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Entrevista

“Pedalada é chute na transparência e quem paga é o cidadão”

Valdecir Pascoal, presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil, defende o fim de indicações políticas para os TCEs e a criação de um órgão de controle externo nos moldes do Conselho Nacional de Justiça

Entrevista
9 de junho de 2016
12:17
Este artigo tem mais de 7 ano

Conselheiro do Tribunal de Contas de Pernambuco desde 2005, Valdecir Fernandes Pascoal espera que o rigor do Tribunal de Contas da União (TCU) ao reprovar as contas da presidente afastada Dilma Rousseff se reflita nas cortes estaduais. Como comprovou ontem a reportagem da Pública, 17 governadores que utilizaram de artifícios semelhantes às “pedaladas” do governo federal tiveram suas contas aprovadas pelos TCEs, sem sofrer nenhuma punição.

Recém-eleito para o segundo biênio como presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), ele defende mudanças na composição das cortes, com o fim das indicações pelo Executivo, e a criação de um Conselho Nacional para a categoria, nos moldes do Conselho Nacional de Justiça.

(Foto: Atricon)
“A decisão do TCU marcará uma inflexão no comportamento dos gestores e do controle, não tenho dúvidas”, diz Valdecir Fernandes Pascoal (Foto: Atricon)

É correta a analogia de que se o Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição, os Tribunais de Contas são os guardiões da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)? 

Em parte, sim. O controle da correta aplicação dos recursos públicos é tarefa da sociedade e de muitas instituições públicas, a exemplo do Controle Interno e dos Ministérios Públicos, mas os Tribunais de Contas, em razão de suas próprias atribuições constitucionais e de possuírem um quadro de auditores e membros especializados nos temas atinentes ao Direito Financeiro e às finanças públicas, acabam, naturalmente, assumindo um protagonismo maior como guardiões da LRF. Essa atribuição também é ressaltada na própria LRF (capítulo IX, Seção VI), quando incumbe os Tribunais de Contas de serem os principais agentes da fiscalização da lei.

A reprovação das contas da presidente Dilma Rousseff pelo TCU pode implicar no aumento do rigor no julgamento das contas dos governos estaduais pelos TCEs e mais cuidado dos próprios gestores quanto à responsabilidade fiscal? 

A decisão do TCU marcará uma inflexão no comportamento dos gestores e do controle, não tenho dúvidas. Aqueles darão mais importância às regras da lei de responsabilidade fiscal, na medida em que passaram a perceber que a sociedade exige uma postura responsável na aplicação de seus recursos e também porque estarão cientes de que um descompasso grave na área fiscal poderá gerar uma série de consequências para ele, gestor: rejeição de contas, ações penais e de improbidade e até a imputação de crime de responsabilidade, condição necessária para um eventual impeachment.

Por outro lado, os Tribunais de Contas estaduais e municipais também tenderão a seguir o novo paradigma estabelecido pelo TCU no exame das chamadas contas de governadores e prefeitos. Responsabilidade fiscal não tem ideologia: é dever republicano.

Existe consenso sobre o que seria uma pedalada fiscal? Ele virou uma espécie de guarda-chuva para irregularidades fiscais em geral?

A pedalada fiscal existe quando o gestor se vale de operações atípicas com o propósito de maquiar as contas públicas, de sorte a revelar uma situação fiscal melhor do que apresenta a realidade. No caso da União, esse drible macula a confiança nas contas públicas nacionais, gerando fuga de capitais e diminuição dos investimentos, além de adiar medidas de ajustes necessárias para se atingir o equilíbrio. É um chute na transparência e na confiança e quem paga o preço é o cidadão.

Está na hora de uma grande discussão nacional sobre a questão do endividamento público. Falta transparência na questão da dívida e das operações de crédito. Falta regulamentação de alguns limites para a dívida do governo federal e falta criar o Conselho de Gestão Fiscal, previsto na própria LRF, para assegurar a efetiva participação federativa nessa questão.

Leia também: Pelo menos 17 governadores pedalaram impunemente

É muito comum, nos pareceres prévios, limitar-se a”puxões de orelha” a governadores que não entregam documentação que comprove os dados fiscais, o que dificulta a análise pelos TCEs. Se os próprios tribunais se queixam da falta de transparência dos governos, como a população pode acompanhar a execução e a responsabilidade orçamentária e fiscal? A participação popular poderia acrescentar algo ao trabalho dos TCEs?

Essa falta de informações acontece mais no âmbito municipal e cabe ao Tribunal de Contas responsabilizar aqueles que não prestarem contas nos termos exigidos pela lei. Quem administra recursos públicos tem o dever de prestar todas as informações aos órgãos de controle e ao cidadão. Arrisco dizer que a instituição que detém o maior número de informações sobre as gestões públicas no Brasil hoje são os Tribunais de Contas. E a grande maioria deles possui portais de transparência por meio dos quais divulgam estes dados para a população de maneira didática e amigável para facilitar a compreensão.

Cito como exemplo o Portal Tome Conta do TCE de Pernambuco. Nele constam dados atualizados das receitas, despesas, fornecedores, licitações, gastos em educação, saúde, obras inacabadas e até informações sobre doações eleitorais. Isso tudo porque sabemos que o controle não se esgota na atuação dos órgãos de fiscalização. Cabe a nós estimular a transparência e facilitar o controle social e da imprensa sobre o andamento da gestão pública.

As dezenas de recomendações e ressalvas às contas dos governadores, muitas vezes mantidas por anos seguidos, não demonstram uma certa paciência ou benevolência, digamos, com os gestores? É preciso dar mais tempo para que a classe política assimile a LRF? Como justificar a aprovação de contas com rombos bilionários, revisões de metas fiscais efetuadas após o fim do exercício, abertura de créditos suplementares sem previsão orçamentária e sem autorização legislativa, entre outras irregularidades?

Aqui é preciso um esclarecimento. O conteúdo das chamadas contas de governo, aquelas que levam ao Parecer Prévio dos Tribunais de Contas, normalmente analisam as questões mais gerais de governo, como os demonstrativos contábeis e financeiros consolidados, a aplicação mínima em saúde e educação, os limites da LRF, a previdência e programas sociais relevantes. Essas contas, diferentemente das chamadas contas de gestão, não adentram nos pormenores do processamento das despesas, dos contratos. Essa é a principal causa de os Pareceres Prévios, no mais das vezes, apontarem para ressalvas e determinações, considerando o atendimento dos aspectos formais das contas e o princípio da proporcionalidade.

É preciso lembrar que essa realidade era a do TCU até 2014. Ocorre que, não é de hoje, existe uma benfazeja discussão, em todos os Tribunais de Contas, envolvendo corpo técnico, membros e procuradores de contas, sobre a natureza e o alcance dessas contas de governo. Isso tem gerado maior dialética nos julgamentos, sendo, portanto, um forte indicador de que a quebra do paradigma poderá ser uma realidade nacional.

A composição das Cortes de contas é muitas vezes criticada por permitir que os seus quadros incorporem parentes de políticos e mesmo ex-políticos. Um órgão que deve ser estritamente técnico não tem a sua credibilidade diminuída por isto?

Já avançamos muito em relação à composição dos Tribunais de Contas. Antes de 1988, todos os membros eram indicados pelo Chefe do Poder Executivo, como acontece ainda hoje no STF, por exemplo. Atualmente, dois terços dos membros são indicados pelo Poder Legislativo (que, vale lembrar, também é poder fiscalizador) e um terço vem dos Auditores (Ministros e Conselheiros Substitutos) e Procuradores que integram o Ministério Público de Contas. Em tese, trata-se de um modelo avançado.

A Atricon possui uma Resolução em que defende a fiel observância dos requisitos constitucionais para a indicação dos membros dos Tribunais de Contas. Entendemos que o indicado deve ser ficha-limpa e possuir a experiência e os conhecimentos técnicos necessários para o desempenho da função, recomendando que os Tribunais de Contas neguem posse àqueles que notoriamente não atendam aos requisitos constitucionais. Isso tem gerado bons resultados. Temos cobrado publicamente do Poder Legislativo e do Executivo a fiel observância dos parâmetros constitucionais na hora de indicar os membros para os Tribunais de Contas.

De qualquer modo, existe um debate na sociedade, e no próprio parlamento, sobre modelos de composição de Tribunais judiciários e de contas. Embora entenda como bastante razoável o atual modelo, a Atricon está discutindo internamente uma proposta de inversão das indicações,  pela qual 2/3 dos membros seriam escolhidos entre os Auditores (Ministros/Conselheiros Substitutos) e Procuradores de Contas e 1/3 viriam a partir de indicações do Poder Legislativo, pondo fim às indicações livres do Executivo.

Membros dos MPs de Contas se queixaram recentemente de perseguição por parte de alguns TCEs que propuseram medidas para, na visão dos procuradores, dificultar o seu trabalho. Em tese as duas instituições não deveriam trabalhar em parceria?

O fortalecimento do Ministério Público de Contas foi um dos avanços do novo modelo de controle externo criado pela Constituição. É preciso, contudo, responsabilidade e cautela quando se fala em ‘perseguição’, no sentido de algo sistêmico e doloso. Embora a Constituição não tenha fixado o número de procuradores, parece-me razoável que a lei local estabeleça um quantitativo próximo ao número de ministros (nove no TCU) e conselheiros (sete nos Tribunais de Contas estaduais e nos dos Municípios). O MP de Contas junto ao TCU, por exemplo, funciona, e muito bem, com cinco procuradores.

O fundamental é que os procuradores disponham de toda a estrutura e condições para desempenhar as suas atribuições com presteza e independência. Por outro lado, uma redução pontual no número de cargos de procuradores deve vir balizada por diálogo transparente entre o colegiado e os procuradores. Reduzir um ou dois cargos com o único fundamento de economizar em tempos de crise não parece razoável. Tensões são naturais e, algumas vezes, necessárias para se avançar. Mas todos os atores devem pautar as discussões e decisões à luz do interesse público e fugindo do viés estritamente corporativo.

A Proposta de Emenda à Constituição 29 de 2007, de autoria do hoje conselheiro do TCU Vital do Rêgo, dorme no Congresso, pronta para ser votada em plenário desde 2009. O senhor apoia a PEC, que pretende criar o Conselho Nacional dos Tribunais de Contas? A Atricon tem se articulado para tentar fazer com que a medida avance? Que outros projetos, legislativos ou não, estão na pauta da Associação?

A Atricon defende um Conselho Nacional para os Tribunais de Contas – CNTC, nos moldes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). É fundamental para melhorar ainda mais nosso desempenho sistêmico. Os Tribunais de Contas avançaram muito nos últimos 25 anos, mas, como bem diz o Ministro Carlos Britto, nós precisamos utilizar toda a nossa capacidade de controle presenteada pela Lei Maior.

Quanto à PEC 28, nossa posição é de que ela atende, em grande parte, o que seria um modelo ideal de CNTC. Ainda este ano iremos formalizar proposta pontual de emenda à referida PEC com a exclusão dos Procuradores de Contas de sua jurisdição, por entender que eles devem estar no âmbito do CNMP.

A criação do CNTC, contudo, sofre uma forte resistência dos congressistas. Faremos o possível para sensibilizá-los neste sentido e atuaremos também junto ao TCU, instituição que auxilia o Congresso Nacional no exercício do controle externo, para defender e nos ajudar publicamente a convencer o Parlamento sobre a necessidade do CNTC. Estou certo de que o atual contexto nacional, notadamente o apoio da sociedade ao fortalecimento do controle público com vistas a combater a má gestão e a corrupção, contribuirá para o convencimento dos deputados e senadores.

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