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Reportagem

Jornalistas arriscam a vida na crise do coronavírus em meio a demissões, cortes de salário e agressões do presidente

Enquanto presidente manda os jornalistas calarem a boca, pelo menos quatro profissionais já morreram durante a cobertura e muitos estão contaminados

Reportagem
11 de maio de 2020
12:00
Este artigo tem mais de 4 ano

“Cala a boca, não perguntei nada!”, esbravejou o presidente Jair Bolsonaro a uma repórter do jornal O Estado de S. Paulo, o Estadão, na manhã da terça-feira (5). Para muitos, a atitude foi uma das cenas mais violentas propagadas por um chefe de Estado contra profissionais de imprensa no Brasil desde a ditadura militar.

O ataque ocorreu dois dias após apoiadores do governo terem agredido e ameaçado jornalistas em um ato realizado em frente ao Palácio do Planalto, no domingo (3), data que celebra o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Na ocasião, o fotojornalista Dida Sampaio, funcionário do Estadão, foi derrubado por um grupo de manifestantes por duas vezes, chutado pelas costas e socado no estômago. Marcos Pereira, motorista do jornal, também foi agredido no mesmo dia, assim como outros profissionais da imprensa, funcionários do jornal Folha de S.Paulo e do site Poder360. No dia anterior, o cinegrafista da TV Record Robson Willian da Silva já havia sido agredido por manifestantes bolsonaristas, em frente à sede da Polícia Federal em Curitiba.

Funcionários de afiliada da TV Record são atacados por apoiadores de Bolsonaro durante depoimento de Sergio Moro em Curitiba

Os episódios de violência geraram campanhas de entidades e sindicatos, além de editoriais pedindo respeito aos profissionais da imprensa, essenciais na cobertura da atual crise da Covid-19. Mas as violações dos direitos da categoria durante a pandemia não se resumem às perseguições por Bolsonaro e seu séquito. No front da batalha contra a desinformação, jornalistas, cinegrafistas e radialistas enfrentam condições de trabalho difíceis, ditadas pelo risco de contágio e pelo isolamento social e, ainda, suspensões de contratos e cortes de salário em todo o Brasil.

Pelo menos quatro profissionais da imprensa já morreram por causa do coronavírus. Na sede do SBT do Rio de Janeiro, o editor de imagens José Augusto Nascimento faleceu no dia 13 de abril e o operador de câmera Robson Thiago Mesquita, na terça-feira seguinte (21). A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) estima que, dos 75 profissionais que trabalham na emissora no Rio, pelo menos metade está infectada.

A Covid-19 vitimou também um dos jornalistas mais conhecidos do Maranhão, Roberto Fernandes, de 61 anos, funcionário da TV Mirante, afiliada da Rede Globo, no dia 22 de abril. Ele atuava como comentarista de política do jornal Bom dia Mirante e comandava, há duas décadas, o programa Ponto Final, da Rádio Mirante AM.

No dia 30 de abril, o radialista Luiz Marcello de Menezes Bittencourt foi vítima da doença. Ele trabalhava havia 35 anos na Rádio USP, onde produzia o programa semanal Biblioteca Sonora, falando sobre livros e escritores. No dia 17 de março Bittencourt passou mal na rádio, sentindo cansaço e respiração pesada, e foi levado ao Hospital Universitário da própria Universidade de São Paulo. Quando seu quadro piorou, foi transferido para o Hospital das Clínicas, onde faleceu, aos 68 anos.

A linha de frente da informação

“Confesso que a ficha ainda não caiu, como eu vou fazer sem você? E a nossa princesinha? Quem vai cuidar da gente?”, escreveu a manicure Brunna Santos, em uma rede social. Ela era companheira do operador de câmera do SBT Robson Thiago Mesquita, conhecido pelo apelido Tio Chico, que morreu no dia 21 de abril.

Operador de Câmera da sede do SBT no Rio de Janeiro morreu, vítima da Covid-19

Aos 36 anos, Mesquita e Brunna tinham acabado de ter uma filha, Valentina, a quem ele não chegou a conhecer, de acordo com uma postagem da esposa. “Reage logo e saia dessa cama, Valentina não vê a hora de conhecer o papaizinho dela. Volta logo, amor”, diz um post no Instagram feito por Brunna no dia do aniversário do marido, dez dias antes de seu falecimento. Mesquita trabalhava também como motorista de aplicativo nas horas extras, e, em suas redes sociais, pedia que as pessoas ficassem em casa durante a pandemia.

Em nota, o SBT afirmou que Mesquita era “suspeito de ser vítima do Covid-19”, apesar de a família e a empresa já terem recebido a confirmação do teste positivo do operador de câmera. A empresa destacou também estar cumprindo todas as recomendações da organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde em suas dependências e prestando “toda a assistência à família”.

Os fatos que antecederam a morte de Mesquita, porém, vão no sentido inverso do alegado cuidado com os funcionários. Ele trabalhava no telejornal SBT Rio, com a apresentadora Isabele Benito, apontada como primeira pessoa da sede carioca a contrair a Covid-19. O marido da apresentadora já tinha sintomas da doença desde o dia 21 de março, mas ela demorou uma semana para se afastar do programa. No caso da primeira morte registrada no SBT Rio, do editor de imagens José Augusto Nascimento, o próprio funcionário pediu o afastamento da empresa após Isabele ter informado a empresa sobre seu marido. Hipertenso, ele teve o pedido negado por ter menos de 60 anos. Só no dia 1o de abril, quando já tinha sintomas, Nascimento conseguiu ser afastado com um atestado médico. Em áudio enviado aos colegas quando já estava em casa, ele disse que o SBT é o “epicentro do coronavírus na cidade do Rio de Janeiro”.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) abriu uma sindicância para apurar a situação na empresa. A reportagem solicitou ao órgão uma entrevista com a procuradora responsável pelo caso, Luciene Vasconcelos, que, por meio da assessoria de imprensa, comunicou que ainda está ouvindo as partes e, por isso, não iria se manifestar no momento. Desde o início da pandemia, o MPT recebeu 9.077 denúncias de violações trabalhistas relacionadas ao novo coronavírus. O número representa a metade do total de denúncias recebidas pelo órgão neste período, que somam 18.422.

Na TV Jangadeiro, a afiliada do SBT com sede em Fortaleza, no Ceará, pelo menos 12 pessoas já foram infectadas, de acordo com o presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, Rafael Mesquita. Segundo ele, a emissora não teria tomado as medidas de segurança estabelecidas pelos órgãos de saúde.

Mesquita contou ainda que o sindicato recebeu denúncias de que pessoas contaminadas estariam indo trabalhar. Além disso, assim como no SBT Rio, apenas os profissionais com mais de 60 anos foram dispensados; os que têm outras comorbidades do grupo de risco continuam trabalhando normalmente na redação de acordo com ele. A reportagem ligou diversas vezes para a emissora, mas não conseguiu contato.

Na Record TV, conforme denúncias que chegam ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, ao menos seis pessoas contaminadas com coronavírus estariam trabalhando normalmente mesmo depois de a empresa ter sido comunicada sobre os fatos. Há informações de que a emissora não afastou imediatamente para quarentena os jornalistas que tiveram contato próximo e recente com pessoas infectadas. No dia 16 de abril, o sindicato denunciou a empresa ao MPT, uma vez que ela nem sequer informou quais as medidas de combate ao coronavírus estão sendo adotadas.

Em nota enviada por email, a Comunicação da Record TV destacou que, neste momento, a empresa tem, em São Paulo, mais de 1.800 funcionários em home office, em férias, ou afastados por pertencerem a grupos de risco. “Por razões óbvias, aqueles que apresentarem suspeita ou forem confirmados com coronavírus são também colocados em licença, assim como as pessoas com as quais trabalhava. Os colaboradores só retornam ao trabalho após o resultado definitivo dos exames e da alta médica”, afirma a empresa. A Record TV afirmou que desde 22 de abril, o uso de máscaras passou a ser obrigatório nas dependências da emissora.

Globo obriga repórteres a usarem máscaras em frente às câmaras

A Agência Pública foi informada por uma fonte da Promotoria do Trabalho que uma denúncia chegou ao MPT do Rio de Janeiro de que haveria 19 profissionais da Globo Rio infectados.

A Comunicação da Globo informou à reportagem que 39 jornalistas da empresa – no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, Recife e Brasília – contraíram a doença. “A maioria com quadro leve, nenhum em estado grave. Esses números são divulgados diariamente a todos os jornalistas”, acrescentou. A empresa afirmou ainda que, auxiliada por infectologistas, tomou medidas para mitigar os efeitos da pandemia entre os seus funcionários, e a maior parte deles encontra-se em home office. Entre os que trabalham nas redações, o distanciamento entre postos de trabalho segue o recomendado pelas autoridades sanitárias, segundo a emissora.

Na RedeTV, o bolsonarista Sikêra Jr., apresentador do programa Alerta Nacional, que manifestava sintomas do novo coronavírus, mas se recusava a fazer o teste, passou mal ao vivo, no programa do dia 22 de abril. Na gravação do programa é possível ver o apresentador se despedindo e tocando os funcionários aglomerados no estúdio da TV A Crítica, em Manaus, onde o programa é realizado, que vive momento crítico na pandemia, com o sistema de saúde em colapso. No dia 28 de abril, Sikêra Jr. recebeu o diagnóstico positivo para o vírus.

Apresentador bolsonarista Sikêra Jr deixa programa ao vivo com sintomas da Covid-19 e insiste em se despedir de demais funcionários do programa

“A impressão é que você está em uma guerra”

Repórter fotográfico no Estadão há 18 anos e fotógrafo há 24, Tiago Queiroz, de 43 anos, diz que a cobertura da pandemia do novo coronavírus será um divisor de águas na sua vida: “Vai ser um antes e depois do coronavírus”. A experiência do fotojornalista abarca também uma editoria de tragédias. Ele já cobriu o acidente do voo TAM 3054, de 2007, o rompimento da barragem da Samarco S.A. em Mariana, em 2015, e o aniversário de um ano do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. Para ele, no entanto, a cobertura da pandemia está em um patamar diferente.

“É a cobertura de maior duração que já participei, e não tem data para acabar. Acho que isso, para a imprensa no geral, não terá nada desse parâmetro”, afirma Queiroz. Ele chegou a cobrir a pandemia por quase dois meses, até se afastar por estar, ele próprio, com suspeita da Covid-19. Em casa há uma semana, aguardando o resultado do teste, com sintomas como dor de cabeça, falta de ar e tosse, o jornalista ressalta que está melhorando, mas a cobertura deixará outros tipos de marcas.

“É uma cobertura mais letal e mais perversa. Não é uma manifestação, que você começa a perceber a hora em que os ânimos estão mais à flor da pele. A impressão que dá é que você está no meio de uma guerra, mas sem explosão, bomba, e com um inimigo invisível. Isso vai minando um pouco as suas forças”, explica.

Queiroz fotografou ruas desertas devido à quarentena, o Hospital de Campanha montado no Anhembi, pacientes de hospitais como Emílio Ribas e São Luiz e o Cemitério da Vila Formosa, todos em São Paulo. Mesmo utilizando equipamento de proteção disponibilizado pelo Estadão, ele sabia que a possibilidade de se infectar frequentando espaços tão arriscados era alta. “O fotojornalismo envolve mais risco, estamos sempre mais perto. Quando eu entrava nos hospitais, dava um frio na barriga. Mas meu maior medo era olhar para trás e pensar que o medo havia me paralisado a ponto e não fazer meu trabalho”, diz.

Os sintomas do fotojornalista começaram a aparecer no dia em que fez a cobertura que considerou mais marcante durante a pandemia. Ele visitou e fotografou um paciente idoso durante a passagem de um grupo musical pelo Hospital São Luiz. Com saudade da esposa, o paciente, de 77 anos, pediu a música “Esperando na Janela”, na voz de Gilberto Gil. Impactado e emocionado com a cobertura, Queiroz começou a adoecer na mesma tarde e deu início ao repouso no dia seguinte.

Bolsonaro manda jornalista “calar a boca” durante coletiva de imprensa

Redução de salário e sobrecarga de trabalho

Robson Shimizu é editor de imagens há 12 anos na TV Diário, afiliada da Globo na região do Alto Tietê, interior de São Paulo. Dirigente do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão no Estado de São Paulo, que se opõe à Medida Provisória (MP) 936, de 1º de abril, que institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, apresentando medidas trabalhistas alternativas durante a crise do novo coronavírus, ele confessa que se viu obrigado a assinar o contrato individual proposto pela empresa, reduzindo seu salário em 25%, com base na MP.

A MP prevê a redução de até 70% do salário dos funcionários, com redução paralela da jornada de trabalho, por até três meses. No caso de reduções de 25% dos salários, que estão sendo praticadas pela maioria das empresas jornalísticas, todos os trabalhadores podem ser intimados por acordos individuais, independentemente da faixa salarial. Se o corte for maior, trabalhadores que ganham mais de R$ 3 mil precisam ter o contrato aprovado coletivamente, via sindicatos.

Paulo Zocchi, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, acredita que a medida é inconstitucional, uma vez que a Constituição brasileira prevê que o salário é irredutível salvo realização de acordo coletivo. “É uma medida nefasta.” A MP, no entanto, foi considerada constitucional pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 17 de abril.

Para Shimizu, o corte impactará diretamente a sua moradia e a criação de seu filho de 15 anos. “Os salários no interior de São Paulo são bem menores do que na capital. Tenho que ver como vou pagar as dívidas do meu aluguel e a pensão do meu filho, porque já não sobra muito dinheiro normalmente”, conta.

O editor de imagens afirma que assinou o contrato porque os demais funcionários da TV Diário também o fizeram, individualmente. “Não dá pra fazer linha de frente sozinho. Se você vai trabalhar contra o sistema, ele vem em dobro contra você”, afirmou. Shimizu diz que o acordo foi imposto de um dia para o outro pela empresa, sem tempo para que os trabalhadores fizessem assembleia. “Passaram com um trator em cima dos trabalhadores com essa MP. Não teve jeito.”

Mesmo com a “estabilidade” de poucos meses garantida pela MP, o dirigente sindical teme que, caso a produtividade continue mesmo com as jornadas reduzidas, haja um “passaralho” – termo utilizado tradicionalmente por jornalistas para se referir a demissões – no final do ano.

Em resposta à Pública, a TV Diário frisou que obedeceu aos critérios autorizados pela MP, que dispensavam a necessidade de qualquer negociação prévia coletiva, defendeu que as medidas foram adotadas visando, primordialmente, à “preservação dos postos de trabalho” e afirmou que as medidas não podem ser observadas da mesma ótica trabalhista de antes da pandemia.

Na avaliação do presidente do Sindicato dos Jornalistas da Bahia, Moacyr Neves, as empresas estão aproveitando o momento para precarizar mais ainda as relações. Ele contou que o jornal Correio, da Bahia, dois dias após a publicação da MP 936/2020, fez um comunicado interno informando a redução salarial de 25%. Nem sequer respeitou o prazo de 48 horas prevista na MP para que os jornalistas analisassem e respondessem à proposta de redução.

Em relação à redução de salário dos profissionais, o grupo Sistema de Liberdade de Comunicação, que administra seis rádios no Ceará, cortou o máximo de despesas permitidas pela MP de Bolsonaro: comunicou ao sindicato corte de 70% dos salários de seus funcionários.

A editora Globo propôs a redução de 25% dos salários dos jornalistas, assim como a Folha de S.Paulo, que segurou a medida algumas semanas mais que os demais veículos, mas acabou anunciando, nesta semana, que seguirá a MP a partir de junho. Ainda haverá uma assembleia dos trabalhadores do jornal para discutir a medida. Já a Band vai reduzir os vencimentos de todos os profissionais que prestam serviço como pessoa jurídica – que são os apresentadores de telejornais, repórteres e profissionais de microfone do departamento de esportes.

Jornalistas salvam vidas

Jornalistas de São Paulo lançaram o manifesto #JornalistasSalvamVidas, contra a precarização, “no momento em que a população brasileira mais precisa de informação de qualidade sobre a pandemia de coronavírus e de seus efeitos”. “Reduzir horas de trabalho e salários de jornalistas significa reduzir a capacidade da sociedade de se informar adequadamente, abrindo espaço ainda maior para a disseminação de fake news”, diz o documento. “A nossa rotina nesse último mês têm sido assumir riscos de saúde e empenhar recursos próprios para manter um trabalho com a qualidade e a velocidade que a população precisa e merece”, acrescenta.

Profissionais ouvidos pela Pública disseram que o volume de trabalho aumentou consideravelmente neste período, principalmente para os jornalistas que têm trabalhado de casa, como ressalta a presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga.

Repórteres do Estadão relataram que o crescimento da carga de trabalho atinge diversas editorias, mas principalmente o núcleo de cobertura do coronavírus, criado no último mês e composto por cerca de 60 profissionais. Os jornalistas que compõem o núcleo viram sua carga horária diária, de oito horas, chegar a até 12 horas.

Há cerca de duas semanas, a empresa chegou a apresentar um aditivo no contrato que propunha o fim do controle da jornada de trabalho e, consequentemente, do banco de horas para horas extras. A medida foi a mais criticada pelos funcionários do Estadão. O descontentamento gerou uma mobilização inédita entre os funcionários do veículo, que conseguiram barrá-la em assembleia coletiva e online com cerca de 130 funcionários, na sexta-feira, 17 de abril. A empresa recuou do fim do controle da jornada de trabalho na segunda-feira (20), quando também apresentou a proposta da redução salarial.

“Foi a primeira vez na minha carreira que vi uma decisão coletiva, por meio de uma mobilização, fazer a empresa recuar”, disse uma jornalista que estava na assembleia.

Mas os trabalhadores temem rejeitar as propostas do Estadão por causa do risco de demissão. Na assembleia, de acordo com os jornalistas, ao perguntarem o que aconteceria caso dissessem não à proposta apresentada, a direção do Estadão respondeu que eles perderiam a estabilidade no trabalho.

“Na prática, todo mundo entendeu como demissão. Vejo que alguns têm medo de serem demitidos, caso discordem”, observou uma das jornalistas ouvidas pela Pública.

O Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo e os trabalhadores do Estadão ainda estão em negociação com a empresa. A reportagem enviou um email para o setor de recursos humanos do jornal, mas não obteve resposta.

O presidente Jair Bolsonaro fala à imprensa no palácio da Alvorada

Demitidos durante a pandemia

No dia 24 de abril, mais de 20 profissionais foram demitidos das redações do Grupo RBS, maior conglomerado de mídia da região Sul do Brasil e responsável pela maior afiliada da Globo, a RBS TV. Em nota enviada pela assessoria de imprensa, o Grupo RBS disse “estar sofrendo com os impactos econômicos” da crise mundial de proporções inéditas gerada pela pandemia.

Em Minas Gerais, só o jornal O Tempo, o de maior tiragem e número de funcionários do estado, dispensou 26 jornalistas, no dia 13 de abril. Outras demissões ocorreram na Record TV, em São Paulo, no jornal O Povo, no Ceará, no portal Metrópoles, em Brasília, e no Grupo Bandeirantes.

“Eu fui demitida e agora estou sem perspectiva nenhuma de arrumar emprego na área até uma retomada forte da economia. Além disso, nós perdemos o plano de saúde, que era ofertado pelo jornal, no momento de doença, e eu não tenho condições de bancar o plano. Eu moro de aluguel e ajudava a minha mãe. E agora, como vou pagar as contas? O cenário é desesperador”, desabafou Lígia*, uma das repórteres afastadas do O Tempo que estava trabalhando na cobertura do coronavírus e foi afetada pelas demissões.

“A gente sabe que o jornal não está tão ruim assim das pernas, poderia ter tentado outras alternativas para preservar os seus funcionários, ao invés de tomar uma medida tão desumana logo no início da crise”, reivindicou Érick*, também na lista do “passaralho”.

O Tempo é do empresário e prefeito de Betim, município da região metropolitana de Belo Horizonte, Vittorio Medioli (PSDB-MG). O jornal faz parte da Sempre Editora, braço de comunicação do Grupo Sada, uma companhia de logística especializada em transportar veículos de montadoras rumo a concessionárias.

O diretor executivo do jornal, Heron Guimarães, encaminhou à reportagem a mensagem enviada aos colaboradores no dia da demissão em massa. Nela, ele argumenta que a circulação caiu e diz que a publicidade “parece evaporar”.

Além disso, segundo ele, os serviços ofertados pela Sempre Editora “foram abruptamente suspensos ou cancelados” e as montadoras estão paradas.

Heranças de outras crises

A editora Abril, que já foi um dos maiores grupos de mídia do país antes de mergulhar em profunda crise há alguns anos, calcula perdas de R$ 100 milhões no faturamento de 2020 em função do Covid-19. Entre os principais problemas financeiros está a queda dos anunciantes, que também estão sendo impactados economicamente pela pandemia. Desde 2017, uma série de demissões em massa está ocorrendo no grupo e, com a pandemia, os salários de quem se manteve no emprego também vai sofrer redução de 25%.

Em situação crítica está também o jornal O Dia, do Rio de Janeiro. Segundo a diretora do Sindicato dos Jornalistas do município, Rosa Leal, o veículo cortou os vencimentos da redação antes mesmo de a MP 936 entrar em vigor. “O Dia, desde janeiro, não pagava vale-alimentação nem vale-transporte para os seus funcionários. A empresa estava descontando dos salários e não estava repassando”, relatou.

De acordo com Rosa, em março os jornalistas, além de não receberem os vales- alimentação e transporte, já tiveram o corte salarial de 25%. Segundo ela, desde então O Dia informou que a partir dali o valor do vencimento seria esse. “Ou seja, eles não estavam nem ao menos cumprindo a MP 936, porque eles não reduziram a jornada de trabalho”, denunciou.

Depois que o sindicato encaminhou um ofício protestando contra as “irregularidades” do veículo, conforme contou a diretora do sindicato, a empresa pagou os vales que estava devendo. “Mas em relação ao salário de março disseram que só vai ser ressarcido futuramente, quando a pandemia acabar. E a partir de abril, os salários vão sofrer a redução de 25%, com a jornada também reduzida em 25%”, ressaltou Rosa. O sindicato fez uma denúncia no MPT contra O Dia. Por meio de nota, o jurídico do jornal disse que “as informações prestadas pelo Sindicato não são verdadeiras”. “Em recente reunião com a entidade Sindical tudo foi esclarecido”, acrescentou. Rosa, no entanto, reafirmou as acusações, disse que o veículo está sendo “intransigente” nas negociações.

Como aconteceu no jornal O Dia, as perdas de direitos trabalhistas já vinham ocorrendo nas redações do país. No jornal mineiro Hoje em Dia, por exemplo, os repórteres, desde o ano passado, estavam recebendo salários atrasados. O Fundo de Garantia, o vale-alimentação e as horas extras também já não estavam sendo pagos. Agora, com a pandemia, os repórteres tiveram também corte de 25% nos seus salários e alguns contratos foram suspensos.

“Em abril, o salário, que deveria ser pago no quinto dia útil, caiu bem atrasado, no dia 15. Nós estamos completamente atolados de trabalho, não damos conta de fazer tudo que acontece. Além disso, estão todos apavorados, morrendo de medo de ser demitidos”, contou um repórter do veículo, que é de propriedade do ex-prefeito de Montes Claros Ruy Muniz, marido da ex-deputada federal Raquel Muniz (PSD-MG).

Medo e histeria

Desde o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro tem reclamado que a imprensa brasileira é responsável por uma “histeria” destinada a gerar pânico desnecessário no país em relação ao coronavírus. Os ataques à imprensa, que chegaram ao auge na semana passada, já eram frequentes no governo Bolsonaro.

O clima de ódio e desconfiança em relação à imprensa fez com que o Brasil caísse, pelo segundo ano consecutivo, no ranking de liberdade de imprensa divulgado no dia 21 de abril pela ONG Repórteres sem Fronteiras, passando a ocupar a 107a posição na lista de 180 Estados. Para o fotojornalista Tiago Queiroz, a profissão vive um momento difícil, “com as próprias forças do governo tentando desmoralizá-la diariamente”.

“As coisas têm que mudar, não estamos mais na ditadura para um presidente mandar os jornalistas calarem a boca”, aponta Queiroz. Ele destaca a força que a palavra de um chefe de Estado tem, “o poder para propagar uma ideia”. “Mesmo cobrindo todos os dias e lendo sobre o assunto, quando penso que posso ter sido contaminado, fico pensando às vezes ‘é só uma gripezinha’, como disse Bolsonaro. Mesmo sabendo que não é, parece que reverbera na mente.”

O dirigente sindical Robson Shimizu percebe que a violência de pessoas contra jornalistas tem aumentado conforme o presidente “fala contra a imprensa”. “O resultado é contra os trabalhadores”, lamenta.

Para além do medo da perseguição externa, ele revela que a categoria tem sido cada vez mais pressionada e ameaçada dentro das próprias empresas. “Há muitas barreiras nas emissoras para não falarmos nada, sobre a pandemia, mas também sobre questões de segurança e saúde do trabalhador. As pessoas têm medo de ser demitidas, mas estão sendo demitidas de qualquer maneira, mesmo doentes, com câncer, com problemas psicológicos”, denuncia.

Durante a apuração para esta reportagem, a Pública entrou em contato com dezenas de jornalistas, de diversos veículos de comunicação, que estão sofrendo com as questões aqui apresentadas. Mesmo propondo não identificar os entrevistados, a grande maioria dos jornalistas negou dar depoimento, argumentando o receio de represálias no ambiente de trabalho.

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*Os nomes foram modificados para preservar a identidade das fontes.

Atualização (11/05/2020 às 16h26): Anteriormente estava escrito que o operador de câmera, Robson Thiago Mesquita, faleceu na semana passada. O profissional morreu em decorrência do coronavírus no dia 21 de abril. A informação foi corrigida.

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