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Reportagem

Tão americano quanto João da Silva

Documentos mostram diferenças de tratamento entre o norte-americano Fred Morris e Paulo Stuart Wright, que possuía dupla nacionalidade, ambos presos e torturados durante a ditadura brasileira

Reportagem
7 de abril de 2013
22:04
Este artigo tem mais de 11 ano

Frederick Birten Morris e Paulo Stuart Wright: o primeiro, um pastor metodista em missão no nordeste brasileiro. O segundo, filho de dois missionários norte-americanos nascido no interior de Santa Catarina. Além da cidadania americana os dois tinham outra coisa em comum: experimentaram o pior lado da ditadura brasileira.

Coincidentemente ou não, Morris, que teve sua condição de cidadão americano reconhecida e contou com a ajuda das autoridades de seu país, sobreviveu, enquanto Wright, com dupla cidadania, morreu vítima de torturas no final de 1973 e seu corpo nunca foi encontrado.

O peso da cidadania americana e da atitude dos EUA diante de ambos os casos revela-se nos documentos do projeto PlusD do WikiLeaks sobre os bastidores das investigações a respeito de Wright e Morris, presos e torturados em setembro de 1973 e setembro de 1974, respectivamente. Tendo à frente das buscas o embaixador americano em Brasília, John Crimmins, e Richard Brown, cônsul dos EUA no Recife, os telegramas mostram o início de uma crise diplomática motivada pelo sumiço de Morris e também como a dupla-cidadania de Wright foi usada pelas autoridades norte-americanas para desobrigá-las de atuar.

Subversivos, comunistas, fugitivos, clandestinos

Data desconhecida, entre julho e agosto de 1973, Recife

Um tiroteio entre agentes do Estado e um grupo de “subversivos” levou à prisão um indivíduo que atendia por “Antonio”. Ferido, Antonio foi transferido para São Paulo onde as autoridades militares o aguardavam para o interrogatório sob a prerrogativa de que ele havia assumido a liderança do movimento Ação Popular após o chefe anterior ter se exilado no exterior. “Antonio”, como foi descoberto posteriormente, era o codinome de Paulo Stuart Wright, que foi preso junto com outros membros da AP, movimento descrito pelo governo como “clandestino, com inspirações cristãs, dominado por comunistas e subversivos”.

30 de setembro de 1974, Recife

No apartamento 302 do prédio localizado no número 146 da Rua Vicente Meira, no bairro Espinheiro, o americano Fred Morris foi levado sob custódia por agentes de segurança brasileiros, sem maiores explicações, tendo os vizinhos como testemunha. Sobre o preso recaíam acusações que o colocavam como um agente comunista que promovia atividades subversivas e oferecia abrigo a outros comunistas em seu apartamento, ou até como um agente da CIA infiltrado nos movimentos contrários à ditadura brasileira. Além de Morris, a empregada e um amigo americano, Phillip Hanson, também foram levados presos naquela noite.

O caminho até o porão

Nos documentos fica clara a trajetória que levou Wright e Morris às incontáveis horas de interrogatório e sessões de tortura nos porões do DOI-CODI, em São Paulo, e numa cela escura e sem ventilação no Quartel-geral do 4º Exército, no Recife, ambos considerados transgressores da Lei de Segurança Nacional.

Era 12 de janeiro de 1964 quando o jovem pastor metodista Frederick Morris chegou pela primeira vez ao Brasil, em missão. Dois anos antes, no sul do país, um outro jovem, Paulo Stuart Wright, lançava-se como candidato e vencia as eleições para deputado estadual em Santa Catarina.

Segundo um comunicado à imprensa divulgado pelo ministro da Justiça em 9 de outubro de 1974, Fred Morris começou a se envolver com grupos de esquerda, como a Ação Popular e o PC do B, após retornar de uma breve temporada nos EUA, em 1970. O documento ainda acusa Morris de abrigar “terroristas” como Alanir Cardoso, chefe do comitê regional do PC do B, preso no apartamento do pastor em 30 de setembro de 1974. E diz que o laboratório fotográfico completo que havia no apartamento seria a origem das fotos e microfilmes ali encontrados – junto com outros documentos – que comprovariam “a colaboração dessa pessoa com círculos subversivos”. Outros depoimentos de “subversivos” apontariam na mesma direção.

Paulo era irmão do reverendo James Wright, que à época era presidente de um grupo de presbiterianos missionários e ficou conhecido pela luta pelos direitos humanos ao lado de Dom Paulo Evaristo Arns. A relação de Paulo com o irmão foi, segundo os documentos, um assunto recorrente nos interrogatórios feitos durante sua detenção no DOI-CODI. Num dos telegramas, é repassada ao consulado a informação publicada pelo jornal “O Estado de S. Paulo” de que Paulo Stuart Wright havia sido incluído numa lista de 14 membros do movimento “marxista-leninista Ação Popular” e condenado à revelia pelo Conselho de Justiça Militar de São Paulo por realizar “atividades subversivas”.

Tão brasileiro quanto “João da Silva”

Apesar de também ser cidadão americano, Paulo Stuart Wright teve sua dupla-cidadania tratada com pouco caso e questionada pelos diplomatas, que estariam sendo pressionados a se envolver no caso em virtude da origem americana do preso. Num dos telegramas, o Departamento de Estado alega que a candidatura de Wright a um cargo político no Brasil representou um “ato de expatriação”. Em outro documento, o cônsul recebe de James Wright, irmão de Paulo, um parecer legal elaborado pelo professor da USP Goffredo da Silva Telles Junior e pela advogada Maria Eugenia Raposo da Silva Telles, no qual eles argumentam que Wright “não perdeu a cidadania americana em virtude de ter exercido seus direitos políticos no Brasil, como um cidadão brasileiro”. Um membro do Ministério das Relações Exteriores, porém, em resposta a um questionamento feito pelo Consulado americano , afirma: “no que diz respeito à legislação, Wright é brasileiro. Vocês podem intervir sobre ele tanto quanto vocês podem intervir sobre ‘João da Silva´, cidadão brasileiro”, diz o funcionário do governo brasileiro.

Já no caso de Frederick Morris, o primeiro cidadão exclusivamente americano a ser torturado no Brasil, houve uma mobilização conjunta entre a Embaixada americana em Brasília e o Consulado do Recife assim que foi constatado seu sumiço. Inicialmente, o governo brasileiro se negou a dar informações sobre o paradeiro de Morris, como o embaixador Crimmins relata ao Departamento de Estado: “O cônsul americano no Recife começou a buscar informações sobre Morris junto às autoridades de segurança brasileiras no dia 1 de outubro. Até dia 2 ele não havia sido informado que Morris estava sob custódia. No dia 2, o cônsul pediu para ver Morris e teve o acesso negado, mesmo citando a Convenção de Viena que aprova o acesso de funcionários consulares para garantir o bem-estar de detidos naturais do país representado pelo consulado. Finalmente, o cônsul foi autorizado a ver Morris apenas no dia 3 de outubro, no quarto em que Morris estava sob custódia das autoridades de segurança brasileiras”.

A resistência do governo brasileiro gerou um início de crise diplomática que rendeu comentários um ano após o episódio, durante um encontro entre Carl Schutz, relações públicas do Consulado e o Coronel João Neiva Távora, relações públicas do 4º Exército. O Coronel confidenciou a Schutz que o governo brasileiro “considerou seriamente declarar o embaixador e o cônsul como persona non grata, como resultado do incidente envolvendo Morris, mas decidiu não tomar nenhuma medida drástica esperando que o governo dos EUA reconhecesse a natureza da situação”.

Choques, pancadas e perguntas

Logo que liberada a entrada do cônsul no quartel-general do 4º Exército, no quarto dia de detenção, Richard Brown encontrou Morris com ferimentos e hematomas nas costelas do lado direito, na nádega esquerda e na região lombar. Além disso, Morris relatou ter sido submetido a sessões de choque nos genitais, pés, mamilo direito e orelha direita e ter sido forçado a permanecer de pé por mais de 24h algemado à cela. O documento ainda diz que Brown viu lacerações no pulso de Morris, que estava possivelmente torcido ou quebrado, dificultando os movimentos da mão direita.

Durante seus dias de cárcere, Fred Morris foi submetido a longas e sucessivas horas de interrogatório, feito por um homem que falava um pouco de inglês e se dizia “chefe dos interrogadores, que recebeu treinamento nos EUA”. Num encontro com o embaixador Crimmins, o pastor contou quais eram os principais interesses do interrogador: “as atividades no Conselho Mundial de Igrejas, a relação com D. Helder Câmara, a posição dentro da Igreja Metodista, vida pessoal e condição financeira”. Morris ainda revelou que a sessão terminou com uma proposta em que lhe foram oferecidas duas escolhas: confessar que ele era comunista ou um agente da CIA. Ele disse não a ambas.

Em 14 de outubro de 1974 o presidente Geisel deferiu o pedido de extradição proposto pelo Ministro da Justiça com base nas ligações de Morris com o PC do B e nos artigos 100 e 108 do Decreto de Lei 66.689 de 11 de junho de 1969 (Como o documento explica, o artigo 100 garante a expulsão de qualquer estrangeiro que vá de encontro à Lei Nacional de Segurança, ordem política ou social, tranquilidade pública, moralidade, economia, ou cujo comportamento seja nocivo e o torne perigoso aos interesses nacionais. O artigo 108 permite a expulsão baseada em investigação sumária embora o direito de defesa contra a expulsão também seja garantido). Morris deixou o país no dia 17 de outubro de 1974.

No caso de Paulo Stuart Wright, os documentos falam muito pouco sobre o período em que o ex-deputado ficou preso no DOI-CODI, em São Paulo. O embaixador entrou em contato diversas vezes com o Ministério de Relações Exteriores e com órgãos militares para saber do paradeiro de Wright e a resposta era quase sempre a mesma: “Ninguém sabe nada sobre ele em nenhum nível”. Foi o irmão de Paulo, James Wright, que apareceu com a pista mais consistente sobre o paradeiro.

Segundo James, uma mulher não-identificada relatou ter visto Paulo na sala de identificação do DOI-CODI em 5 de setembro de 1973; essa foi a última vez que alguém viu Wright vivo. Após esse encontro, a mulher foi liberada da prisão e voltou todos os dias ao DOI-CODI para entregar comida para Paulo por intermédio dos carcereiros. O ritual se repetiu por alguns dias até que na semana entre 10 e 17 de setembro ela foi informada de que Wright não estava mais preso ali. Ela deduziu que Paulo havia sido transferido para o Cenimar, no Rio de Janeiro, que teria interesse em interrogá-lo  por conta das investigações envolvendo o movimento da Ação Popular; essa informação nunca foi confirmada.

Outra informação foi trazida por um seminarista da Igreja Metodista que visitou o chefe do DOI, Major Carlos Alberto Ustra, logo após a prisão para saber sobre o paradeiro e o estado de Wright. Na ocasião, Ustra mostrou ao seminarista o título de eleitor de Wright, que James acreditava estar em posse do irmão na hora em que foi detido. Com informações fragmentadas e desencontradas, o advogado José Carlos Dias, contratado pela família Wright para investigar o caso, concluiu  que Paulo Stuart Wright faleceu entre outubro e novembro de 1973, em local desconhecido, vítima de tortura por agentes de Estado.

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