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Em Natal, obras consomem R$ 661,8 milhões de cofres dos governos; por solicitação do MP, Audiência Pública discute impacto ambiental e despejo de 449 famílias na próxima sexta-feira

Reportagem
19 de junho de 2012
09:00
Este artigo tem mais de 12 ano

Eu passava por aquelas casas todos os dias, observando as mensagens de protesto expostas em faixas pretas e letras brancas, penduradas improvisadamente na fachada de portões e paredes, sem noção do que se passava por trás delas. Até que um dia desci do ônibus disposta a ouvir, e conheci dona Osanete, seu Pedro e seu Antônio, alguns dentre os tantos atingidos diretamente pelas obras de Mobilidade Urbana, bancadas pelo governo federal e por recursos locais.

Eles são alguns dos atropelados pela Copa do Mundo em Natal.

No lote um, na rua Felizardo Moura, no bairro Nordeste, Maria Eunice lavava roupa no quintal de casa quando três homens com uniforme da prefeitura bateram à sua porta e lhe entregaram uma carta. “Cada um procure a prefeitura e a Semurb”, disseram os funcionários antes de ir embora. No documento, a dona de casa viu pela primeira vez a palavra “desapropriação”.

A casa de Maria Eunice Silva Lima, 54, e Antônio Fernando de Lima, 65, tem um terreno de 206 metros quadrados, que eles fazem questão de dizer que é lajeado e possui dois andares, resultado de uma reforma que o próprio Antônio cuidou, desde a compra do terreno, em 1999, por R$ 900. Próximo a Ponte de Igapó, que dá acesso a Zona Norte da cidade, a visão que o casal e suas duas filhas têm da casa de terreno alto é a do Rio Potengi, com o mangue verde musgo que o acompanha até a praia. Da porta, Eunice assiste as netas brincarem no pé de siriguela, bem no meio do terraço, nas manhãs de domingo.

No lote dois, na Avenida Capitão Mor Gouveia, bairro Lagoa Nova, a pernambucana Osanete Bandeira Epaminondas da Silva, 71, ficou sabendo da possível desapropriação de sua casa através do noticiário local, em abril de 2011. “O projeto vai avançar 12 metros à esquerda da avenida”, confirmou um rapaz da secretaria quando ela, sua filha e um vizinho, foram à prefeitura, ela conta. Enfermeira aposentada do exército, divide a casa com filhos, netos e bisnetos, além dos hóspedes da pousada que seu marido projetou, mas não concluiu antes de falecer.

Maria Eunice e dona Osanete moram no início e fim, respectivamente, do chamado Corredor Estruturante, que ligará o novo aeroporto, em São Gonçalo do Amarante, região metropolitana de Natal, ao novo estádio Arena das Dunas. O projeto é dividido em dois lotes; no primeiro estão o corredor estrutural Oeste/BR-226, o complexo viário da Urbana, e a reestruturação geométrica da Avenida Capitão Mor Gouveia, com a construção de pontilhão elevado e um túnel de 8,6km; o lote dois, no entorno do estádio, ainda não teve seu projeto concluído, mas deverá contar com seis entroncamentos e plataformas de embarque/desembarque, segundo consta do documento assinado pelo ministério do Transporte, divulgado no site de transparência da Copa do Mundo, em abril de 2012. O corredor foi orçado em R$338,8 milhões, com 14% pago pelo município, e 86% financiado pela Caixa Econômica Federal. Segundo o mesmo documento, as obras do lote um tiveram a licença ambiental dispensada.

Sob responsabilidade do governo estadual, está o acesso ao novo Aeroporto de São Gonçalo do Amarante, com ligação à BR-226 e à BR-406, orçado em R$ 73 milhões; a reestruturação da Avenida Engenheiro Roberto Freire, orçada em R$221,7 milhões; e a implantação da Via Prudente de Morais, com extensão de 4,7Km, que dá acesso ao atual Aeroporto Augusto Severo, orçada em R$ 28,2 milhões.

O estádio João Cláudio de Vasconcelos Machado, o “Machadão”, foi doado ao estado do Rio Grande do Norte pelo município para dar lugar ao novo estádio Arena das Dunas, orçado em R$ 417 milhões, com 95% do valor financiado pelo BNDES.

As obras da Copa também estão isentas da lei de responsabilidade fiscal – somente no último quadrimestre, o governo ultrapassou R$ 73 milhões do limite estabelecido por essa legislação

“Eles estão invadindo terreno do Estado e desviando dos empresários”, diz membro da APAC

Marcos Reinaldo da Silva, 66, funcionário público federal aposentado, reuniu sete vizinhos e, em abril de 2011, formou um grupo para representar os moradores da área em uma visita a Semopi (Secretaria Municipal de Obras Públicas e Infraestrutura), onde tomou conhecimento do projeto de mobilidade urbana em Natal. Com a criação do Comitê Popular local, participou, em outubro do mesmo ano, de uma reunião que deu origem a uma associação para defender os moradores: a Associação Potiguar dos Atingidos Pela Copa (APAC), da qual hoje ele é coordenador adjunto.

Segundo o representante da APAC, o projeto do corredor estrutural segue um traçado que preserva as grandes repartições públicas – como o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) e a Secretaria de Tributação, além de uma agência do Banco do Brasil -, a sede da empresa de ônibus Guanabara e a construtora Marquise, que presta serviço de transbordo de lixo para a prefeitura. O único empreendimento de grande porte que será atingido pelo projeto de mobilidade urbana é o que possui um viés popular, a Central de Comercialização da Agricultura Familiar, criada através de um convênio entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o governo. Inaugurada em 2010, ao custo de R$ 1,4 milhão aos cofres públicos, nunca foi utilizada.

“Eles estão invadindo terreno do Estado e desviando dos empresários”, afirma Marcos Reinaldo, apontando o local das obras em fotos via satélite no Programa de Mobilidade Urbana da Cidade do Natal. Morador do lote dois, na Avenida Mor Gouveia, há 37 anos, ele afirma que outras alternativas foram propostas por arquitetos e urbanistas do Comitê Popular da Copa mas não obtiveram retorno do governo. Uma delas era a de tornar a avenida uma via de mão única, evitando desapropriações e reduzindo o custo para menos da metade do orçamento previsto.

Além disso, o projeto original da avenida atravessava a sede da governadoria, que fica ao lado do estádio Arena das Dunas, dando acesso direto a BR-101. Segundo Marcos, essa parte do projeto foi eliminada, com repercussões no trânsito: “Os carros vão chegar aqui no final da avenida e entrar no mesmo gargalo de antes, dando a volta no estádio inteiro, passando por dois sinais, até chegar a BR-101. Essa obra não vai resolver o problema de mobilidade em Natal”.

O consórcio EBEI MWH Brasil – Empresa Brasileira de Engenharia de Infra-estrutura Ltda e MWH Brasil Engenharia e Projetos Ltda – foi contratado pela Prefeitura do Natal em 2010, por R$ 7,2 milhões. Desde então, o consórcio é responsável pela prestação de serviços de consultoria para consolidação dos projetos básicos e elaboração dos projetos executivos das intervenções do Programa de Mobilidade Urbana de Natal, no período contratual de 8 de dezembro de 2011 a 6 de março de 2012. Mas segundo o secretário adjunto da Semopi, Caio Múcio, o contrato teve um aditivo de prazo até o final de junho. Apesar da extensão contratual, o secretário adjunto nega ter havido aumento de custo no contrato.

Desapropriações e obras que não correspondem ao interesse público

De acordo com um dos coordenadores do Comitê Popular da Copa e Conselho Estadual de Direitos Humanos da OAB, Marcos Dionísio, apenas uma alternativa foi apresentada pelo consórcio responsável pelo projeto, sem qualquer participação popular: “Eles não têm uma visão integral do que é necessário para que Natal sedie um evento desse porte. Sobretudo no que diz respeito ao Estatuto da Cidade e Plano Diretor”, afirmou.

O valor estipulado para a desapropriação de uma residência é definido através de uma avaliação independente, que deve levar em consideração a valorização da área e a estrutura física do imóvel, além do valor venal do IPTU, estipulado pela própria prefeitura. Moradores denunciaram a redução drástica do valor venal em 2012, interferindo nessa avaliação.

É o caso de dona Antonieta Bezerra, 70, que mora na última casa da extensão do lote dois. O valor venal de seu imóvel passou de R$ 102,503 mil em 2011 para R$ 87,266 mil em 2012. Marcos Dionísio também relata que um comerciante proprietário de um terreno no bairro das Quintas, com valor venal de R$ 448 mil no momento da legalização do imóvel (e taxas correspondentes), viu esse valor baixar para R$ 148 mil ao receber a carta da prefeitura com o valor da indenização.

A rede de Advogados Populares denunciou que os próprios fiscais da prefeitura estavam fazendo a medição e avaliação desses terrenos, de forma unilateral. Por isso, o MP pretende nomear um perito responsável pelas avaliações que será acompanhado por representantes do Comitê Popular para comprovar a regularidade dos trabalhos.

Segundo o secretário adjunto da Semopi, Caio Múcio, todas as desapropriações feitas pelo município passam por uma comissão independente, a Comissão de Avaliação de Imóveis para Desapropriações (CAID), composta por três engenheiras. “Até agora, quem foi avaliado, não reclamou do preço”, afirmou. Ainda segundo Caio, o valor total para fins de desapropriação não está fechado. Depende da finalização de todas as avaliações.

Apesar de nenhuma desapropriação ter sido feita até agora, a Semopi considera que as obras de mobilidade já começaram, devido ao início dos desvios necessários para interditar o tráfego e sinalizar as vias nos pontos onde o projeto deve passar. “A obra, se começar em junho, deverá estar pronta em abril de 2014, a um mês do início do mundial. Mas qualquer obra pode ser antecipada se aumentarmos a produtividade”, afirma.

Após a audiência pública da próxima sexta, 22, o secretário acredita que não haverá mais nenhuma pendência que possa atrasar novamente as obras.

“Essa obra já melhora bastante o tráfego em Natal principalmente quando o aeroporto estiver funcionando, tornando a ligação rápida e segura. Isso tudo, a meu ver, como morador da cidade e como usuário de carro, resolve bastante. Precisa de mais coisa, lógico, mas essa é uma parte importante, principalmente pelo novo aeroporto”, explicou o secretário.

Do outro lado da história, moradores com dona Osanete, em Lagoa Nova, seu Antônio e dona Maria Eunice, no bairro das Quintas, correm contra o tempo para regularizar a declaração pública da casa e entrar com a ação de usucapião, para terem ao menos direito à indenização do imóvel.

Nenhum deles é contra a Copa do mundo em Natal, mas todos querem fazer parte do bom legado.

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