Duas a cada três prisões brasileiras registraram casos de Covid-19 entre presos desde abril de 2020, quando a pandemia chegou ao sistema prisional.
No Ceará, no Distrito Federal, em Rondônia e em Sergipe, todas as unidades prisionais tiveram internos infectados com o coronavírus. Houve óbitos em pelo menos dez delas, entre 50 prisões que abrigam mais de 50 mil pessoas.
As conclusões são de um levantamento inédito da Agência Pública, feito com base em respostas a dezenas de pedidos de Lei de Acesso à Informação (LAI) e contatos com assessorias de imprensa. Foram fornecidos dados sobre casos e óbitos entre presos por unidade prisional em 22 estados e no Distrito Federal. Como os governos estaduais responderam em datas distintas, as informações datam de 31 de janeiro a 19 de abril. Os demais estados não responderam até o fechamento da análise.
De acordo com o levantamento, houve casos da doença em pelo menos 877 unidades prisionais, das quais ao menos 110 registraram mortes de detentos. Os dados reunidos se referem a 1.287 unidades distribuídas nos 22 estados e no Distrito Federal. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o Brasil tinha 1.435 unidades prisionais ativas em dezembro de 2019.
Outros dez estados tiveram mais de 80% das prisões com contaminação: Santa Catarina, Piauí, Espírito Santo, Alagoas, Rio de Janeiro, São Paulo, Acre, Mato Grosso, Pará e Bahia.
Os dados sistematizados pela reportagem revelam também que pelo menos 112 prisões brasileiras registraram mais de 100 casos de Covid-19. Em estados como São Paulo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Mato Grosso, presídios tiveram mais de 400 casos. A Penitenciária Estadual de Dourados (MS) e a Penitenciária Guareí I (SP) chegaram a mais de mil presos contaminados.
No Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e São Paulo, os dados revelam a ocorrência de amplos surtos da doença, o que demonstra que as parcas medidas de proteção dos presos fracassaram.
O último boletim do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 5 de maio, contabilizou 56.323 casos e 183 óbitos entre os presidiários brasileiros.
A Pública buscou familiares, servidores e membros de organizações da sociedade civil para entender o impacto da pandemia no sistema carcerário. Além de relatos de aumento de episódios de violência e tortura, há muitas histórias de falta de atendimento e de comunicação da situação às famílias.
Para o pesquisador Felipe Freitas, o cenário de superlotação do sistema prisional brasileiro impulsiona a contaminação por Covid-19. Coordenador do Infovírus, um observatório da Covid nas prisões, ele diz que as autoridades deveriam ter adotado uma política de testagem, rastreio e distanciamento social nas unidades, além da ampliação da oferta de material de higiene. Nada disso ocorreu. “O mais importante era a redução da população carcerária, com uma política massiva de apreciação dos pedidos de liberdade dessas pessoas que integravam o grupo de risco”, diz.
A necessidade de medidas desencarceradoras foi reconhecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em março de 2020. O CNJ recomendou a reavaliação de prisões provisórias e da necessidade de manter em regime fechado presos do grupo de risco. Para Freitas, poucos seguiram a recomendação.
Carolina Lemos, advogada e articuladora da Frente Estadual pelo Desencarceramento de Minas Gerais, defende a inclusão das pessoas em privação de liberdade no grupo prioritário da vacinação, “justamente porque elas estão em uma situação de maior vulnerabilidade”. Ela diz que, além da superlotação, “as pessoas presas já têm tipicamente uma situação de saúde pior pela questão do estresse e da má alimentação”.
Para Freitas, ainda há enorme subnotificação de casos de presos e servidores infectados. “Nós registramos ocorrência de manifestações de familiares em mais de 17 estados do país, mais de 60% afirmando a existência de pessoas com os sintomas todos, em estado grave”, diz ele. “Não tinham feito teste, ou que tinham feito apenas o teste rápido. Há subnotificação e há um número grande de mortes. Muitas delas não registradas.”
Segundo levantamento da Pública, apenas 11 estados publicam com regularidade boletins sobre a Covid-19 no sistema prisional. Destes, apenas quatro divulgam o número acumulado por unidade.
Prisão com mais detentos indígenas é recordista de contaminação
A Penitenciária Estadual de Dourados (PED), no Mato Grosso do Sul, é a recordista nacional em número de presos contaminados, segundo o levantamento. Foram 1.236 casos até o início de fevereiro, para uma população carcerária na faixa de 2.380 presos. Maior estabelecimento penitenciário do estado, a prisão teve uma morte entre os detentos, além de 33 servidores contaminados.
A unidade prisional de Dourados, cidade que abriga uma reserva indígena Guarani-Kaiowá e é próxima a outras, tem provavelmente o maior contingente de indígenas encarcerados do país, com 164 presos. Segundo informações da Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (Agepen-MS), 86 indígenas tiveram a doença na unidade.
“Ele teve febre, nariz escorrendo, o corpo todo doendo, disse que juntou tudo, o coronavírus e as outras dores dele. Falou que estava mal, que achava que ia morrer ali mesmo. Testou positivo e ficou em isolamento, acho que por duas semanas”, conta Edite*, cunhada de um indígena preso na PED. Ele se contaminou em outubro, está na faixa dos 50 anos e sofre de doenças como hipertensão e diabetes. A família só conseguiu a confirmação da doença porque a advogada do indígena oficiou a unidade em busca de notícias.
A despeito de seus problemas de saúde, um habeas corpus apresentado por sua defesa foi negado pela Justiça no ano passado. Em março deste ano, o detento voltou a sentir sintomas da doença e foi novamente isolado, segundo a cunhada.
Gustavo*, um policial penal da PED que preferiu não se identificar, estima que a contaminação chegou a 90% dos internos durante o surto, que ocorreu entre agosto e outubro de 2020. “A própria direção não soube gerenciar as coisas”, diz. O agente, que atua na unidade há mais de cinco anos, diz que faltam uniformes e equipamentos para os policiais penais, que receberam somente máscaras de feltro para proteção. Em relação aos presos, ele conta que a utilização de máscaras é obrigatória somente nos corredores e que elas não são usadas nas celas e galerias.
Segundo os dados obtidos pela Pública via LAI, 30 das 42 unidades prisionais de Mato Grosso do Sul tiveram casos de Covid-19, o que representa cerca de 71% do total. Além disso, cinco prisões registraram óbitos. Até o começo de fevereiro, eram 4.102 presos contaminados e seis mortes. No último boletim com dados totais, de 9 de maio, o número chegava a 4.512 contaminações e nove mortes entre os detentos.
Procurada pela reportagem, a Agepen afirmou que o estado promoveu “testagem em massa” e tem “um dos menores índices de óbitos entre os custodiados” do Brasil. A íntegra das duas respostas pode ser lida aqui e neste link.
São Paulo tem quatro prisões no ranking de maior contaminação entre detentos
Estado com a maior população carcerária do país, com mais de 215 mil internos, São Paulo teve apenas 22 prisões que não registraram casos positivos entre as 178 unidades. Ao todo, 33 prisões paulistas tiveram mortes até 14 de abril, data do levantamento. Até 7 de maio, quando o último boletim geral do estado foi publicado, eram 13.631 casos e 50 óbitos entre os detentos.
O estado ocupa quatro lugares no ranking das “top 5” prisões com mais casos de Covid-19.
A segunda colocação é do Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de Hortolândia, na região de Campinas, que teve 1.019 casos, além de um óbito. Foram 50 servidores contaminados na unidade.
Na Penitenciária Guareí I, que ocupa a terceira colocação nacional, foram registrados 960 casos. Todos eles ocorreram em setembro do ano passado, segundo o G1, e não houve óbitos. Geralmente, a prisão tem uma população de cerca de 1.700 detentos. Houve também 60 casos entre os servidores.
Naquele mês, o marido de Lúcia* começou a apresentar os primeiros sintomas da doença, com falta de paladar e olfato, febre e dor no corpo. Em Guareí, há pouco mais de um ano, diante da falta de assistência médica e da ausência de fornecimento de remédios na unidade, ela teve que enviar para ele antibiótico, anti-inflamatório e remédio para dor. Lúcia conta que os internos chegam a dividir uma cartela de remédios com a cela inteira.
“Ele falou pra mim que era só um ou dois que não tinham pego Covid dentro do pavilhão dele. Na cela dele deve ter umas 30, 40 pessoas mais ou menos. Como que ele, doente, ia dividir uma cartela de dipirona com a cela toda?”, pergunta, dizendo que os medicamentos deveriam ser entregues pela penitenciária. “E a gente liga lá e eles fingem que nada aconteceu.”
A quarta prisão com maior número absoluto de casos no Brasil é a Penitenciária Sorocaba II, localizada no município a 85 km da capital. Com uma população carcerária superior a 1.900 presos, a unidade já registrou 890 casos de Covid-19. A prisão em Sorocaba também registrou cinco óbitos entre presos, além de 35 casos entre os servidores.
A quinta unidade com mais casos de contaminados no país é o Centro de Detenção Provisória (CDP) Pinheiros II, na capital paulista. Até 14 de abril, o CDP já havia registrado 817 casos de Covid-19, em uma população carcerária que gira em torno de 1.700 mil. Não houve óbitos, e 33 servidores tiveram a doença.
Esposa de um interno, Jurema* não consegue mais dormir de tanta preocupação, depois de meses sem notícias do marido, que é do grupo de risco por ter arritmia cardíaca e má-formação no coração. Na última conversa que tiveram, em fevereiro, ele relatou sintomas gripais, além de febre e muita dor no corpo. “Não dá nem pra saber se o que ele teve foi Covid, porque eles não falam, e isso tá me preocupando porque ele nunca ficou muito tempo sem falar comigo. Depois da chamada eu não recebi uma carta, não recebi mais nada dele. Então, imagina como tá a minha cabeça. Ele doente, a gente liga lá eles falam que tá tudo bem e não passam mais informação”, conta.
Jurema faz parte de grupo de WhatsApp com outras mulheres que têm parentes na unidade. Além da dificuldade de se comunicar com os internos, as familiares relatam o adoecimento dos presos, assim como falta de medicação e de atendimento médico. “Eles estão passando fome lá dentro, a comida às vezes tem que dividir, e metade come na hora do almoço e a outra na hora da janta”, conta ela. “Teve outros internos que relataram que a comida estava vindo azeda, eles estavam comendo comida estragada e a água estava no racionamento. Se tivesse água de manhã, durante a tarde e à noite eles não tinham água.”
Segundo o defensor público Thiago Cury, que faz parte do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo e que inspecionou 22 unidades durante a pandemia, diz que os presos do CDP Pinheiros II se encontram em “situação extremamente degradante”, com “celas totalmente escuras, sem ventilação e iluminação e com superlotação”.
Para o defensor, a precariedade foi agravada pela pandemia e se repete na maioria das unidades prisionais do estado.
A possibilidade de novos surtos de Covid-19 no sistema prisional preocupa também os servidores paulistas, de acordo com Fábio Jabá, presidente do Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional de São Paulo (Sifuspesp). Segundo o último boletim publicado pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) do estado, 3.788 servidores já contraíram a doença, com 99 óbitos. A maior parte das mortes entre trabalhadores do sistema prisional do estado ocorreu nos quatro primeiros meses de 2021.
Para Jabá, a pandemia “evidenciou o quanto o sistema prisional é abandonado”. “Nós somos invisíveis para todo mundo, somos invisíveis para a sociedade”, afirma.
Procurada pela reportagem, a SAP informou que desde junho de 2020 tem realizado testagem em massa das pessoas privadas de liberdade e dos servidores do sistema penitenciário do estado e que “os cuidados com a população prisional têm sido efetivos”. O órgão destaca que o índice de letalidade é de 0,33% entre presos e 2,16% entre servidores, ambos abaixo do índice registrado na população em geral, de cerca de 3,3%.
A SAP nega as denúncias de escassez de água, alimentação e atendimento médico. Leia a resposta na íntegra aqui.
Surto de Covid-19 nas prisões revela contaminação incontida
Estado com a segunda maior população carcerária do país, com mais de 60 mil presos, Minas Gerais registrou surtos que contaminaram quase a totalidade dos detentos de algumas unidades prisionais.
Um dos primeiros surtos ocorreu no Presídio de Ribeirão das Neves II, na região metropolitana de Belo Horizonte. Até 23 de fevereiro, a unidade havia registrado 432 casos de Covid-19, em uma população carcerária de cerca de 2.100 presos. Segundo dados obtidos pela Pública, 426 dos casos positivos ocorreram no período de um mês, entre 11 de junho e 7 de julho do ano passado.
Foi justamente nessa época que ocorreu a primeira morte por Covid-19 em Minas Gerais. Idoso e com doenças crônicas, Antônio Pereira Nunes havia tido um pedido de habeas corpus negado um mês antes. Na justificativa, a juíza da Comarca de Ribeirão das Neves afirmou que “a doença não é grave e é passível de tratamento no ambiente prisional”. Antônio recorreu, mas morreu já no hospital do presídio, no dia em que a Justiça permitiu que ele fosse para a prisão domiciliar.
Os dados obtidos pela Pública mostram também que, em mais quatro presídios mineiros, houve surtos de Covid-19.
Na unidade São Francisco I, os 82 casos registrados são de agosto de 2020; a população é de 86 pessoas. Em Mariana I, houve 122 casos em agosto; a população é de 129 presos.
Em Buritis I, 87 dos 88 casos foram registrados ao longo de dez dias de julho do ano passado; a população totaliza 91 pessoas. Em Salinas I, 74 dos 75 casos que ocorreram no local foram registrados no mesmo dia, 12 de agosto, em uma população de 84 detentos.
Os dados fornecidos por Minas Gerais são de 23 de fevereiro. Até essa data, o sistema prisional mineiro registrava 4.862 casos e nove óbitos. Ao todo, cerca de 64% das 194 prisões do estado já haviam registrado casos de Covid-19, com mortes em sete delas. Os dados não incluem as 42 unidades da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) no estado.
Questionada sobre o alto número de infectados nos quatro presídios, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) de Minas Gerais afirmou que os dados não levam em consideração “a sazonalidade das confirmações e nem a rotatividade de detentos nos presídios e penitenciárias do Estado”. A Sejusp afirmou que “a adoção das medidas de prevenção da disseminação do coronavírus” possibilitou “o controle dos casos nas unidades prisionais”. Ressaltou que “apenas cumpre e executa as decisões judiciais”, cabendo ao Judiciário “as determinações sobre liberação e mudança de regime dos presos”. A íntegra da resposta pode ser lida aqui.
Episódios de surtos como os ocorridos em Minas Gerais se repetem em outros estados. No Estabelecimento Penal Masculino de Regime Fechado de Ivinhema, a 280 km de Campo Grande (MS), 63 presos tiveram a doença até o início de fevereiro, sendo que 70 pessoas estavam presas no local no final de dezembro do ano passado. Além disso, 11 servidores também tiveram a doença.
“Graças a Deus não teve nenhum caso de morte, não, mas foi um pico bastante grande em janeiro”, avalia Luciana Neves, coordenadora da Pastoral Carcerária em Ivinhema. A cidade, com cerca de 23,2 mil habitantes, teve uma taxa de casos de Covid cerca de nove vezes menor que o registrado na prisão.
O Mato Grosso do Sul registra uma das maiores superlotações do país: na média estadual, há pelo menos dois presos por vaga. Em Ivinhema e em Dourados – que registrou o maior número absoluto de casos do país –, o cenário é ainda pior, com cerca de três detentos para cada vaga.
Também no Centro-Oeste, o estado do Mato Grosso é onde se localizam duas das unidades com surtos de contaminação, de acordo com o levantamento da Pública.
Na cadeia pública de São José dos Quatro Marcos, a 330 km de Cuiabá, foram 75 casos para uma população prisional de 81 pessoas.
Em Nova Mutum, a 240 km da capital, são 103 casos e 105 presos. A análise dos boletins mostra que houve surtos nas unidades: todos os casos de Nova Mutum foram registrados entre 24 de julho e 4 de agosto; praticamente todos os casos de São José foram incluídos entre 4 de setembro e 5 de outubro.
Ao todo, cerca de 85% das 49 unidades do Mato Grosso tiveram casos de Covid-19 até 19 de abril. Na data do levantamento, eram 2.703 casos, com quatro óbitos. As mortes ocorreram em três diferentes unidades.
Questionada, a Secretaria de Estado e Segurança Pública do Mato Grosso avaliou as medidas de contenção do vírus como “acertadas”, já que os internos teriam sido “tratados de forma rápida, no início dos sintomas e o tratamento ocorreu dentro da própria unidade sem a necessidade de internações”. Leia a resposta na íntegra aqui.
Para Marcos Boulos, infectologista do Centro de Contingenciamento do Coronavírus em São Paulo, a ocorrência de surtos em algumas unidades mostra que as medidas tomadas não foram suficientes. “Basta uma pessoa infectada – não obrigatoriamente um prisioneiro, pode ser um guarda ou qualquer pessoa administrativa – para passar essa infecção para um prisioneiro. E esse, como está muito próximo de outros, isso acaba se disseminando em progressão geométrica, muito rapidamente”, afirma.
Na visão do especialista, “não é uma surpresa saber que as pessoas no sistema prisional têm infecções de maneira mais intensa”.
“Aqueles presídios que não tiveram casos, provavelmente tiveram um controle mais adequado, não permitiram que visitantes entrem, ou simplesmente tiveram sorte”, diz.