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Ruralistas querem ampliar política de liberação de pesticidas iniciada pelo governo Bolsonaro. Oposição encontra dificuldade para avançar no enfrentamento

Reportagem
15 de março de 2021
09:00
Este artigo tem mais de 3 ano

Nos últimos dois anos, pautas como a liberação de agrotóxicos e a manutenção de isenções para insumos agrícolas avançaram estritamente nos poderes Executivo e Judiciário. Agora, com a vitória do Centrão nas eleições para a presidência das duas casas do Congresso Nacional, o debate deve ocorrer também dentro do legislativo federal, onde os ruralistas são maioria e pretendem “resolver de vez”, nas palavras de um parlamentar, as regulações e controles que já vêm sendo derrubados pelo Ministério da Agricultura por meio de decretos e medidas executivas.

Duas semanas depois da eleição do governista Arthur Lira (PP/AL) como líder na Câmara, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) entregou uma lista de pautas prioritárias do bloco. Entre elas, o Projeto de Lei que ficou conhecido como “PL do Veneno”, que flexibiliza o rito de aprovação de novos agrotóxicos e encontra brechas para liberar produtos que a atual legislação proíbe. 

Os ruralistas conseguiram aprovar o projeto na Comissão Especial da Câmara em setembro de 2018, mas a proposta só voltou a ser prioridade da bancada após o deputado Sérgio Souza (MDB) assumir a presidência da FPA. Durante almoço da bancada ruralista em 3 de fevereiro deste ano, o parlamentar parabenizou a ministra da Agricultura, Tereza Cristina pelo avanço no tema, já que durante a gestão da ruralista mais de mil agrotóxicos foram aprovados, um recorde. Para o parlamentar, o atual cenário “é uma grande oportunidade de resolver isso de uma vez”. 

No segundo mandato como deputado federal, Sérgio Souza foi oficializado como presidente da FPA durante evento em Brasília no último dia 3 de fevereiro

Os ruralistas enxergam a eleição de Arthur Lira como o empurrão que a pauta precisava para avançar. Lira é membro da FPA, e foi eleito com forte apoio dos ruralistas. Até mesmo a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, se afastou temporariamente do cargo no governo para assumir como deputada federal e votar nas eleições da Câmara a favor de Lira, como parte da estratégia do governo de Jair Bolsonaro. 

Mas antes mesmo do PL do Veneno entrar em pauta, congressistas já estão atuando para tentar  fazer o Governo cumprir a lei atual e banir agrotóxicos perigosos. O deputado federal Alessandro Molon (PSB/RJ) protocolou em fevereiro um Projeto de Decreto Legislativo para derrubar uma decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que mantém em circulação um agrotóxico suspeito de causar malformações congênitas e de ser nocivo a bebês alimentados com leite materno. 

Trata-se do inseticida Abamectina, que teve autorização para uso renovado pela Anvisa no final do ano passado. Em 2008, a agência começou a reavaliar a substância devido a “resultados preocupantes relativos à toxicidade aguda e possíveis efeitos sobre a fertilidade, reprodução e desenvolvimento embriofetal”. A substância podia ser encontrada até mesmo no leite materno de mulheres que tiveram contato com o produto. 

Contra a legislação Anvisa mantém agrotóxico perigoso no mercado

Na resolução publicada no Diário Oficial da União, a Anvisa renovou o registro mas levantou alertas que segundo a lei deveriam ser suficientes para bani-lo do mercado. As fabricantes precisarão adicionar na bula o aviso que a abamectina é suspeita de “causar toxicidade reprodutiva em seres humanos”, “causar efeito adverso na lactação”, que pode “prejudicar o feto (malformações congênitas)” e “ser nocivo às crianças alimentadas com leite materno”. 

A Lei nº 7.802/1989 e o Decreto nº 4.074/2002 dizem que devem ser proibidas substâncias com características carcinogênica, mutagênica, desreguladora endócrina ou tóxica para a reprodução ou para o desenvolvimento do feto. 

Mas o relator do processo de reavaliação, o diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra, alegou que as evidências científicas disponíveis demonstram que a Abamectina não preenche os requisitos proibitivos estabelecidos por lei. Para ele, medidas de mitigação como os avisos na monografia e bula do produto bastariam. Os diretores Alex Campos, Cristiane Jourdan e Meiruze Freitas acompanharam o relator e aprovaram a resolução por unanimidade.

“É surpreendente que esse ingrediente ativo, com tais características e advertências, possa ter o registro liberado pela Anvisa”,  explica o deputado Alessandro Molon. “Desde 2008 a Anvisa tem conhecimento de que a abamectina apresenta resultados preocupantes relativos à toxicidade aguda e à suspeita de toxicidade reprodutiva dessa substância e de seus metabólitos”.

A abamectina está presente em pelo menos 27 agrotóxicos vendidos no Brasil. Eles são usados em diversas plantações, entre elas produtos que vão para a mesa do brasileiro, como batata, café, feijão, maçã, mamão, melancia, morango, pepino, pimentão e tomate. De acordo com o último boletim de comercialização de agrotóxicos do Ibama, 320 toneladas de abamectina foram vendidas no Brasil em 2019. 

Em 2018, a Rede de Ação contra Agrotóxicos (PAN, na sigla em inglês) incluiu a abamectina na lista de agrotóxicos altamente perigosos (HHPs, na sigla em inglês). 

Por meio da assessoria de imprensa, a Anvisa reforçou que as evidências disponíveis não são suficientes para proibir o produto,  pois revelam que a Abamectina é suspeita de causar malformações com base em evidência limitada de teratogenicidade (estudo das causas de desenvolvimento anormal de fetos e defeitos de nascimento) em coelhos, não havendo evidência deste efeito em humanos. “Diante disso, não é possível enquadrar a Abamectina como comprovadamente tóxica para a reprodução. De todo modo, em atendimento aos critérios internacionais de classificação, adotados pela Anvisa desde 2019, a Abamectina deve ser classificada na categoria 2 para o desfecho de toxicidade reprodutiva”, declarou. 

A agência destacou que os possíveis efeitos adversos na lactação, que foram observados em estudos com ratos, não são uma característica proibitiva, segundo a legislação brasileira. “Assim, a Abamectina foi mantida no mercado como ingrediente ativo de agrotóxico, visto que o uso para tal finalidade foi considerado seguro dentro das condições de uso aprovadas para os produtos registrados”. Confira a íntegra da nota. 

A Anvisa informou também que foi consultada sobre o PDL n° 548/2020, protocolado pelo deputado Alessandro Molon, e que está elaborando uma nota técnica a ser deliberada pela Diretoria Colegiada da agência reguladora.

Deputado Alessandro Molon quer derrubar decisão da Anvisa que mantém no mercado um agrotóxico classificado como “altamente perigoso”

Pauta pró-agrotóxico vai tramitar mais rápido

Segundo apurou a reportagem, propostas como as do parlamentar Alessandro Molon estão tendo dificuldade de avançar no Congresso Nacional. Em 2019, o deputado Alexandre Padilha (PT/SP) tentou derrubar decretos de aprovação de novos agrotóxicos pela Anvisa, mas foi derrotado na Comissão de Agricultura da Câmara. “Não adianta apresentar um PDL para derrubar a aprovação de um determinado agrotóxico se ele não for para votação, acaba sendo mais uma questão de se posicionar”, pontua o líder dos ambientalistas no Congresso, deputado Rodrigo Agostinho (PSB). 

Já a aprovação de um novo marco legal dos agrotóxicos é tida como prioridade para a bancada ruralista. Um dos pontos mais controversos do PL do Veneno é dar maior poder ao Ministério da Agricultura, que passaria a autorizar o registro de um agrotóxico mesmo se a Anvisa e o Ibama ainda não tiverem concluído as análises. 

Quando foi aprovado na Comissão Especial, uma das maiores dificuldades foram os protestos da sociedade civil. Entidades lotaram a sala onde a audiência ocorria. Houve até mesmo um protesto do Greenpeace que disparou um alarme em meio ao debate. 

Mas o momento atual é bem diferente. Agência Pública e Repórter Brasil ouviram de diversos parlamentares que os governistas apostam na restrição da participação da sociedade nas comissões, votação remota e indisponibilidade de audiências públicas para evitar nova pressão popular. 

 A atual conjuntura é a pior possível para o enfrentamento ao PL do Veneno, afirma o deputado Nilto Tatto (PT/SP), ex-coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista. “[Rodrigo] Maia ajudava de certa forma a segurar essa trolha que o setor da agricultura queria tocar na Câmara. Agora a boiada que vinha passando no executivo vai passar também do ponto de vista da legislação”. 

Convergência no Congresso e no Planalto 

Os ruralistas concordam. Durante seu discurso de posse no almoço da bancada, Sérgio Souza disse que o resultado das eleições nas presidências do Congresso criaram uma “convergência única” para que as pautas prioritárias do setor agropecuário avancem no legislativo. A FPA conta com “alinhamento com o pensamento ideológico” do presidente Bolsonaro, disse. 

O deputado argumenta que  o PL trará a possibilidade de criação de novas moléculas de forma mais rápida, mais moderna e de melhor utilização para as especificidades existentes no Brasil. “Essas moléculas mais modernas deixam muito menos resíduos nos produtos agrícolas e você utiliza menos defensivo em uma área maior. Assim, aumentamos, inclusive, a nossa produtividade, nosso valor agregado, a renda e tudo mais”.

No mesmo dia da posse de Souza como novo presidente da bancada, o presidente Jair Bolsonaro foi ao Congresso Nacional participar da solenidade para abertura do ano legislativo e fez diversos acenos aos ruralistas. Destacou ações do governo no setor agropecuário, parabenizou a bancada ruralista pelos números do agronegócio e disse que o setor “continua sendo a locomotiva da nossa economia”. 

Bolsonaro parabenizou a atuação da FPA, durante cerimônia de abertura do ano legislativo

Já o coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista, Rodrigo Agostinho, enxerga a aprovação de mais agrotóxicos como um incentivo ao uso. “Nos últimos dois anos houve uma explosão dos registros de agrotóxicos, principalmente moléculas que já foram proibidas em outros países e que geram interesse ao agro porque não tem mais patente. Se uma mesma molécula tem 40 registros, você tem 40 empresas que podem colocá-la no mercado, o que diminui o preço, pode dar mais lucro ao produtor, mas também significa uma utilização mais intensa dos venenos”, explica. 

O PL do Veneno recebeu diversas críticas de entidades da saúde e do meio ambiente. A Organização das Nações Unidas (ONU) enviou uma carta assinada por cinco relatores especiais à Câmara dos Deputados advertindo os riscos da proposta. A Fiocruz e o Instituto Nacional do Câncer (Inca) também se posicionaram contra devido aos efeitos nocivos dos agrotóxicos à saúde humana. O Ministério Público Federal também apontou uma série de inconstitucionalidades no texto, e até mesmo a Anvisa criticou o projeto

Na época, a agência se posicionou de forma clara contra o PL em nota:  “A proposta (…) é de que não haja mais avaliação e classificação de produtos pelas áreas de saúde e meio ambiente, mas apenas uma “homologação” da avaliação realizada pelas empresas registrantes de produtos agrotóxicos”. Isso foi antes de Bolsonaro indicar um novo presidente e diretores para o órgão. Nos novos tempos, a agência de regulação ainda não se posicionou sobre o projeto.

O que muda caso o PL 6299/2002 seja aprovado? 

Protocolado em 2002 pelo então senador Blairo Maggi, o projeto para criar um novo marco regulatório para os agrotóxicos rodou a Câmara por mais de 16 anos até ser aprovado pela Comissão Especial em 2018. Durante esse período, 29 outros processos foram apensados ao texto original, o que fez o projeto ser apelidado por opositores de “Pacote do Veneno”. 

Confira os 10 principais pontos do projeto:

  1. Unificação do processo de aprovação de agrotóxicos. O Ministério da Agricultura será o responsável pelo processo, enquanto Anvisa e Ibama emitirão apenas pareceres. 
  2. Substituição do termo agrotóxico por pesticida.
  3. Prazo máximo de dois anos para aprovação do registro dos agrotóxicos. Hoje em dia, esse período de análise chega a superar oito anos.
  4. Criação de um registro temporário para produtos novos usados em pesquisas e em experimentos. Será emitida a autorização caso a molécula já tenha sido registrada em pelo menos três países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
  5. “Risco aceitável”: A atual legislação proíbe a comercialização de substâncias que podem causar mutações, câncer ou desregulação hormonal. O projeto cria uma análise de risco, onde esses produtos podem chegar ao mercado caso sejam identificadas doses seguras de uso. 
  6. Alguns agrotóxicos poderão ser vendidos sem receituário agronômico prescrito por um agrônomo.
  7. Centralização das decisões na União, e menos poderes para que os Estados e Municípios possam legislar sobre  agrotóxicos.
  8. Exclui a regulação sobre a propaganda de agrotóxicos.
  9. Flexibilização do registro de agrotóxicos genéricos, que fica sob responsabilidade exclusiva do Ministério da Agricultura.
  10. O processo de registro de agrotóxicos passará a ser online. Será criado um Sistema Unificado de Informação, Petição e Avaliação Eletrônica (SISPA) e o Sistema Unificado de Cadastro de Utilização de Pesticidas e Produtos para Controle Ambiental Informatizado.

Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto.

André Oliveira/Agência FPA
Maryanna Oliveira/Câmara dos Deputados
Luis Macedo/Câmara dos Deputados

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