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Entenda como a Guatemala sentenciou seu ex-ditador por genocídio. É a primeira vez que esse tipo de crime é julgado por uma corte nacional

Reportagem
16 de maio de 2013
18:14
Este artigo tem mais de 10 ano

Efraín Ríos Montt e José Mauricio Rodríguez, generais acusados, em uma sala abarrotada, calorenta, sufocante, eram apenas duas pequenas silhuetas difusas, distantes, em meio a centenas de câmeras, repórteres e pelo menos mil pessoas que haviam ido escutar a sentença contra os dois militares. Era a primeira vez, na América Latina, que chegava a jugar o delito de genocídio em uma corte local. Havia uma atmosfera de incerteza e ansiedade. Havia também rumores de que algumas questões legais, ainda que pendentes, poderiam suspender o debate. Mas não. Quando o tribunal entrou, e a presença dos três juízes criou um profundo silêncio, soube-se que haveria uma sentença. E nada podia detê-la.

Foram necessárias pouco mais de 25 audiências para se chegar a essa última parte do debate. Por este tribunal haviam marchado sobreviventes de massacres, peritos, militares aposentados, ex-guerrilheiros, familiares de centenas de vítimas, antropólogos, estatísticos, sociólogos e até jornalistas. A maioria dos convocados depôs, para que a acusação de genocídio e crimes contra a humanidade pudesse ser provada. Isso por causa da estratégia do Ministério Público e dos advogados dos reclamantes. “Mais de 10 anos de investigação”, como afirmavam eles.

A defesa, por outro lado, foi mais técnica e complicada. A cada dia de audiência, durante o debate (e desde o início do processo), advogados e jornalistas, estavam atentos à estratégia que os militares utilizariam. Liminares, recursos, mandados, reclamações… tudo na possibilidade de retroceder, suspender ou anular o debate. Mas pouquíssimas vezes com a intenção de questionar os crimes julgados.

Nesse contexto, os juízes Yassmín Barrios, Pablo Xitimul e Patricia Bustamante chegaram à última fase do debate. Anunciaram que dariam leitura de sua decisão, pedindo para não serem interrompidos. Não queriam mais intervenções dos advogados. Não. E foram categóricos ao proibir qualquer interferência. Por nada do mundo suspenderiam mais uma vez o debate, como fizeram obrigatoriamente em duas ocasiões. Uma em 19 de abril, por causa de uma sentença de anulação. E outra em 2 de maio, quando um novo advogado foi incorporado à defesa. Às quatro da tarde de 10 de maio, os juízes haviam deliberado por mais de oito horas e anunciaram que tinham uma sentença.

O veredicto que finalmente determinaria juridicamente se na Guatemala havia ou não acontecido o genocídio.

A sala vibrava entre sussurros.

Agora, tudo dependia dos juízes.

“Vou contar uma história para vocês”

Apenas um dia antes do tribunal convocar à audiência para proferir a sentença, a defesa tirou sua última carta. Uma que havia sido guardada, com desconfiança, por mais de um ano no tribunal. Efraín Ríos Montt tinha sido chamado a declarar. Seria a primeira vez, desde que foi ligado ao processo em 26 de janeiro de 2012, que sua voz seria escutada para se defender. Ele nunca tinha feito isso antes.

“O que eu digo ou deixo de dizer pode ser usado contra mim”, foi seu mantra para não dizer nada até o momento antes da sentença, quando já não havia possibilidade de fazer outra coisa.

Agora pedia a palavra justo no instante em que o Ministério Público e os advogados do Centro para a Ação Legal em Direitos Humanos (CALDH) e da Associação para a Justiça e Reconciliação (AJR), como autores, já haviam apresentado as conclusões que resumiam horas de depoimentos. A intervenção do Ministério Público tinha acabado. Significava, então, que ninguém – só seus próprios advogados – poderiam questionar a declaração de Ríos Montt.

A estratégia era falar sem que se fosse debatido.

Sabia, então, o enfoque exato da acusação contra ele depois de ouvir os argumentos finais a acusação. A intenção de genocídio, a cadeia de comendo, as ordens, as 1326 vítimas da etnia ixil assassinadas, as 420 ossaturas retiradas de Nebaj, Cotzal e Chajul, tudo o que foi contabilizado durante os 26 dias de duração do debate era de seu conhecimento.

Efraín Ríos Montt, com 86 anos de idade, caminhou até o tablado, lento, ainda com alguns indícios de firmeza em seu corpo envelhecido. Foi a última chance que ele teve que convencer a decisão do tribunal de julgamento. Claro, todo mundo queria ouvir.

Quando se sentou, ao seu redor, os juízes, advogados de defesa e de acusação e principalmente os jornalistas, pareciam criancinhas, muito ansiosos, à espera de ouvir um causo. “Vou contar uma história para você”, começou Efraín Ríos Montt, no tablado, perante o tribunal. Rodeado de tanta gente, parecia um avozinho que falava com seus netos.

Em contraste, o outro acusado, Mauricio Rodríguez Sánchez, ficou em absoluto silêncio. Se resumiu, como fez durante todo o processo, a manter sua cabeça baixa. Ao final, não declararia tanto como estava a ponto de fazer o ex-chefe de Estado.

Ríos Montt contaria sua história, mas acima de tudo, a história da Guatemala.

O exército dividido

O relato de Ríos Montt partiu do ano de 1973, quando ele era chefe de estudos do colégio Interamericano de Defesa. “Dali me propuseram a candidatura à presidência”, disse. Sua voz, articulada e salivosa, contou que havia ganhado as eleições em 1974. “Mas aqui havia um regime militar. Chamaram-me como oposição a esse regime militar. E ganhamos as eleições. Desgraçadamente, os deputados recontaram os votos e perdi”.

Nesse momento, ele se rendeu e não brigou diante da fraude eleitoral. “Os jovens de esquerda ficaram enojados comigo porque não saí às ruas para lutar. Eu disse a eles que não me fizeram comandante da guerrilha, mas candidato à presidência. Me tiraram da Guatemala. Virei adido militar na embaixada da Espanha”.

Rios Montt voltou à Guatemala depois do terremoto de 1976. Esperava sua aposentadoria do Exército, como professor de educação na escola cristã Verbo, quando tudo pelo qual hoje foi julgado estava a ponto de acontecer. Esse minuto prévio a todos os massacres contra a etnia ixil pelo qual é acusado. “Ali estava eu quando se deu o golpe de Estado de 1982. A situação política na Guatemala era séria. A subversão estava no Parque Central, já pronta para tomar o poder. O Exército, segundo um informe de um general falecido, estava cansaço de guerra”, disse ele ao tribunal.

A acusação enquadrou os crimes de genocídio e os crimes contra a humanidade, na área dos ixil, em Quiché, entre dois eventos: o golpe de Estado de 23 de março de 1982, no qual Ríos Montt foi declarado presidente, e 8 de agosto de 1983, quando foi deposto.

“Quando cheguei a chefe de Estado, o grande compromisso foi ‘vamos trabalhar por uma democracia em lei’”, frisou, exaltando a voz e recuperando por breves instantes o tom característico que tinha seus discursos presidenciais e sermões dominicais. As mãos já estendidas, cheias de gestos, completavam os trejeitos de seu rosto, às vezes nervoso, outras vezes impaciente. Ríos Montt continuava mergulhado em sua história. Não olhava para o tribunal. Olhava – sentados ali, atentos, sempre como crianças de escola – para os jornalistas em frente a ele.

“Tinha que reorganizar o Estado”, estalou. “O Estado era feito de compadres. Descomposto. Quebrado, porque o orçamento estava sendo executado com 7% de déficit do PIB. Isso, naturalmente, nos encurralou”.

“Se contava nesse momento com uma força armada cansada, irritada e muito desanimada”, disse, “porque os jovens militares desprezavam as hierarquias superiores”.

O Ministério Público, em suas conclusões, fez ver ao tribunal que Ríos Montt comandou um exército sólido e unificado. Ele quis rebater essa afirmação: “Essa unidade granítica do exército que a acusação aponta é falsa”, rebateu. “Tínhamos a subversão na ponta do Palácio. Um Estado quebrado. Partidos políticos completamente polarizados, porque as eleições de 7 de março de 1982 tinham acabado de acontecer e ninguém tinha ido de acordo com elas. E, finalmente, nós tínhamos uma pobreza tremenda. Essas foram as circunstâncias nas quais encontrei a Guatemala”.

A cada declaração de Ríos Montt, o silêncio tomava conta da sala, como nunca antes. Em mais de um ano de audiências, antes do julgamento ser aberto contra ele, o general aposentado havia tido vários documentos em suas mãos. Entre eles, a Constituição da República, o Código Penal e outras leis. Apontava, sempre apontava. Se detinha nas partes onde se falava das funções do presidente. Anotava. Chegava à pena dos crimes de genocídio e escrevia. Talvez tivesse feito tudo isso esperando esse momento. Esperando contar sua versão da história do Exército da Guatemala.

O poder no governo

“Vocês tem escutado bastante da acusação que eu era Ministro da Defesa Nacional, que era Ministro da Defesa Geral. Sim, e também o primeiro vocal era Ministro do Interior, e o segundo vocal era Ministro das Comunicações. Nós três éramos ministros porque não tínhamos dinheiro para nada. Não tínhamos orçamento. O interessante é que no Ministério da Defesa estão os acordos respectivos, no sentido de que o Ministro da Defesa era o presidente da Junta do Governo. Deixou-se por escrito que o encarregado do escritório era o vice-ministro, e se tinha que deixar por escrito, para que se pudessem fazer todos os trâmites legais, econômicos e políticos que correspondiam ao Ministério da Defesa. Então o encarregado do escritório era o vice-ministro da Defesa. Não eu.” Assim relatou seu poder de comando para o 23 de março de 1982. Acusava ser abaixo dentro da linha hierárquica.

Três meses depois de ter dado o golpe de Estado, Ríos Montt se autoproclamou presidente. O foi desde junho de 1982. Nessa data, disse o acusado, o governo tratou de fazer um marco legal que lhes servisse de referência. “Como golpe de Estado, não podíamos respeitar a Constituição, porque já estava apodrecendo, tudo se caiu. Tínhamos que fazer um Estatuto Fundamental de Governo. Esse Estatuto foi o que serviu para substituir a Constituição. E naturalmente ao Executivo deu-se o poder legislativo. Isso sempre assessoria por honoráveis advogados”.

Naquela época, o Estado tinha uma equipe formada por ministros de Estado. O chefe desses ministros era Ríos Montt. Foram organizados em três grupos: um gabinete político-social, um econômico-financeiro e um de segurança.

Mauricio Rodríguez Sánchez era parte dessa estrutura. Era o chefe de Inteligência do Ministério da Defesa. Eles chamavam de D2 e era a seção responsável por coletar todas as informações do que acontecia a nível nacional. Reportar as informações e assessorar o Presidente.

“Cada ministério tinha suas características, de modo que cada gabinete fizesse estudos da situação na qual nos encontrávamos”, disse Ríos Montt.

Descobriu-se, disse, como se estivesse surpreendido, que a URNG, através de seus grupos, tinha declarado guerra ao Estado da Guatemala. “Irmãos contra irmãos, não vale uma guerra. Não é uma guerra. Queriam que se afirmasse que havia uma guerra interna para declarar territórios livres”. Referia-se a lugares que estavam sob o controle da subversão.

Seu relato foi pausado por vários minutos.

Rodríguez Sánchez escutava a declaração muito atento. Assentia de vez em quando.

Ríos Montt retomou sua intervenção para definir sua posição diante da acusação: “Quero manifestar que de acordo com as conclusões da acusação e dos promotores, não posso, de forma alguma, aceitar as acusações contra mim”.

Disse que aceitava que tivesse sido Chefe de Estado da Guatemala. Mas a cadeia de comando no Exército, explicou, começa pelo comandante em chefe do Exército e pelo ministro de Defesa Nacional. “Mas o comandante em chefe do Exército só faz três coisas importantes: mobilização, promoções, condecorações e pensões”.

Quase uma função decorativa.

Os argumentos de Ríos Montt para o tribunal, em sua defesa solitária, depositaram o poder sobre o Exército em comandos inferiores a seu posto. “É assim por obrigatoriedade do Estatuto Fundamental de Governo, e pela lei constitutiva do Exército”, disse. “Em troca, o ministro de Defesa Nacional, além de suas funções, tem o comando e a administração do Exército. E cumprir e fazer com que se cumpram as leis”.

Óscar Humberto Mejía Víctores era o Ministro de Defesa durante esses anos. Em janeiro de 2012 foi ordenada a cessão da ação penal contra ele, que depois também havia sido chefe de Estado, ao se considerar que sua saúde não estava em condições de enfrentar a justiça.

Ríos Montt delegou a responsabilidade para Mejía Víctores, enquanto explicava também que o poder no Exército era autônomo. “Do chefe de Estado Maior dependem os comandantes. E cada um dos comandantes, tem um território, uma jurisdição. O poder é uma autonomia”.

Quando a acusação apresentou os esquemas de comando, iam de cima a baixo, e de baixo a cima. O cargo de presidente passava por todos. Orlando López, do MP, indicou que ambos os acusados estavam informados de tudo o que acontecia. Dos massacres, da queima de casas, dos despejos na região ixil.

Ríos Montt disse que isso não poderia ser assim: “Os senhores me acusam, fizeram um trabalho ao revés. Foram perguntar para cabos e sargentos, e fizeram um estudo especial, e daí para cima começaram a construir as informações. O chefe de Estado Maior e o ministro da Defesa Nacional não me davam informes de nenhuma natureza. Eu era um chefe de Estado, ocupado em abrir espaços internacionais”.

A moralidade, a “guatemalidade” no discurso

Ríos Montt tem sido visto várias vezes na tela gigante desse tribunal. Ali não parece jovem, alegre, retórico e sorridente, com o cabelo penteado para trás e um semblante de arrogância. Um Ríos Montt, atento, tomando nota, foi visto daquele jeito em outra época. Em um vídeo gravado 31 anos atrás, que foi passado em várias audiências. Antes e durante do debate, nas partes anteriores ao processo.

Um dia antes da sentença, em sua declaração perante os juízes, Ríos Montt lembrou esse vídeo: “Provavelmente vocês se deram conta, e tem isso gravado em suas câmeras, quando me chamaram de racista quando eu disse que somos um país composto de muitas nações. E, de fato, é assim. Eu dizia a vocês, esses são qeqchíes, esses são quichés, esses são mames, esses são pocomames. Juntos fazem uma nação grande! Essa era a intenção política. Mas como eles – a parte de acusação – agarra-se à parte que lhes convém, eu quero dizer que o que interessava nesse discurso era a unidade, através da individualidade, de cada uma das nações que funcionam na Guatemala”.

“É verdade, é verdade que colocamos doutrinas”, acrescentou. Essa foi a razão pela qual o governo de Ríos Montt implantou o conceito de “guatemalidade”. Segundo explicou ao tribunal, a guatemalidade significava um produto acabado de altíssima qualidade. “Era isso que queríamos entender. Não acabar com a identidade dos povos maias, mas consolida-la, equipando-os, dando infraestrutura a eles”.

Um documento que, segundo disse Ríos Montt, poderia respaldar essa visão política de integração nacional que ele tinha em 1982 como algo bom, era um informe do subsecretário das Nações Unidas para a Guatemala de então: “Não há dúvida de que as medidas estão sendo tomadas, e há um projeto, mas o que acontece é que custa muito”, disse o acusado, se lembrando daquele informe. Mas esse informe desapareceu, e nunca conseguiu coloca-lo dentro das provas a seu favor.

Seu projeto de nação para 1982 e 1983 também tinha um enfoque moral dentro do discurso. Ele queria que a moral transcendesse dentro do Estado, segundo disse. “Havia uma necessidade e uma frustração, até que mudamos a forma de pensar. Fizemos uma campanha nacional, na qual cada um dos membros do Estado eram, antes de tudo, servidores públicos, pagados pelos impostos do povo. Aprendemos com isso a exigir. Aprendemos que os empregados são servidores e não chefes. Nessa campanha de moralidade dissemos que todos os empregados públicos iam se comportar melhor. Que não iriam roubar, mentir ou enganar. Isso foi parte da campanha que fizemos para moralização do Estado. Porque o Estado não é mais que um servidor público.” Era o que, como indicou, queria estabelecer para seu governo.

A instituição armada como protagonista

Havia algo claro para Ríos Montt em seu relato sobre a história da Guatemala “Desde 1944 até 2013 todos os movimentos que foram feitos, de uma forma ou de outra, que trouxeram progresso para o país, foram guiados pelo Exército. Uns sobem e outros descem. As coisas foram se compondo de tal maneira que a instituição armada passou por mudanças. Depois colocaram uma roupagem para que todos – e eles – dissessem que fizemos esse governo”.

No dia 20 de outubro de 1944, disse, foi simplesmente uma revolta da Guarda de Honra. O 13 de novembro foi porque o general Miguel Ydígoras Fuentes estava comprometendo a Guatemala com a questão de Cuba. E o 23 de março, segundo Ríos Montt, foi porque o presidente estava muito afetado e os compromissos estruturais já não suportavam as mudanças. Não havia financiamento e a política não funcionou.

Sobre o fracasso de seu governo, Ríos Montt se referiu como “inércia política”. “É impossível, para um chefe de Estado, impedir essa inércia política. Ainda mais em um país tão dividido por diferentes problemas e pela falta de capacidade econômica e financeira que tinha de ser trabalhada”.

Mas na acusação havia se escrito que antes da inércia, o que feito em seu Governo foi dar continuidade a uma política contra a subversão, já estabelecida por outros regimes militares. A diferença consiste em que durante seu governo houve evidências de como se implantou uma estratégia militar contra a população civil. Os planos militares Victoria e Sofia 82, e o plano Firmeza 83, foram apresentados como prova de que o governo de Ríos Montt catalogou a população civil como inimiga interna.

Ríos Montt se defendeu: “Nunca autorizei, nunca assinei, nunca propus, nunca ordenei que houvesse um atentado contra uma raça, etnia ou religião. Nunca fiz isso. E de todas as provas, não há uma só que mostre a minha participação”. E mais impetuoso, acrescentou: “O plano Victoria 82 foi assinado pelo chefe do Estado Maior, general do Exército. Eu vi, e não há nenhuma pauta que tenha a intenção, o propósito, o objetivo e a ordem de destruir algum povo, etnia ou religião ou algo do tipo. Não há nada disso. Eu vi, assinado por quem estava ali. Não vi outros planos. Porque não tinha muito trabalho a nível nacional.”

A suspeita é que Rodríguez Sánchez foi o autor da redação e da implantação desses planos. Sua assinatura aparece em um dos anexos da inteligência. Ainda que tenha se defendido até o último minuto da audiência, dizendo que não tinha sido assim. “Eram apreciações. Nunca ordens”, sustentou.

O Ministério Público solicitou a condenação de Ríos Montt a 75 anos de prisão e o mesmo para Mauricio Rodríguez Sánchez. Pediu que fossem julgados por genocídio e crimes contra a humanidade, cometidos em 1982 e 1983 na área ixil.

“Me declaro inocente”, disse Ríos Montt ao final de sua fala. “Nunca tive a intenção ou o propósito de destruir uma etnia nacional. Minha situação de chefe de Estado, minha ocupação, foi especificamente para retomar o rumo da nação que já estava marginalizada. A Guatemala estava um fracasso. E a guerrilha nas portas do palácio.”

Rodríguez Sánchez pôde se pronunciar até o dia seguinte, na manhã antes de escutar a sentença. Também se declarou inocente.

Se houve genocídio

Ao final (um dia depois de escutar a defensiva voz de Ríos Montt), o julgamento separará os dois acusados. Seu longo caminho juntos, no decorrer de 31 anos, às vezes para trás, às vezes para o presente, nos tribunais, acabará por revelar uma coisa: houve um genocídio na Guatemala. Os minutos passam devagar antes que o tribunal inicie se veredicto. E quando o faz, o que se escuta é uma revisão de todo o que aconteceu. Mas há uma ordem na leitura.

Primeiro: os depoimentos dos sobreviventes servem como plataforma sobre a qual o tribunal irá analisar cada um dos inquéritos.

Segundo: Realocações, matanças, casas incendiadas, violações sexuais e queima de plantações formam parte do panorama que estabelece um padrão de comportamento por parte do Estado: a destruição de um grupo étnico.

Terceiro: 5,5% da população ixil foi assassinada.

Quarto: Em qualquer atividade humana, na qual se tenha feito um planejamento, houve uma motivação prévia.

Quinto: Definir a população civil como inimiga interna.

Sexto: Os planos militares Victoria 82 e Firmeza 83 dão as diretrizes. Sofía 82 concretiza a missão.

Sétimo: “José Efraín tomou conhecimento de tudo que estava acontecendo e não deteve a ação, apesar de ter o poder de evitar sua perpetuação, além de estar a par dos planos militares Victoria 82, Firmeza 83 e da operação Sofía, os quais havia autorizado”, disse o Tribunal.

Oitavo: Um D2 não tem poder de comando. Não tem ingerência. Não se responsabiliza pelo comando.

Nono: Uma sentença contra Efraín Ríos Montt por genocídio e crimes contra a humanidade. Com a condenação a 80 anos de prisão. E a absolvição completa de José Mauricio Rodríguez Sánchez.

Décimo: A intenção imediata da defesa em apelar da decisão. Repetir a estratégia de apelações, liminares, recursos? Condenar o juiz? O que acontece com a não condenação de Mauricio Rodríguez Sánchez se não conseguem que alguma de suas estratégias anules a sentença contra Ríos Montt?

O ruído do ambiente, com Efraín Ríos Montt rodeado por centenas de jornalistas, à espera de ser conduzido para a prisão de Matamoros, são dos aplausos do público, dos poemas musicalizados de Otto René Castillo e das canções de Mercedes Sosa. É o que canta o público em coro.

Os familiares das vítimas, em ixil, agradecem ao tribunal: “Tantix, tantix”.

A voz de Efraín Ríos Montt se escuta tênue uma última vez: “O tribunal decidiu fazer de mim um genocida. Não se preocupem comigo. Cumpri com a lei e sigo sem nenhuma angústia.”

Rodríguez Sánchez ficou em silencia e não foi condenado. Ríos Montt, com sua longa história, não conseguiu convencer a nenhum dos juízes.

Reportagem publicada pelo Plaza Publica. Clique aqui para ler o texto original em espanhol.

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