá, eles entendem o mundo pela mídia, por Hollywood, que na sua maioria está alinhado com esse Estado. Se você quer produzir um filme de guerra a única forma de conseguir navios e aeronaves é pelo Pentágono. E eles têm que autorizar o roteiro.

Em algumas entrevista você disse que não sabia que Julian estava lendo seu livro, mas que acredita que ele escolheu segurá-lo durante o momento de sua prisão para passar uma mensagem.

Considerando que ele teve muito tempo para pensar no dia que seria preso e que nos três dias antes de sua prisão estava bem óbvio que estava para acontecer, eu não acho que ele apenas pegou algo para ler. Ele fez um esforço de mostrar para todos enquanto ele estava algemado. Ele está dizendo ao mundo que o Estado de Segurança Nacional norte-americano está chegando nele, e isso porque ele expôs seus segredos.

Mudando o foco para o Brasil. Bolsonaro foi eleito com um discurso patriótico, focado na segurança. Você acredita que os conceitos trazidos em seu livro podem ser aplicados à atual conjuntura política brasileira?

O modelo da narrativa norte-americana, a narrativa do Estado de Segurança Nacional é facilmente exportado e adaptado. Não é novo o que está acontecendo no Brasil. A ditadura militar de direita com o passar dos anos sempre se baseava na ideia de que havia uma ameaça comunista, de que tinham que prender comunistas porque a União Soviética estava vindo. A mesma histeria para justificar o que é essencialmente uma forma fascista de governar, não é novo. E muito foi orquestrado pelo Estado de Segurança Nacional norte-americano. Então o que está acontecendo no Brasil, o que os estadunidenses gostariam de fazer na Venezuela, o que eles parecem estar tendo certo sucesso no Equador, é o velho guia, você usa uma ameaça externa para criar uma histeria de segurança nacional e então cria um Estado fascista.

Acho que muito do que está acontecendo no Brasil e na América Latina no geral, é que querem chutar a China para fora do continente. Se você quer entender a política externa norte-americana, muito tem a ver com a China. Quando o Secretário de Defesa foi ao Congresso defender o novo orçamento militar, ele disse que há três palavras para explicá-lo: China, China e China.

Você tem alguma ideia do que acontecerá com Assange? Acredita que os EUA realmente vão se esforçar para levá-lo à julgamento em seu território?

Acho que o governo Trump e o Estado de Segurança Nacional gostariam de trazê-lo para cá, fazê-lo de exemplo, jogá-lo na cadeia e jogar a chave fora. Mas a acusação atual não é séria, então teriam que mudá-la. Mas eu acredito que eles não querem um julgamento público. Talvez os norte-americanos prefeririam deixar esse processo de extradição demorar, e deixá-lo sentado em uma cadeia britânica por muito tempo. Porque se ele subir ao Tribunal para testemunhar isso será manchete por dias a fio. E ele denunciaria justamente o Estado de Segurança Nacional. Ele é muito articulado, não acho que queiram que ele testemunhe.

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