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Em entrevista, duas ativistas do movimento de mulheres explicam como mobilizaram a opinião pública do país vizinho e contam o que estão fazendo para buscar a aprovação do aborto seguro no Senado no próximo dia 8

Entrevista
10 de julho de 2018
10:55
Este artigo tem mais de 6 ano

Na madrugada do dia 14 de junho, com a Praça do Congresso de Buenos Aires tomada por milhares de pessoas – em sua maioria mulheres – empunhando panos e bandeiras verdes com os escritos “educación sexual para decidir, anticonceptivos para no abortar, aborto legal para no morir”, a lei que permite o aborto até a 14a semana por decisão da mulher foi aprovada na Câmara dos Deputados da Argentina por 129 a favor, 125 contra e uma abstenção.

Ao todo, houve mais de 700 expositores, a favor e contra, em audiências públicas que duraram semanas e foram televisionadas. O debate principal era se a Argentina deveria aprovar o aborto seguro para evitar a morte de mulheres, como uma questão de saúde pública. A decisão poderia parecer impossível à primeira vista, com um Congresso conservador e um presidente declaradamente contra a aprovação da lei, que foi redigida em sua totalidade pelo movimento de mulheres que têm lutado há mais de dez anos em muitas frentes para conseguir o direito ao aborto legal.

Milhares de pessoas empunhando panos e bandeiras verdes com os escritos “educación sexual para decidir, anticonceptivos para no abortar, aborto legal para no morir”

Em entrevistas individuais à Pública, Celeste Mac Dougall, ativista da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Seguro e Gratuito, e Agustina Frontera, escritora, jornalista e membro do movimento Ni Una Menos – que ficou mundialmente conhecido por levar milhões de pessoas às ruas em 2015 e 2016 para protestar contra o feminicídio de uma garota de 14 anos enterrada viva e grávida no quintal da casa do namorado e outra de 16 anos empalada até a morte –, contam um pouco sobre esse processo de mobilização social e política, autônomo, horizontal e inclusivo. As entrevistas, embora tenham sido feitas separadamente, foram editadas em conjunto porque se complementam.

Como nasceu o movimento Ni Una Menos?

Agustina: Ni Una Menos nasce em março de 2015 a partir de uma série de seminários que fizemos – jornalistas, pesquisadoras e escritoras – na Biblioteca Nacional de Buenos Aires por conta de feminicídios atrozes que se tornaram públicos nos meios de comunicação e que nós acreditamos que mereciam um discurso público, coletivo, em repúdio a essas violências, deixando bem claro que não se tratava de casos isolados, mas de um plano sistemático de violência contra as mulheres. Esses seminários se chamaram “Ni Una Menos” e nós convocamos uma mobilização para 3 de junho de 2015 que foi absolutamente massiva, colocou mais de 1 milhão de pessoas nas ruas. E os temas principais eram não apenas os feminicídios e a violência física contra as mulheres, mas também provocar as diferentes instâncias do Estado para erradicá-los.

Quem faz parte do movimento?

Agustina: O movimento tem uma infinidade de pessoas, movimentos, organizações, agrupações, foi apropriado por uma grande parte da população não só na Argentina, mas em muitos outros países da América Latina e do mundo. As pautas também foram evoluindo, e o que começou com uma ação contra os feminicídios acabou abraçando um monte de outras críticas ao sistema patriarcal e também ao sistema capitalista e ao modelo neoliberal. Parece-me que a grande conquista de Ni Una Menos foi a possibilidade de conectar diferentes violências que culminam em uma violência mais extrema, na violência física concreta contra uma mulher ou alguém de identidade não hegemônica.

O que é a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito? Quem faz parte dela e há quanto tempo existe?

Celeste Mac Dougall é ativista da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Seguro e Gratuito

Celeste: A campanha nasceu em 2005 em um esforço conjunto das organizações que lutam pelo direito ao aborto, em um encontro de mulheres. São 13 anos de luta. Nasce nacional, com diversas pessoas e movimentos envolvidos, e nestes anos nós temos realizado várias ações a partir de uma diretriz integral que é “educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer”. Nosso objetivo era o debate e a sanção de um projeto de lei pela interrupção voluntária da gravidez, que nós redigimos de maneira coletiva, apresentamos pela primeira vez em 2007 e a cada dois anos voltamos a apresentar, até que este ano começou a ser tratado no Congresso.

A campanha existe há algum tempo então. Como você avalia sua evolução?

Celeste: Todos esses anos nós realizamos uma multiplicidade de ações, ou seja, não é que enquanto ele não caminhava no Congresso não fazíamos nada. Realizamos um trabalho inclusive para que, no momento em que o aborto se tornasse legal, não fosse uma lei morta, mas um direito efetivo. Um trabalho com profissionais de saúde que terão que realizar a prática, os advogados para que não penalizem as mulheres, um trabalho nas escolas etc. Durante estes anos fomos lutando pelo direito ao aborto em todos os aspectos e muito mais, disputando lugar na universidade, até um sem-número de atividades, fortalecendo também as outras cidades para que fosse uma força nacional etc.

Quem são e o que pedem as mulheres que lutam pela descriminalização do aborto na Argentina?

Celeste: Todo tipo de mulher, e não só as mulheres, mas também os homens, transexuais, meninas adolescentes muito jovens que estão se somando agora à luta até militantes históricas do feminismo, passando por mulheres que passaram por experiências de aborto, todo o tipo de mulher.

O movimento é histórico, mas apenas agora vocês conseguiram avançar com o projeto no Congresso. A que atribui essa vitória?

Celeste: Durante estes anos nós buscamos assinaturas para o projeto com todos os parlamentares e sempre tivemos apoio de deputados e deputadas. O que acontece é que não havia primeiro uma decisão do Executivo como neste governo e houve um nível de pressão social inegável. Para nós, o que acabou forçando o debate e a sanção foi essa pressão tão grande do movimento de mulheres e feministas da Argentina que em algum ponto supera a luta pelo direito ao aborto, mas a luta pelo direito ao aborto é uma demanda urgente, um dos pontos centrais da agenda feminista.

Recentemente, o projeto que pede a descriminalização do aborto na Argentina avançou na Câmara dos Deputados. Por que agora? O que você acha que contribuiu para essa vitória? Tem a ver com a mobilização social ou com a configuração do Congresso? Ou com os dois?

Agustina: Eu creio que o movimento Ni Una Menos ajudou porque se pôs a pressionar politicamente, com a força das ruas e dos meios de comunicação, os políticos, o Executivo e o Legislativo para que discutissem o projeto na Câmara. Tem a ver com a mobilização social, a força e a constância da Campanha Nacional que existe há 13 anos na Argentina. Não creio que tenha a ver com a configuração do Congresso, pois é um Congresso bastante conservador que tem conseguido evitar o tema do aborto, entendido como um avanço nos direitos e liberdades das mulheres gestantes. Então, na verdade foi uma surpresa nesse sentido, no mapa político atual. Uma estratégia que se utilizou foi que a Campanha Nacional apresentou o projeto através de várias forças políticas, não só as forças políticas da esquerda – que são as que usualmente avançam com esse projeto –, mas também com forças da direita, do centro. Foi uma aliança transversal em vários espaços políticos.

Praça do Congresso de Buenos Aires na madrugada de 14 de junho

E que ações você considera efetivas para levar tantas pessoas para as ruas? No Brasil e em muitos países da América Latina, o aborto segue sendo um tema tabu e sua descriminalização é rechaçada por grande parte da sociedade e do Congresso conservador e religioso…

Agustina: No caso de Ni Una Menos, foi muito efetivo recorrer a pessoas conhecidas, celebridades, o que em um momento foi muito conflitivo e contraditório porque algumas dessas pessoas que ajudaram a impulsionar o movimento em outros aspectos de suas vidas eram machistas, como por exemplo um apresentador muito famoso de televisão, mas isso fez com que o movimento se difundisse rapidamente em muitas frentes sociais e políticas. Ni Una Menos, no começo, era um movimento despolitizado, não estava associado a uma crítica radical da sociedade, era um grito contra violências contra as mulheres. Também foram muito importantes tanto para o Ni Una Menos quanto para a pauta da descriminalização do aborto os movimentos de secundaristas. Eles são os que andam nas ruas o tempo todo, com os panos verdes nas mochilas. E essa presença da cor verde e a facilidade com que defendem a descriminalização do aborto – tanto mulheres como homens jovens – me parece que tiveram um efeito de pressão muito interessante sobre os governantes.

O STF convocou audiências públicas para decidir a descriminalização do aborto no Brasil. Algo a dizer ao movimento de mulheres daqui?

Celeste: É difícil emular exatamente as experiências, mas é necessário pensar nas experiências não somente do que nos uniu para lutar, que foi uma diretriz e uma necessidade, uma exigência. Que o aborto seja lei e que haja uma diretriz integral, educação para decidir, anticoncepcional para não abortar e aborto legal para não morrer. Não apenas um acordo político, mas um transitar metodológico, para mim, é fundamental. E esse método não teve nem presidente nem dirigente, tudo se fez por consenso e não por votação, onde se avança a partir dos acordos. Inclui quem não se diz feminista também, mas nasce como uma luta feminista, a federalização e abertura total à participação pessoal, política e fundamentalmente coletiva. Então, há uma questão política, mas também uma questão metodológica que tem a ver como nós, feministas, construímos.

Quais são as principais pautas do movimento feminista argentino hoje?

Agustina: Hoje nossas energias estão concentradas na descriminalização do aborto, mas o movimento feminista argentino também tem construído um sujeito político que inclui lésbicas, travestis, pessoas trans, gays e não inclui só as mulheres das cidades, as mulheres brancas, mas também estamos em aliança com o movimento indígena, com o movimento negro, com as mulheres migrantes. Temos consciência de que o patriarcado está em aliança com o capitalismo e o liberalismo e que nós, como oprimidas, unimos nossas lutas com as lutas de outras e outros oprimidos por diferentes motivos, porque uma pessoa não está sujeita à opressão por apenas uma condição de sua vida, como por exemplo, gênero, mas também classe, nacionalidade, etnia, cultura, idade…

Qual é o próximo passo para garantir que a descriminalização do aborto aconteça na Argentina?

Agustina: Estamos falando com um por um dos senadores que vão votar a aprovação da lei no dia 8 de agosto, que é a votação que define se aprova o projeto ou se vão pedir modificações. Existem muitos senadores indecisos e a sociedade conservadora é muito confusa e confunde os senadores ainda mais. O que a Campanha faz é falar com um por um através de diferentes frentes de poder público, como por exemplo os sindicatos, as organizações de jornalistas e outros espaços que funcionam como aliados e aliadas e que têm interesse, assim como nós, em que a lei do aborto na Argentina seja enfim aprovada.

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