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Conselho Indigenista Missionário é acusado de incitar conflitos no campo em carta publicada pela Funai; "Cimi não irá responder. Não vale a pena"

Entrevista
6 de maio de 2020
14:43
Este artigo tem mais de 4 ano

“Socialista, paternalista e assistencialista” são as três palavras utilizadas, repetidas vezes, em uma carta publicada no site da Fundação Nacional do Índio (Funai) nesta segunda-feira (4), para descrever o indigenismo no Brasil até a ascensão do presidente Jair Bolsonaro.

O documento é uma resposta às críticas em relação à ausência de medidas para conter o avanço alarmante do novo coronavírus entre os povos indígenas, além de críticas voltadas à desconsideração dos direitos indígenas pelo atual governo, apresentadas por Antônio Eduardo Oliveira, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O Cimi é um organismo da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB) e um dos mais atuantes na causa indígena.

Na terça-feira (28), Oliveira havia participado da mesa virtual “Os embates necessários frente aos ataques aos direitos indígenas em tempos de isolamento”, parte da última edição do Acampamento Terra Livre, mobilização anual da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), dessa vez, realizado apenas de maneira virtual. O tom de toda a mobilização, que contou com a participação de dezenas de lideranças indígenas, foi de forte indignação e desespero em relação aos rumos das políticas indigenistas no atual governo, além do avanço da Covid-19.

A carta da Funai, no entanto, não cita a pandemia ou qualquer dado referente ao número de indígenas infectados. Ela se inicia reiterando que a “vitória” de Bolsonaro nas eleições presidenciais representou uma ruptura e rejeição do povo brasileiro ao que chama de “políticas públicas socialistas”, que de acordo com o documento, estavam sendo implantadas pelo Governo Federal desde 2003. O texto segue criticando uma “velha política indigenista” que “já causou tantas desgraças aos indígenas brasileiros” e em determinado momento acusa o Cimi de incitar conflitos no campo.

Para o presidente da organização, Dom Roque Paloschi, o ataque não é o principal problema, mas sim que o Cimi está sendo utilizado como “bode expiatório” para um massacre deliberado das populações indígenas no país. “O ataque está sendo feito de forma diuturna, negando direitos constitucionais, e o que é muito mais sagrado, seu direito originário”, afirmou, em entrevista à Agência Pública nesta terça-feira (5).

Dom Roque lembra os séculos de pandemias que dizimaram povos indígenas brasileiros e alerta para um possível novo genocídio. “Estamos suplicando desde o primeiro momento que o governo tomasse ações sérias e efetivas para evitar que o vírus se propagasse no meio das comunidades. Mas pelo contrário, estão atuando para que a mortandade cresça. Um vírus que chega em uma comunidade indígena pode levar a uma tragédia”, afirma.

Um mapeamento colaborativo divulgado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e atualizado até o dia 3 e maio mostra que já são 26 óbitos de indígenas na Amazônia brasileira causados pela Covid-19, além de 132 casos confirmados de indígenas infectados e outros 67 casos suspeitos. Entre os povos mais afetados está o Kokama, do Amazonas, que já perdeu nove lideranças para o vírus, o que levou a divulgação de uma carta por parte de seus representantes, pedindo socorro devido ao “descaso do poder público”.

Já ontem (5) foi confirmada a primeira morte por Covid-19 de um indígena na região sudeste do país. A morte ocorreu no dia 21 de março na Terra Indígena Tenondé-Porã, localizada no distrito de Parelheiros, zona sul da capital paulista. O resultado do exame saiu apenas um mês e 13 dias após a morte. De acordo com relatório da Apib, a confirmação da morte elevou para 30 o número de indígenas mortos em todo o país. A organização registra também que já são 29 povos diretamente afetados pelo vírus.

Para o presidente do Cimi, as políticas indigenistas de Bolsonaro, principalmente as que flexibilizam o garimpo e as invasões de terras indígenas, contribuem para o avanço da pandemia. “Vemos que as comunidades tentam fazer a parte delas, mas não têm força para resistir diante dos invasores que têm, por trás, a cobertura e autorização dos órgãos do Estado”.

Dom Roque Paloschi é presidente do Conselho Indigenista Missionário

Há precedentes para um ataque como esse a uma organização indigenista no período democrático do país?

Nosso problema é que o ataque não é contra o Cimi, o ataque está sendo mortal contra os direitos dos povos indígenas. O Cimi está entrando como bode expiatório, porque ao atacar o Cimi e ao ter aqueles que aplaudem as atitudes do atual governo, os direitos dos povos indígenas estão sendo massacrados, despossuídos e, sobretudo, o governo está dando cobertura a todos os atos de banditismo, de ocupação, grilagem e garimpo em terras indígenas demarcadas e não demarcadas.

Então o Cimi é um bode expiatório na atitude do atual governo de desqualificar e ridicularizar quem se opõe ao atual programa dele. O problema é o ataque que está sendo feito de forma diuturna ao direito dos povos indígenas, negando direitos constitucionais e negando, o que é muito mais sagrado, seu direito originário.

Quanto ao ataque contra o Cimi, não é nada, podem fazer mais. Não tem problema nenhum. E o Cimi não irá responder. Não vale a pena.

Na carta eles se referem a política indigenista no Brasil nos últimos 20 anos com três palavras, basicamente: “Socialista, paternalista e assistencialista”. Como o senhor vê o uso desses conceitos?

É preciso comentar o conteúdo dessa carta? Contra fatos não há argumentos. A questão dos fatos, a invasão às terras, a grilagem, o loteamento, o assassinato de lideranças indígenas, aumentaram de maneira assustadora desde a eleição do atual argumento. Quanto ao que dizem sobre as políticas indigenistas anteriores, elas são políticas de governo, jamais o Cimi defendeu este ou aquele governo. Muito pelo contrário, pagamos uma conta cara por se opor, mesmo nos governos de Lula e Dilma Rousseff, às políticas desenvolvidas em relação aos povos indígenas. Pagamos uma conta sempre cara e vamos continuar pagando. Mas nosso compromisso é de aliança aos povos indígenas e não temos porque recuar.

Não retiramos nenhuma palavra da nossa nota. Até hoje o Cimi já passou por duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), já fomos acusados e processados, mas nunca nos tiraram a nossa missão. Nossa missão não é agradar este ou aquele governo, ela é sobretudo estar ao lado dos povos indígenas.

Para Dom Roque Paloschi as políticas indigenistas do governo Bolsonaro, como flexibilização do garimpo e grilagem de terras, contribuem para o avanço do coronavírus nas terras indígenas

Na nota publicada pelo Cimi os bispos da Amazônia exigiram medidas urgentes de combate ao Covid. Como você encara a forma com a qual o governo tem lidado com a pandemia? Quão grave é a ameaça da Covid-19 para as populações indígenas, pelo que vocês têm observado?

O governo quer atacar todos aqueles que se opõem e questionam a postura dele. Eles tentam criar uma nuvem de fumaça evitando a real situação da problemática do avanço do coronavírus e, sobretudo, do desamparo dos pobres do Brasil. Entre eles os mais pobres, os povos amazônicos, que têm uma vulnerabilidade — entre eles, os povos de pouco contato.

Historicamente, nos 520 anos de presença do homem branco, da ocupação europeia, são pandemias e endemias que têm levado ao desaparecimento das populações originárias. Diante da vulnerabilidade, qualquer gripe, até uma gripezinha, já que segundo o presidente isso é uma gripezinha, pode ser fatal para povos em isolamento voluntário. Uma população atacada constantemente fica muito refém da prepotência dos que se acham donos da verdade.

Aquilo que muitas vezes para nós é fácil de sobreviver e transitar com tranquilidade, no meio das populações indígenas pode ser um caminho de genocídio. Por isso que as comunidades têm feito todos os esforços possíveis para permanecer nas áreas, evitar o trânsito nas cidades, mas isso depende de assistências básicas que o governo não faz, tanto na saúde quanto econômica, já que tudo se torna mais precário também nas comunidades indígenas.

O pior de tudo é a negação dos direitos constitucionais da demarcação das terras. São 32 anos desde a Constituição Federal e esses povos continuam sem eira nem beira.

Recentemente, o “herói” Sergio Moro, o ministro que nos deixou, mandou de volta para a Funai 17 processos de reconhecimento que só dependiam do reconhecimento do ministro da Justiça. É um desrespeito aos direitos constitucionais e à história do Brasil de sempre encarar os povos indígenas como débeis, incapazes, oferecendo empecilhos para a resistência deles. Todas as teses que o governo tem defendido, o intervencionismo, que os indígenas se tornem fazendeiros, levam à retiradas de direitos para oferecer nada no lugar, para jogar na lama da invisibilidade, ainda mais invisibilidade, e da miséria.

É só ver hoje os números da população indígena no contexto urbano. São expulsos de suas terras e não tem condição de permanecer no que seria seu habitat natural.

Só na última semana, a Funai tomou duas decisões que não têm necessariamente a ver com a pandemia. Uma delas é a norma publicada no Diário Oficial da União (DOU) na semana passada para que não sejam mais restringidos imóveis privados em terras ainda não demarcadas, homologadas. A outra foi a troca abrupta do chefe da Frente de Proteção aos Indígenas Isolados do Mato Grosso, sem consulta prévia. O que o senhor acha que essas duas decisões representam nessa conjuntura?

Demonstram exatamente essa prática do governo de, na calada da noite mesmo nesse momento trágico que vive o povo brasileiro, dar golpe em cima de golpe, desrespeitando a própria Constituição Brasileira. É um retrato do governo. Dá um tapinha nas costas mas no fundo está arrancando o sangue e a alma dos pobres.

Como o senhor vê atualmente a multiplicação da Covid entre os povos indígenas?

Estamos suplicando desde o primeiro momento que o governo tomasse ações sérias e efetivas para evitar que o vírus se propagasse no meio das comunidades. Mas pelo contrário, estão atuando para que a mortandade cresça. As atitudes do senhor Presidente mostram isso.

Vemos que as comunidades tentam fazer a parte dela, mas se o governo não fizer se torna impossível. Porque as comunidades indígenas também não têm força para resistir diante dos invasores que têm, por trás, toda a cobertura e autorização dos órgãos do Estado.

Vemos a questão do Ibama, por exemplo. É só ter qualquer postura que contraria a ambição dos poderosos e os funcionários são demitidos, são desqualificados. É extremamente diabólico.

Um vírus que chega em uma comunidade indígena pode levar a uma tragédia. Infelizmente temos um momento tão triste que não podemos ficar indiferentes. Mas há, por exemplo, o movimento [do fotógrafo] Sebastião Salgado, que conclama a sociedade mundial para se fazer presente em um grande esforço exigindo do governo brasileiro o cumprimento da lei, pelo menos isso.

A entrevista é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.

Cimi
Marcelo Salazar/ISA

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