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Mas que calor, ooô, ooô

Cadê a árvore que deveria estar aqui?

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16 de fevereiro de 2024
06:00
Ouça Giovana Girardi

Giovana Girardi

16 de fevereiro de 2024 · Cadê a árvore que deveria estar aqui?

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Pulei o Carnaval nos bloquinhos de São Paulo ao lado de uma amiga que fazia uma saudação engraçada toda vez que se deparava com uma árvore no caminho. Sob as altas temperaturas que faziam a gente suar tanto que nem dava vontade de ir ao banheiro, ela parava debaixo das sombras que encontrávamos no trajeto, levantava os braços, jogava a cabeça para trás e entoava, dramática: “Oh, abençoada árvore, obrigada pelo ventinho, obrigada por ser nosso ar-condicionado natural”. 

A gente ria e seguia pulando. E suando. Mas os breves instantes de alívio e a brincadeira estavam carregados de uma óbvia e bem séria constatação: São Paulo precisa de um plano urgente de adaptação aos eventos de calor extremo que já estamos enfrentando e vamos ver cada vez mais. E parte desse plano passa, é claro, por melhorar a arborização.

A gente até deu sorte. Não era o bairro mais verde do mundo, mas dava para encontrar um refresco aqui, outro ali. E, se não vencia a quentura, pelo menos também ajudava o fato de ser uma vizinhança com várias casas, com velhinhos e crianças se divertindo esguichando água na galera. Mas não foi a regra na cidade.

Fazer calor no Carnaval não só é de esperar como é algo desejado por quem quer curtir a festa de Momo. Está eternizado na marchinha Allah-la-ô, nas fantasias diminutas. A chuva que fique para a Quarta-feira de Cinzas (que não falhou neste ano). Mas as altas temperaturas desta semana foram bem além do tolerável para muitos. 

Leio na Folha que mais de 2 mil pessoas buscaram atendimento nos postos de saúde instalados nos megablocos de São Paulo por causa do calor excessivo. O show de Pabllo Vittar foi interrompido, com fãs passando mal. Em Salvador, mais de 4 mil pessoas buscaram atendimento. 

No Rio, a apresentação de Ludmilla foi encerrada mais cedo depois que foliões caíram desmaiados ao redor do trio elétrico. Ainda de acordo com a reportagem, a cantora chegou a declarar: “O clima a gente não consegue controlar”. O título da matéria entregava o fim do bom humor. Para o jornal, o calor foi o “vilão” do Carnaval. 

Entendo o apelo do título, mas eu diria que o vilão é outro. Ou são outros. A começar pela humanidade mesmo, viciada em combustíveis fósseis, que joga gás carbônico adoidado na atmosfera como se não houvesse amanhã, aquecendo o planeta a temperaturas sem precedentes no registro histórico. 

Mas, puxando para alguém mais perto, mais palpável, eu culparia os responsáveis pelo planejamento urbano, que não tratam de adequar a cidade para o inevitável: vai esquentar mais. Alô, Ricardo Nunes; alô, ex-prefeitos; alô, candidatos à prefeitura.

As ações necessárias são diversas, mas, já que comecei com a justa ode que minha amiga fazia às nossas amigas árvores no Carnaval, vou aqui citar um estudo que não só endossa o sentimento dela como reforça que a arborização deveria ser algo levado bem a sério.

A situação retratada na pesquisa é bastante diversa da que estamos falando aqui, mas a mensagem principal é a mesma, então peço ao caro leitor que releve o exemplo norte-americano-centrado.

Trata-se de uma análise feita nos Estados Unidos sobre o impacto que o reflorestamento em parte do país teve no controle do aumento de temperatura. Assim como aconteceu aqui, a costa leste americana passou por um grande processo de desmatamento após a colonização inglesa. Mais de 90% da vegetação original desapareceu, entre o fim do século 18 e o começo do 20, em decorrência da exploração de madeira e da abertura de áreas para a agricultura. 

A partir dos anos 1930, porém, com a migração da agricultura para o oeste e o abandono dos cultivos de baixa produtividade, teve início um esforço de recuperar as florestas que acabou se firmando ao longo das décadas. Em quase um século, cerca de 15 milhões de hectares (ou 150 mil km2) cresceram nessas áreas. 

Para comparação, essa é mais ou menos a quantidade que ainda existe de Mata Atlântica mais preservada. Segundo o Atlas da Mata Atlântica, desenvolvido pelo Inpe e pela SOS Mata Atlântica, somados todos os remanescentes da floresta com mais de 3 hectares de área, restam no país cerca de 16,2 milhões de hectares do bioma que é o mais devastado do Brasil. É o equivalente a 12,4% da área de cobertura original.

O trabalho americano, liderado por Kim Novick e Mallory Barnes, da Universidade de Indiana, aponta que a restauração florestal do século passado contribuiu para conter o aquecimento da temperatura na porção leste dos Estados Unidos. 

Observações terrestres e de satélite mostraram que as florestas resfriaram a superfície da terra em 1 °C a 2 °C anualmente, na comparação com pastagens e áreas de cultivo próximas. E vejam que maravilha. O efeito de resfriamento promovido pelas árvores foi ainda mais forte por volta do meio-dia no verão, deixando o clima regional entre 2 °C e 5 °C mais fresco. 

E esse impacto não foi sentido somente em terra, mas se estendeu também para a superfície do ar mais próxima, reduzindo em até 1 °C a temperatura ao meio-dia nas regiões reflorestadas, em comparação com as sem floresta.

As conclusões foram publicadas nesta semana no periódico Earth’s Future, da União Geofísica Americana (AGU). De acordo com os autores, aquele amplo reflorestamento ajudou a conter regionalmente o aumento da temperatura provocado pelo aquecimento global e deve ser encarado como uma ferramenta de adaptação a ser combinada com os esforços de reduzir as emissões de gases de efeito estufa.

O trabalho aponta que durante o período de recuperação das florestas, enquanto as temperaturas na América do Norte subiram em média 0,7 °C, na costa leste e no sudeste do país elas caíram 0,3 °C entre 1900 e 2000.

Essa diferença de temperatura já tinha sido observada, mas se imaginava que poderia ser por outros motivos. É a primeira vez que uma pesquisa sugere a relação desse efeito com o reflorestamento na costa leste americana.

Claro que estamos falando de um esforço de quase um século de retomada da floresta, em uma área muito grande, com outro tipo de vegetação. Numa cidade como São Paulo, a situação é completamente diferente. Mas só imagine que delícia se tivesse um montão de árvores nas ruas.

Quer dizer: árvore até tem, mas de forma totalmente heterogênea. Enquanto alguns bairros, como Alto de Pinheiros ou Jardins, têm uma cobertura vegetal alta, no centro e na zona leste ela é baixíssima, o que reforça a desigualdade social. Mas isso é papo para outra coluna.

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