Em pé e sem camisa, Adriano Diogo Cordova, de 21 anos, ajeita o boné na cabeça, cruza os braços sobre o peito e fala sem medo. “Quando você entra, você vai descendo para a galeria onde fica o presídio e tudo vai ficando feio e muito escuro. Tudo lá é subterrâneo. Você desce assim e vai ficando tudo abafado. Aí você começa a respirar diferente. É como respirar em um lugar úmido, fechado. É muito desumano”, conta.
Em meio ao surto de coronavírus, Adriano ficou mais de dois meses detido na unidade prisional Ary Franco, localizada em Água Santa, na zona norte da capital fluminense. Por conta da pandemia, desde março as visitas foram suspensas em todos os presídios do Rio de Janeiro e o processamento da ordem de soltura de Adriano atrasou um mês a mais do que deveria.
Ao lado da casa de um andar que divide com a mãe, esposa, o filho de 4 anos e os cinco irmãos em São Gonçalo, município da Grande Rio de Janeiro, Adriano relembra o dia em que foi preso. Preso em flagrante pela Polícia Militar no dia 23 de janeiro por tráfico de drogas, Adriano alega ter sido vítima de uma injustiça. Segundo ele, caminhava perto de uma boca de fumo onde acabara de acontecer uma troca de tiros entre policiais e civis quando foi parado. “Eu estava só indo para a casa da minha tia. Os policiais me abordaram e eu fui muito agredido. Praticamente me torturaram porque queriam que eu falasse que eu era da boca de fumo, mas eu não era.” Um laudo médico solicitado pelo Tribunal de Justiça do Rio confirma que havia “vestígios de lesão” no corpo de Adriano. Uma declaração feita por dois policiais militares diz que Adriano carregava “43 unidades de material assemelhado a de cocaína”, mas o acusado alega que a droga foi atribuída falsamente ao seu nome. Os policiais ainda declararam que Adriano disse “fazer parte do tráfico de drogas local” e estar “na função da atividade”. Em audiência de custódia se decidiu que “estão presentes elementos suficientes” para Adriano permanecer em prisão preventiva e se citou como motivo o fato de ele ter sido preso “em localidade já conhecida pelo tráfico de drogas”, bem como a “grande quantidade de cocaína” supostamente portada por ele. Adriano foi levado então para a unidade prisional Ary Franco.
O presídio é composto por oito galerias que, identificadas por letras, abrigam dezenas de celas, a maioria subterrânea e acessível apenas por corredores estreitos e um labirinto de escadas. Em 2011 o Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT) das Nações Unidas visitou o presídio e recomendou “o fechamento imediato” após ter concluído que “a detenção naquelas condições equivalia a tratamento desumano e degradante”. Recentemente, em 2018, a Defensoria Pública do Rio voltou a pedir o fechamento do presídio. A unidade prisional tem capacidade para 968 internos, mas, pela contagem do dia 11 de maio, abrigava mais de 1.700 presos em um ambiente que lembra um calabouço, excedendo em 79% a sua capacidade de ocupação.
“[Ary Franco] é sem dúvida nenhuma a pior unidade prisional do Rio de Janeiro”, diz a pesquisadora Alexandra Sánchez, do Grupo de Pesquisa Saúde nas Prisões, da Fiocruz. “É uma masmorra do século passado, da Idade Média. Ele é um presídio em vários níveis, com celas subterrâneas, sem janela, sem luz e sem ventilação. Nenhuma outra unidade no Rio de Janeiro tem essas características”, conclui Alexandra. A pesquisadora acrescenta que um ambiente subterrâneo com pouca ventilação, sem luz e com muita humidade é local propício para a propagação de doenças como a Covid-19. “Lá qualquer doença infectocontagiosa vai proliferar mais rapidamente pelas condições que são ainda piores que nas outras unidades”, completa.
Enquanto a crise da Covid-19 se espalhava pelo mundo, Adriano ficou sabendo do vírus pela televisão do presídio. “Nós ficamos nervosos. Porque todo mundo falou que pega pelo ar, e ainda mais lá que nós estamos todos juntos e tem mais de cem em uma cela pequena”, relata. “Na galeria F [na cela ao lado] já tinha uns três que estavam com suspeita de estar com coronavírus. Eu fiquei sabendo disso porque os funcionários mesmo falavam”, diz.
Procurada, a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) não respondeu à reportagem sobre a existência de casos de coronavírus na unidade Ary Franco. Até 1o de maio, a Seap contabilizava apenas quatro casos confirmados de coronavírus em todo o sistema prisional fluminense. A Defensoria Pública do Rio, especialistas de saúde carcerária e um funcionário do sistema prisional relataram à Agência Pública que a falta de estrutura e medidas práticas para conter a expansão do vírus em um ambiente superlotado fazem da Ary Franco uma bomba-relógio, ameaçando o colapso do sistema a qualquer momento.
Medidas de contenção “pra inglês ver”
“Esse vírus entrando no sistema penitenciário tem dimensões catastróficas”, diz Gutemberg de Oliveira, presidente do Sindicato dos Inspetores Penitenciários do Estado do Rio. “Imagina uma unidade com 2 mil presos, esse espaço infectado e contaminado, a carga viral é muito mais alta. Se tiver alguém ali com um problema de saúde, ele vai ser atacado pelo vírus”, alerta. Oliveira já trabalhou diretamente com presos em diversas unidades do estado nos seus mais de 25 anos de experiência. “Na semana passada [Ary Franco] em Água Santa, tinha 2 mil presos para cinco servidores”, diz Oliveira. “O sistema já está colapsado. Cinco ou seis servidores não dão conta de todos os serviços. O Estado ali não cumpre o seu dever total de vigilância. Agora, com coronavírus, não dá. Ali é um jogo de faz de conta”, critica.
Em 2018, a Defensoria Pública realizou uma visita para fiscalizar o presídio e relatou que os servidores da unidade prisional enfrentam um “acúmulo de funções, sobrecarga e desgaste, inclusive emocional”.
O defensor público Ricardo André de Souza alerta que o sistema prisional fluminense não está preparado para lidar com uma pandemia das proporções da Covid-19. “Em três anos [entre 2013 e 2016], a população carcerária cresceu o dobro do que cresceu na década anterior”, explica Souza. “Esse crescimento não foi acompanhado de um aumento compatível de agentes penitenciários e muito menos de profissionais de saúde. Aí você tem uma doença altamente contagiosa já entrando no sistema e a completa impossibilidade de controlar a disseminação de um vírus dentro de um sistema com o efetivo carcerário que se tem hoje.”
Agora, no auge do surto de coronavírus, Oliveira faz rondas nas prisões para monitorar o impacto que a pandemia tem sobre os funcionários. “Não tem medida específica nenhuma para o coronavírus. A exposição do servidor é cada dia maior e, consequentemente, da massa carcerária também”, revela.
A reportagem teve acesso a um relatório das ações da Seap na prevenção e no combate à Covid-19. O documento cita, entre as medidas preventivas, a distribuição de máscaras, luvas, álcool em gel e sabonete líquido para os “aproximadamente 400 mil servidores” que trabalham nas diversas unidades prisionais, além da solicitação à Secretaria de Estado de Saúde de “teste rápido para a Covid-19 e ventiladores mecânicos”, pedido realizado somente em meados de abril. O relatório diz ainda que detentos que ingressam no sistema são “encaminhados às Unidades prisionais para isolamento social” a fim de conter a propagação do coronavírus.
“O isolamento que eles fazem é colocar todo mundo na mesma cela. Quem está [com suspeita de Covid-19] com quem não está. Só para dizer que estão fazendo alguma coisa e acalmar o ambiente”, contesta Oliveira. “Ali não tem nada profilático. Eles estão em um ambiente fechado, uma caixa hermética, mas que não é isolada porque o funcionário vai lá, os outros presos que fazem a faxina vão lá também, ou eles saem para pegar comida. Então, é pra inglês ver, né?”
Alexandra Sánchez, da Fiocruz, também vê um problema no isolamento dos presos proposto pela Seap. “Eles estão deixando de quarentena os presos que ingressam no sistema por 15 dias. Só que nesta cela não há uma separação entre quem tem sintomas e quem não tem sintomas. Em vez de evitar a contaminação, você vai multiplicando a transmissão”, explica.
“Vai ter contágio e vai ter subnotificação de casos”
Um estudo do Grupo de Pesquisa Saúde nas Prisões, da Fiocruz, ainda inédito, revela que a taxa de mortalidade entre presos no Rio de Janeiro é cinco vezes maior que a média nacional. O estudo indica que 83% dessas mortes decorrem de doenças que poderiam ter sido evitadas se tratadas conforme boas práticas clínicas. “Para o enfrentamento do coronavírus nós temos basicamente três problemas: superlotação, a falta de assistência de saúde para acompanhar os casos de suspeitas e proteção dos presos em grupos de risco e a dificuldade de acesso a água, que seria a medida básica para prevenção na questão da lavagem das mãos”, explica a coordenadora do estudo, Alexandra Sánchez.
A pesquisadora afirma que o risco de contágio é maior em ambientes confinados como o de Ary Franco.“Em vez de duas a três, deve ser cinco a dez o número de pessoas contaminadas a partir de um caso”, diz. “Então, em um período de 15 dias, você vai ter 90 casos, e esses 90 vão contaminar outros cinco a dez. Isso vai levar a uma multiplicação de casos absurda”, explica.
Segundo levantamento feito pela Folha de S.Paulo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), foram contabilizados até o dia 5 de maio 239 detentos infectados e 13 óbitos pelo coronavírus no sistema carcerário brasileiro. O Rio teve o primeiro óbito pela doença reconhecido oficialmente em 15 de abril.
Natália Damazio, do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT-RJ), diz que é necessário atuar imediatamente para proteger os mais vulneráveis. “A gente está falando de um sistema muito superlotado. Então a medida prioritária que a gente indica como contenção de óbitos para coronavírus no sistema é a garantia de prisão domiciliar para os presos em grupos de risco”, diz.
Enquanto isso, Oliveira, que monitora diariamente o sistema pelo Sindicato dos Inspetores Penitenciários, avalia que o quadro é pior do que se imagina. “Vai ter contaminação. Vai ter contágio e vai ter subnotificação de casos. Nós vamos ter milhões de subnotificações [no Brasil] porque não tem exame para todo mundo. Não tem nem para funcionário [na prisão]. Você acha que o governo vai fazer exame de preso, podendo fazer exame de cidadão?”, pergunta.
Dentro do presídio, Adriano viu de perto o tratamento clínico dispensado aos detentos. “Não testavam ninguém, não tinha nem negócio pra fazer exame de sangue lá.” Os três presos com suspeita de coronavírus na galeria F “só foram isolados depois de duas, três semanas indo e vindo da enfermaria”, conta Adriano. “Eles chegavam lá e não tinha ninguém pra atender, aí voltava para a cela de novo”, diz. “Lá eles falam que ir para enfermaria é só em último caso, só quase em caso de morte”, revela.
Para o defensor público Ricardo André de Souza, que cuidou do caso de Adriano, a solução é o esvaziamento do presídio. “Você tem uma realidade nacional – e no Rio de Janeiro não é diferente – de abuso sistemático do uso da prisão preventiva. Por qualquer coisa o sujeito fica preso”, diz o defensor. “A medida que pode ser adotada para mitigar o problema é o esvaziamento. É a liberação e antecipação de saída das pessoas.” Preso um mês a mais do que deveria, o caso de Adriano chegou a juízo em 28 de fevereiro, quando foi determinado que poderia responder ao processo em liberdade. Souza explica a razão do atraso. Segundo o defensor, Adriano tinha sido preso quando era menor de idade e carregava ainda em seu nome uma pendência relacionada a esse processo, mas o prejuízo deveria ter sido esclarecido em no máximo três dias. “Essa questão da pandemia gerou uma confusão no funcionamento do Poder Judiciário, e esse rapaz ficou preso quase um mês além da ordem de soltura. A gente tem outras situações aqui também análogas à desse rapaz”, diz o defensor.