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Conheça a batalha dos tradicionais vendedores de comida no Mineirão, expulsos do seu local de trabalho depois da reforma para a Copa

Reportagem
14 de setembro de 2012
09:00
Este artigo tem mais de 11 ano

Será um estádio moderno, com espaço para 65 mil torcedores e uma área externa de 80 mil metros quadrados, com praças de convivência, 52 lojas, estacionamento com 2.800 vagas e até um Museu do Futebol. Além disso, depois da reforma do estádio Governador Magalhães Pinto, o Mineirão, a histórica fachada se manterá preservada, compondo o projeto arquitetônico da Lagoa da Pampulha, um dos mais famosos pontos turísticos de Belo Horizonte, assinado por Oscar Niemeyer.

Mas, enquanto a capital mineira se orgulha do novo Mineirão, Que deve ser concluída em cerpm dias, muitas famílias que vendiam alimentos no entorno do estádio enfrentam um sério problema. Os 150 vendedores que proviam comida para os torcedores desde 1964 nas suas barracas foram retirados do local em 6 de junho de 2010, quando as obras de reforma começaram. O estádio, que antes era de administração pública, passou a ser administrado por um consórcio privado, Minas Arena – composto pelas empresas Construcap, Egesa e HAP Engenharia – pelos próximos 25 anos.

Tradição 

A história destes vendedores se confunde com a do próprio Mineirão. “O pessoal vinha da Região Metropolitana e ia se instalando ali em volta, formando aquele grupo em uma época que não tinha nem estacionamento, era só poeira mesmo” lembra o vendedor Ernani Francisco Pereira.

Com o tempo, esse comércio de frutas, bebidas e churrasquinho foi se consolidando e se tornou parada obrigatória para mineiros e turistas em busca dos tradicionais sanduíches de pernil e o célebre prato de feijão tropeiro, ou “Tropeiro do Mineirão” que já saiu até em jornais e livros de receita. Por isso, a notícia do fim das barraquinhas foi um choque. “Nos avisaram que não teríamos mais nada, que estávamos fora do estádio e poderíamos esquecer. Chegaram a falar até que iam ‘acabar com essa bagunça’”, conta Ernani.

Para Selma Salbino da Silva, de 44 anos, que cresceu nos arredores do Mineirão, não tem sido nada fácil. Em 1982, aos 14 anos, ela começou a ajudar a mãe e os três irmãos a vender chup-chup (saquinho com suco de frutas congelado) nos dias de jogo. Com o tempo, a família foi juntando dinheiro e começou a vender frutas, churrasquinho, até montar uma barraca de tropeiro. Graças a esses anos de trabalho, conseguiram comprar um terreno na capital mineira, onde Selma e seus irmãos estão terminando de construir seus barracos.

Desde que sua barraca foi retirada do Mineirão, ela percorre outros eventos como a feira de artesanato realizada duas vezes por semana no ginásio poliesportivo Felipe Hanriot Drummond, mais conhecido como Mineirinho. “Ficamos todos muito desestabilizados. Tínhamos uma renda certa e não temos mais, a gente só trabalha quando tem algum evento. Meus filhos também sentem muito. Até hoje tenho que explicar para eles que não ganho o mesmo tanto”, lamenta ela, que é a atual presidente da Associação dos Barraqueiros do Mineirão (ABAEM). Criada em 2000, a ABAEM reúne 132 ex-donos de barraquinhas de comida, que decidiram brigar na justiça pelos seus direitos.

A briga da ABAEM

Desde que foram avisados de que teriam que sair do Mineirão, a ABAEM tem lutado para tentar garantir um espaço de trabalho aos populares “barraqueiros” e conseguiu realizar, em 2010, audiências públicas na Câmara Municipal, na Assembleia Legislativa do Estado e no Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA-MG).

Em junho de 2011, a organização conseguiu realizar reuniões mensais com a Defensoria Pública, o Ministério Público Federal e a Secretaria de Estado Extraordinária da Copa do Mundo em Minas Gerais (Secopa-MG), que acionou a Minas Arena, consórcio responsável pelas obras do Mineirão, para discutir a situação dos vendedores ambulantes. A empresa, por sua vez, contratou a Rede Cidadã, organização social que articula empresas visando capacitar mão de obra e buscar oportunidades de trabalho para eles.

A Secopa-MG ofereceu aos barraqueiros vagas de trabalho nas obras do estádio e também cursos de capacitação profissional nas áreas de segurança alimentar, atendimento ao cliente e informação turística, em parceria com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes e o Sebrae.

Nenhum dos vendedores ambulantes, contudo, aceitou trabalhar nas obras do estádio, e a assessoria, por sua vez, não soube informar quantos dos que foram encaminhados ao Sistema Nacional de Empregos (Sine) e à Usina do Trabalho – iniciativa do Governo de Minas para inserir pessoas desempregadas no mercado – estão de fato trabalhando devido à iniciativa. A maioria dos vendedores quer continuar trabalhando com seu próprio negócio, além de buscar uma alternativa que não seja temporária.

“Ao invés de virem e lutarem pra conseguir um espaço pra gente, estão nos empurrando com a barriga, oferecendo para trabalhar de babá, cuidar de idoso, sabe como que é? E muita gente vai às reuniões achando que vai conseguir espaço no Mineirão, fica perdido e desiste de acompanhar os cursos”, conta Sérgio de Souza Duarte, que passou a vida inteira trabalhando como ambulante até montar sua barraca em  1990.

Sérgio é um dos 96 vendedores cadastrados pela Rede Cidadã. “Já fiz três cursos da Secopa, participei de três palestras da Rede Cidadã e quero agora fazer o curso de microempreendedorismo”, conta o mineiro, que sonha em montar uma distribuidora de bebidas no barraco que vem construindo há 28 anos. Além disso, uma de suas três filhas começou a trabalhar como operadora de telemarketing, graças à Rede Cidadã, e outra está na fila para conseguir um emprego.

Segundo Ernani Francisco Pereira, que também é fundador da ABAEM, para os barraqueiros que eram donos do seu negócio é muito difícil se adaptar a um emprego. “Não era só uma questão de trabalho, de renda ali no Mineirão. Se considerarmos que alguns estavam lá há mais de 30, 50 anos, os vendedores tinham um vínculo com a torcida e até uma questão psicológica com o trabalho deles. Muitos simplesmente não conseguem mais trabalhar com outra coisa, não têm estímulo”.

De acordo com a Rede Cidadã, dos 96 barraqueiros cadastrados, 68% possui ensino fundamental incompleto e 89% possuimalguma renda, seja aposentadoria ou bicos como barraqueiros e ambulantes.

“Relegados à própria sorte”

Em novembro do ano passado, a Procuradoria dos Direitos do Cidadão do MPF, em conjunto com a Defensoria Pública, encaminhou uma recomendação à Prefeitura de Belo Horizonte e ao Governo do Estado alegando que as pessoas que trabalhavam no Mineirão “estão passando fome, sendo relegadas à sua própria sorte, em decorrência de um evento que, ao invés de promover a melhoria das condições de vida da população mais carente, tem sido responsável pelo seu empobrecimento e degradação das condições de vida”.

O documento aponta ainda que o Estado e a Prefeitura “apesar das sucessivas reuniões realizadas com o propósito de buscar alternativas à falta de recursos em poder adquirir um ‘ponto’ no espaço privado, vêm se negando a tomar as medidas que propiciem o restabelecimento das condições de dignidade destas famílias”.

O texto recomenda que as autoridades estaduais e municipais providenciem medidas compensatórias, como pagar uma indenização pelos lucros perdidos aos vendedores, incluí-los em outras feiras e eventos culturais na cidade, ou criar espaços públicos com telões, mesas e cadeiras durante a Copa do Mundo onde eles possam trabalhar durante o evento, além de garantir um espaço de trabalho depois.

“O estado e a prefeitura alegam que podem retirar a licença deles a qualquer momento, mas no direito moderno se considera o direito a um não comportamento contraditório”, explica a defensora Flávia Marcelle Ferreira, que acompanha o caso dos vendedores. “Isto é, se uma das partes vinha se comportando de uma forma durante anos, ela não pode simplesmente mudar de uma hora para a outra”. Segundo ela, por muito tempo não houve fiscalização por parte das autoridades. Durante 4 anos, entre 1994 e 1998, os “barraqueiros” pagaram por um alvará de funcionamento da prefeitura, até que a cobrança foi eliminada por se tratar de uma área estadual. A partir de 2005, a Ademg (Administração de Estádios do Estado de Minas Gerais, autarquia responsável pela administração do Mineirão até a sua privatização) começou a cobrar uma taxa semanal deles. Para Flávia, se as autoridades deixaram por tanto tempo os barraqueiros atuarem na região, e inclusive recolheram taxas, não podem simplesmente ignorar o problema agora.

Hoje em dias as negociações seguem, e está sendo avaliada a possibilidade de construir, depois do Mundial, quiosques para os “barraqueiros” venderem comida mineira. Mas só depois; durante o evento, a administração é da FIFA, que manterá uma zona de exclusão onde só se comercializará produtos aprovados por ela. Segundo o consórcio Minas Arena, não há nenhuma definição sobre quem utilizará os espaços comerciais após o fim do megaevento.

Diante desse cenário de incertezas, os ambulantes seguem brigando pelo direito de trabalhar, durante e depois da Copa: “A gente corre risco de tomar prejuízo [na Copa], de chegarem e tomarem os produtos, mas de um jeito ou do outro estamos aí. Só vou parar quando morrer mesmo”, conclui Sérgio.

Já Selma quer voltar ao Mineirão, na esperança de que seus filhos consigam um trabalho melhor: “Espero que eles estudem e se formem, para não passar por isso. Eu sobrevivi e criei eles por causa do Mineirão. Mas hoje não temos mais lugar”.

 

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