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Reportagem

A pior profissão do mundo

Nos últimos dez anos, a frustração e a tendência depressiva aumentaram entre jornalistas brasileiros – assim como a “naturalização do assédio” nas redações

Reportagem
10 de junho de 2013
14:55
Este artigo tem mais de 11 ano

Todo ano, o site americano CareerCast.com elenca uma lista de 200 profissões, classificando-as da melhor à pior a partir de cinco critérios: ambiente de trabalho, salário, nível de estresse, exigência física e condições de contratação. Pois bem. Em 2013, após alguns anos figurando entre as dez piores, a profissão de repórter de jornal chegou ao fundo do poço, ficando em 200◦ lugar na lista, atrás de lenhador, militar e trabalhador de fazenda de gado.

A pesquisa, que não tem lá muito critério científico, é mais um sinal da percepção de que a indústria do jornalismo impresso está em crise no mundo. Segundo levantamento da Associação Mundial de Jornais e Publishers, que reuniu dados de 90% das publicações no mundo, os jornais encerraram o ano passado com queda de 0,9% na circulação e de 2% na receita publicitária.

Um relatório recente do instituto Tow Center, da Universidade de Columbia, constata que se “anunciantes nunca tiveram interesse em apoiar agências de notícias”, a relação entre as receitas de publicidade e salários de jornalistas sempre esteve em função da capacidade das editoras de extrair lucro. Mas, para os pesquisadores do Tow Center, se isso funcionou bem no século 20, não funciona mais. Nos EUA, a receita publicitária tradicional, base do financiamento do jornalismo desde de 1830 começou a cair em 2006 – exatamente na época em que começaram as chamadas “integrações impresso-online” no mercado de notícias.

Aqui no Brasil, os veículos de grande porte negam que haja crise, mas ao menos no que se refere ao trabalho do jornalista, a decadência é inegável – e verificável. Lançada em 7 de abril, dia do jornalista, a pesquisa “Quem é o jornalista brasileiro?”, realizada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em convênio com a Federação Nacional dos Jornalistas – FENAJ, analisou características demográficas, políticas e do trabalho dos profissionais de jornalismo, a partir de uma enquete respondida por 2.731 pessoas. Constatou que 45,1 % dos jornalistas trabalham mais de 8 diárias e a maioria da categoria – quase 60% – tem renda de até cinco salários mínimos, o que equivale a R$ 3.110,00 (em valores de 2012, ano de realização da pesquisa).

Caso o infográfico não funcione, clique aqui (recomendado para dispositivos Android)

Conforme reiteram os sindicatos, a rotina dos trabalhadores dos jornais é de pelo menos 10 horas por dia, sem contar os plantões. No caso do Diário Catarinense, por exemplo, os repórteres, diagramadores e redatores começaram a registrar entrada e saída do trabalho apenas em março de 2011, mas os editores e subeditores são contratados em condição de “emprego de confiança” com horário flexível, ou seja, não batem cartão. Em termos práticos, como eles têm de fazer a pauta para o dia seguinte e fechar o jornal, acabam trabalhando entre nove e 11 horas por dia, sem receber remuneração pelas horas extras.

Dos jornalistas atuantes na mídia, 59,8% possuem carteira assinada. Outros dados demonstram como variadas formas de contratação têm sido adotadas. Ao somar o número de freelancers (11,9%) com os jornalistas que possuem contrato de prestação de serviços (8,1%) e os que firmaram contrato de pessoa jurídica, os PJs (6,8%), são 26,8% de todos os trabalhadores de mídia. O percentual de freelancers em atuação na mídia é duas vezes maior que o de freelancers fora da mídia.

Tem mais: segundo a pesquisa da UFSC, a maioria dos profissionais é composta por mulheres de até 30 anos, e é justamente esse grupo que integra a menor faixa salarial da categoria; as mulheres são minoria em todas as faixas superiores a cinco salários mínimos. Apenas 8% dos jornalistas têm mais de 50 anos.

 

Propriedade cruzada, trabalho dobrado

Seis em cada dez jornalistas que trabalham na mídia, em veículos de comunicação e produtoras de conteúdo, por exemplo, exercem sua profissão em meios impressos, setor mais afetado com as recentes demissões, embora muitas vezes publiquem textos também nas publicações online ou em agências de notícias de propriedade do grupo que edita o jornal.

Trata-se da continuação de uma política adotada pela indústria de notícias na última década. Os grandes conglomerados aproveitam a condição de ter propriedade cruzada de vários veículos de comunicação e vão “convergindo” também os processos de trabalho.

Os donos de jornais – em um processo de “sinergia” – integraram as redações de modo a eliminar a separação entre trabalhadores do online e do impresso, economizando custos com recursos humanos enquanto adquiriam novas tecnologias de organização de dados, captação e edição de vídeos e de transmissão das informações para desdobrar o conteúdo em tablets e celulares, por exemplo. O mesmo corpo de jornalistas, arrochado pelas demissões, tem de produzir conteúdo nos mais diferentes formatos para o impresso e para a internet. Diagramadores e editores de arte estão sendo treinados para produzir infográficos animados e layout para o papel e para a internet; os repórteres-fotográficos agora têm que fazer cursos de técnicas de filmagem e edição de vídeos. É a chamada “redação convergente”.

“O processo de digitalização facilitou muito. Porque eu vou pagar R$ 2.000,00 em uma viagem se eu posso pagar R$ 100,00 em uma foto?”, observa o repórter-fotográfico Lula Marques, recém-demitido pela Folha, explicando por que a nova organização atinge especialmente os fotógrafos. É uma raridade encontrar algum veículo que contrata formalmente esses profissionais da imagem. O trabalho deles costuma ser substituído pelo conteúdo de agências ou pelo acúmulo de tarefas do repórteres de texto, que passam também a fazer imagens – ainda que, muitas vezes, com qualidade inferior.

A “Pejotização”

José – o nome é fictício – trabalhou no Grupo Estado por quatro anos sem registro em carteira e chegou à função de editor-assistente. “Entrei como frila na Agência Estado para cobrir férias e, em 2004, entrei no Estadão. Fiquei quatro anos lá, trabalhando diariamente sem registro em carteira, como frila fixo. Nenhum documento, nenhuma nota, nenhum contrato que provasse que eu trabalhei lá”.
Se o leitor é profissional de outra área, saiba que “frila fixo”, figura muito utilizada nas redações, é um funcionário que trabalha como contratado, como subordinação e horário fixo, mas sem benefícios trabalhistas, como o registro em carteira. José tentou negociar a contratação dele durante todo esse período, no qual houve pelo menos três trocas de chefia. Nunca foi contratado. “Toda vez que trocava de chefe, eu tinha que renegociar”, conta, explicando que a situação acabou por se tornar insustentável. “Eu era bem avaliado pelas chefias e continuava sendo um colaborador, sem nenhum direito trabalhista”. Saiu de lá para uma empresa de outro ramo da comunicação. Ofendido com a maneira como foi tratado, José procurou o advogado do sindicato, que o orientou a processar o jornal. “Eu tinha horário para entrar e para sair, tinha um computador com meu login e senha. Mas precisava de testemunhas, o que era mais difícil”. O caso ainda segue na Justiça.

Segundo o advogado trabalhista Kiyomori Mori, a forma mais comum de precarização do trabalho de jornalistas é o contrato de indivíduos através de empresas individuais – que eles são obrigados a abrir – como Pessoa Jurídica (PJ), caso de José. Além disso, nos contratos PJ, muitas empresas tentam se proteger de ações trabalhistas colocando cláusulas de multa, explica Mori: “Se o contrato for levado para a Justiça do trabalho, o contratado tem de indenizar a empresa com R$ 300 mil”, exemplifica. “Por isso, quem entra na Justiça, tem de pedir a nulidade do contrato firmado com a empresa antes de tudo”, alerta o advogado.

No final do ano passado, o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo entrou com uma ação contra a editora Abril no Ministério do Trabalho pela “pejotização” dos funcionários. “A empresa não negociou com o sindicato, mas reduziu praticamente os ‘frilas fixos’, contratando 120 deles. A gente apurou, indo de redação em redação, que foram dispensados entre 30 e 40”, diz Paulo Zocchi, do Sindicato de Jornalistas de São Paulo.

Aos 53 anos, com 28 anos de jornalismo, Paulo, que trabalha na mesma editora Abril, faz parte de um “pequeno extrato” de colegas que têm mais de 50 anos. “Você tem uma quantidade gigantesca de jovens na faixa do 20 e tantos e 30 anos, aqui na Abril. O que acontece? Com o tempo a empresa vai simplesmente substituindo. Não é uma demissão em massa, é uma rotatividade mais difícil do sindicato impedir que aconteça”, diz, qualificando a profissão de “ingrata”.

Frustração e saúde abalada

A precarização do ambiente de trabalho chega a afetar seriamente a saúde dos profissionais de comunicação, como atesta o pesquisador da Universidade de Campinas (Unicamp) José Roberto Heloani, que desde 2002 investiga os problemas de saúde no ambiente de trabalho do jornalista. Ele diz que nos últimos dez anos a situação só piorou. Sua terceira pesquisa sobre o assunto, que está em vias de conclusão, traz um panorama soturno: entre 2002 e 2013, a pesquisa apontou maior tendência depressiva nos jornalistas e uso de medicamentos lícitos e ilícitos para amenizar a angústia. Roberto também identificou um fenômeno chamado “naturalização do assédio”.

Ele cita o “pescoção”, nome que se dá a uma jornada de até 14 horas seguidas nas sextas-feiras, para o fechamento da edição de sábado e de domingo. Para os sindicatos, a jornada é ilegal, já que o máximo permitido por lei a qualquer categoria são dez horas diárias. O “pescoção” não é remunerado e, em alguns casos, o funcionário também tem que trabalhar no sábado. Isso significa também o desrespeito ao intervalo de 11 horas entre uma jornada de trabalho e outra, garantido pela CLT. Na maioria das vezes, a tarefa é encarada com naturalidade pelos jornalistas, simplesmente como parte da profissão.

“A gente tem visto uma grande dificuldade de compreender pescoções e plantões como uma coisa ruim. As pessoas encaram como se fosse natural”, diz o pesquisador. Segundo ele, os profissionais desse setor têm, em média, um final de semana livre por mês. Isso leva ao rompimento de relacionamentos e problemas com a família, além de uma situação muito comprometedora de estresse patológico e exaustão, que é quando a pessoa tem a sensação de que o sofrimento não vai acabar mais. “Grande parte dos profissionais entra nesse sistema com a esperança de que o sofrimento acabe no curto prazo. Quem aguenta, tenta aceitar que o sofrimento faz parte da profissão e o que é preciso aceitá-lo como se fosse natural”. Segundo ele, a ausência de vínculo formal e as poucas possibilidades de esse cenário se reverter aumentam a situação de insegurança e, consequentemente, as chances de perturbações psíquicas. “Não existe possibilidade de, ao mudar de emprego, essa situação melhorar”.

A idealização da profissão seria outro problema peculiar da profissão de jornalista. “O jornalismo é uma profissão que tem um certo glamour, que, no imaginário da população, ainda tem algo de heroico. Então, no primeiro choque com a realidade, normalmente já no estágio, o profissional tem um certo desencantamento que depois, quando ele começa a trabalhar, vira frustração. Isso é um problema sério. Essa frustração é resultado de um conflito entre a fantasia e o mundo real do trabalho. Não é à toa que alguns, depois de se formar, poucos meses ou anos, vão para outra profissão”.

Para aliviar a tensão, muitos dos que ficam consomem cada vez mais álcool e ansiolíticos, como calmantes. “O aumento do consumo de álcool e drogas foram significativos em relação à última pesquisa, realizada em 2005”, diz o pesquisador. “É comum começar com álcool. Quando aumenta a tolerância à bebida, ou seja, o efeito relaxante fica menor, a pessoa começa a beber cada vez mais até um ponto que começa a usar medicamentos para insônia ou algum ansiolítico. Só que, assim como aumenta a tolerância ao álcool, aumenta a tolerância ao ansiolítico. E o profissional também abusa do medicamento. Paralelamente, ele começa a sentir os efeitos colaterais da medicação, como falta de concentração e depressão. Com isso, ele começa a tomar antidepressivo. Resultado: nessa lógica de tomar entorpecentes, muitos trabalhadores começam a partir para psicofármacos, como cocaína, para poder trabalhar. No começo, o uso da droga melhora a memória, raciocínio e o vigor físico para uma rotina de 12 horas de trabalho por dia. Mas, tal como outra medicação, a pessoa começa a criar tolerância e os efeitos ‘bons’ começam a ser mais fracos. É aí que a pessoa se afunda”.

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