No dia 13 de novembro de 2008 uma cerimônia com a presença do primeiro escalão do governo de Minas Gerais quebrou a monotonia de Rio Pardo de Minas, município então com 29 mil habitantes, mais da metade vivendo na área rural. O governador em exercício, o vice Antonio Anastasia – Aécio estava em viagem oficial à Europa – entregou 1001 títulos de propriedade a agricultores familiares, somando 20,5 mil hectares de terra, e falou sobre o programa de reforma agrária do governo: “Trata-se de um projeto pioneiro. O secretário Manoel Costa foi incumbido pelo governador Aécio Neves para que implementasse de maneira definitiva uma reforma agrária pacífica, calma e inteligente em Minas Gerais e a estamos realizando com grande enfoque na região Norte do Estado”.
Os títulos distribuídos a essas 1001 famílias do Alto do Rio Pardo tinham em média 20 hectares, assim como os entregues no ano anterior – 901 títulos somando 15 mil hectares de terra. O módulo rural na região é de 65 hectares – área mínima determinada pelo Incra para garantir ao agricultor e sua família a sobrevivência e o desenvolvimento social e econômico conforme as atividades exercidas e condições de produção locais.
“A gente trabalha muito com essa população, vê muitos desses títulos. Muitas famílias não receberam nem os 20 hectares, já vi título de 5 hectares e até de meio hectare”, conta o advogado André Alves de Souza, que divide com dois colegas o escritório em Montes Claros, contratado por sindicatos de trabalhadores rurais e organizações sociais. “Isso não é o suficiente para garantir a reprodução cultural, social e econômica das comunidades e a sobrevivência das famílias”, diz.
Os geraizeiros – ou “geralistas” como escrevia Guimarães Rosa em seus livros sobre esses sertanejos do norte mineiro – foram incluídos entre as comunidades tradicionais no decreto 6.030 de 2007 do governo federal, que institui políticas específicas para esses grupos respeitando o direito a seu território. Ao contrário dos quilombolas que têm títulos coletivos das terras, as comunidades geraizeiras têm unidades privadas de moradia e agricultura familiar enquanto a criação do gado e a coleta de frutos são feitos coletivamente em terras de uso comum, as chapadas de cerrado. A casa geraizeira típica é composta do pátio, onde secam sementes, pilam os grãos, fazem farinha; e do quintal, o espaço da criação de galinhas e outros animais de pequeno porte, além da horta e de árvores frutíferas. A roça de mandioca, abóbora, feijão-andu, fica mais afastada, de preferência próxima a outra fonte de água. O gado leiteiro é criado à solta por todos, mas cada família tem as suas vaquinhas.
Os geraizeiros se espalham entre os tabuleiros, as grotas e chapadas da margem direita do Rio São Francisco – do Norte de Minas Gerais ao Oeste da Bahia. A região do Alto do Rio Pardo, de onde se avista a Serra Geral, faz parte desse recorte e abrange uma população de 16.097 agricultores familiares segundo o Ministério do Desenvolvimento Social – em um total de 192.118 habitantes (86.210 na área rural).
São 15 os municípios em que vivem essas comunidades: Rio Pardo, Montezuma, Vargem Grande do Rio Pardo, Berizal, Ninheira, Novorizonte, Rubelita, Salinas, São João do Paraíso, Taiobeiras, Curral de Dentro, Fruta de Leite, Indaiabiara, Santa Cruz de Salinas e Santo Antonio do Retiro.
“O geraizeiro não é uma criação sociológica. A terra de uso comum, a chapada de cerrado, é essencial à sobrevivência das famílias, para completar o que produzem. E são os geraizeiros que há gerações preservam a vegetação e as nascentes na área de cerrado, de propriedade do Estado de Minas Gerais. Essas terras estaduais continuam sendo griladas e desmatadas para plantar eucalipto e, mais recentemente, pela mineração”, explica o advogado André Alves de Souza.
O governo Aécio Neves (2003-2010) diz ter implantado uma série de programas sociais no Norte de Minas (veja aqui) mas não conseguiu melhorar a desigualdade regional. Entre 2003 e 2011, a fatia do Norte de Minas no PIB do Estado foi de 4 para 3,8%. O projeto de desenvolvimento para a região não foi adiante: tratava-se da construção de um “pólo siderúrgico”, basicamente fábricas de ferro-gusa para aproveitar o carvão dos eucaliptos que há mais de 30 anos abastece as siderúrgicas do centro de Minas Gerais. A baixa do preço das commodities nos últimos 3 anos paralisou os projetos de mineração.
Mas elevou o preço das terras, principalmente a partir de 2008, quando foi anunciada a exploração de uma grande jazida de minério de ferro em Rio Pardo de Minas e a região passou ser vendida como uma nova fronteira da mineração. “O hectare que valia 100, 200 reais quando tinha água, passou para mil, 2 mil, chegou a 3 mil reais aqui no município de Rio Pardo de Minas”, conta Sérgio Barbosa, oficial do Cartório do Registro de Imóvel daquela comarca desde 2007.
A reforma agrária “pacífica, calma e inteligente” no Norte de Minas terminou por reduzir o território dos geraizeiros. As famílias receberam títulos de posse menores do que as terras que ocupam há gerações; as terras de uso comum, o cerrado, foram invadidas pela grilagem. Três anos depois do discurso de Anastasia em Rio Pardo uma operação da Polícia Federal e do Ministério Público – a “Operação Grilo” – derrubou Manoel Costa, mantido no cargo pelo ex-vice e sucessor de Aécio. O secretário Extraordinário de Reforma Agrária, dois diretores e outros servidores do Iter – o Instituto de Terras de Minas Gerais – foram acusados de montar um esquema de “falsificação de títulos com participação de cartórios para transformar terras públicas em privadas, depois vendidas”, resume o promotor Paulo Márcio da Silva, do MPE de Montes Claros. Foi ele quem coordenou a “Operação “Grilo” da Polícia Federal, em 2011. As investigações, incluindo escutas telefônicas, deram origem a mais uma operação da PF, a “Praga Verde” em 2013.
O Ministério Público Estadual de Montes Claros entrou com sete ações civis públicas na Justiça Estadual em diferentes comarcas do Alto do Rio Pardo e de Belo Horizonte relacionadas à “Operação Grilo”. Além dos servidores do governo estadual, duas empresas peso-pesado são alvo dessas ações: a mineradora Vale, acusada de comprar terras de grileiros por 41 milhões de reais, e a siderúrgica Gerdau, acusada de montar uma cooperativa de fachada para manter áreas de cultivo de eucalipto em terras públicas.
A ação civil do MPE contra a Vale foi ajuizada em 14 de setembro de 2011, seis dias antes de deflagração da operação Grilo e tramita na 1a Vara Cível da Comarca de Salinas (processo no 0024892-89.2011.8.13.057). Consultada sobre o processo, a assessora de imprensa da Vale respondeu: “não vamos participar da pauta”. A Gerdau é alvo de uma ação popular que tramita na Justiça Estadual na Comarca de Rio Pardo de Minas (processo 05561001892-9) e de dois processos movidos pelo MPE . A assessoria de imprensa da empresa não respondeu aos emails da Pública.
Em consequência desses processos, em janeiro deste ano o juiz da Vara Fazendária Estadual bloqueou os bens do ex-secretário de Aécio e Anastasia e suspendeu o registro de títulos no Cartório de Registro de Rio Pardo de Minas e de outras comarcas próximas. “Da análise dos documentos juntados aos autos constata-se num primeiro momento que entre janeiro de 2007 e agosto de 2011 houve por parte dos réus ganhos de R$ 200 milhões”, disse o juiz em seu despacho.
“Uma grande empresa, por exemplo, pagou milhões de reais a pessoas para invadir terras públicas, registrar o título de posse da área em que a empresa estava interessada e depois revender para a mesma empresa”, conta o promotor Paulo Márcio.“Os fazendeiros e empresários falsificam documentos, compram donos de cartório, fraudam o processo, aliciam servidores públicos, o juiz não sabe o que está acontecendo, o promotor também não, e quando se vê o estado transferiu milhares e milhares de hectares para esses grupos”, diz.
Disputa em Montezuma
Uma semana antes da cerimônia de entrega de títulos aos geraizeiros em Rio Pardo em 2008, o pai do governador, o advogado Aécio Ferreira da Cunha, vencia uma longa batalha judicial com o Estado de Minas Gerais por uma fazenda em Montezuma, a 57 quilômetros dali. No dia 4 de novembro de 2008, a propriedade de 950 hectares de terra foi finalmente registrada em nome da Perfil Agropecuária e Florestal Ltda, fundada por Aécio Ferreira da Cunha em 1976. A Perfil foi herdada pelos filhos, Aécio, Andrea e Ângela, quando ele faleceu em 2010. Na declaração patrimonial ao TSE deste ano, o candidato avalia em R$ 660.600,00 as cotas da Perfil, a maior parte delas (15.833 de 19.791) herdada do pai. Essas cotas correspondem a 25% do seu patrimônio (R$ 2.503.521,81), que hoje é 305% maior do que o declarado nas eleições passadas, quando concorreu com sucesso ao Senado.
A disputa pelo título de propriedade da Fazenda Ribeirão-Maracaiá durou oito anos porque as terras já estavam registradas em nome do estado desde junho de 2000 também no Cartório de Rio Pardo de Minas. A ação de usucapião foi ajuizada na Comarca de Rio Pardo de Minas em maio de 2000, um mês antes do Iter finalizar o processo de titulação da gleba “Montezuma” de 114.467 hectares, que inclui a área reivindicada pela Perfil. As terras já haviam sido arrecadadas (discriminadas), faltando apenas o registro do título em nome do Estado de Minas Gerais, feito no dia 15 de junho de 2000. O artigo 183 da Constituição de 1988 destina todas as terras públicas, devolutas ou arrecadadas pelo estado ou pela União, à reforma agrária à e conservação ambiental, “impedindo a apropriação privada por qualquer meio”, destaca o promotor Paulo Márcio.
Alegando “a posse mansa das terras por si e seus antecessores por 54 anos”, a Perfil apresentou uma declaração datilografada em uma folha de caderno com data 27 de janeiro de 1944, em que Geronymo Ferreira dos Santos (analfabeto) vende parte de suas terras (sem área declarada) a Antonio Nunes da Silva. Os herdeiros de Antonio, igualmente analfabetos, nomearam Otilio Sabino de Souza, motorista de Mortugaba (BA) “especialmente para vender a Cia Perfil – Empreendimentos Florestais Ltda., ou a quem essa indicar” a “parte ideal que lhes for cabível do imóvel rural ‘Maracaiá’, Fazenda Ribeirão”. O compromisso particular de promessa de compra e venda do imóvel foi registrado no cartório no dia 24 de agosto de 1978, mediante pagamento de 30 mil cruzeiros (hoje cerca de 18 mil reais) pela Perfil. O documento não apresenta o tamanho da área nem sua localização exata; o memorial descritivo foi entregue depois, a pedido do juiz.
Mas a sentença do juiz de Rio Pardo, emitida em 2001, foi favorável à empresa e o juiz enviou um mandado ao cartório para que a fazenda fosse matriculada em nome da Perfil. A sobreposição com as terras estaduais registradas no mesmo cartório pelo Iter foi detectada pelo oficial de registro, que “suscitou dúvida” ao juiz, ou seja, pediu formalmente orientação de como proceder. Outro juiz de 1a instância confirmou a sentença em 2002, alegando que o estado tinha sido comunicado do processo e não havia se manifestado antes da conclusão dos autos. Foi quando a Advocacia Geral do Estado de Minas (AGE/MG) passou finalmente a agir para anular a sentença. Recorreu ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais em 2003 mas, dois anos depois, o tribunal manteve a sentença. A maioria dos desembargadores sustentou a tese da “segurança jurídica da coisa julgada” , apesar do argumento da AGE da inconstitucionalidade do usucapião em terras públicas. A AGE recorreu então ao STJ e ao STF mas os recursos foram negados em 2006 e 2008, respectivamente, por faltar um documento obrigatório no processo – o substabelecimento (transferência de poderes quanto se troca o advogado) de um advogado da parte contrária, a Perfil. Em 2008 a fazenda foi registrada em nome da empresa que é hoje do candidato.
A Pública conseguiu falar com o procurador Romeu Rossi, que defendeu o Estado de Minas Gerais na disputa com a Perfil. Informada pela assessoria de imprensa da AGE de que o procurador “estava afastado” e seu email “não funcionava”, ligou para o gabinete do procurador que atendeu ao telefone, mas se disse impedido de falar sem autorização do Advogado Geral do Estado. A assessoria de imprensa não respondeu à solicitação de entrevista com o Advogado Geral feita pela Pública.
Área multiplicada por mil
No mesmo cartório de Rio Pardo de Minas localizamos o registro de mais duas propriedades da Perfil em Montezuma: “uma sorte de terras devolutas situada no lugar denominado Capão da Cruz” com a área de 140,4404 ha “vendido pela Ruralminas em 1981” (antes da Constituição de 1988, portanto) a um terceiro, que a revendeu para a Perfil, em 1987 por 280 mil cruzados, cerca de 56 mil reais; e o imóvel Tapuia, na fazenda Brejinho, do qual não se sabe o tamanho exato. Na certidão de matrícula, o imóvel tem cerca de 64 hectares; em uma segunda anotação, ultrapassa 64 mil hectares; reduzindo para 641 hectares no registro da aquisição do casal que revendeu as terras à Perfil em 1999, por R$ 12.836,20 sem declarar a área.
“A confusão se deve ao fato de que os registros foram feitos com medidas diferentes, ares, centiares, depois hectares”, explica por telefone Sérgio Barbosa, o oficial do Cartório de Registro de Imóveis de Rio Pardo de Minas. “Isso é comum a gente ver por aqui, uma região pobre, em que as pessoas são analfabetas, têm títulos de posse antigos, e a terra até pouco tempo não valia nada”, comenta. Por isso, as retificações são feitas pelo cartório sem grandes objeções, admite.
A prática, comum nas comarcas do Norte de Minas, acaba facilitando a vida dos grileiros. “O cara arranja um caboclo que vai no cartório e diz ‘tenho 4 hectares de terra há 100 anos’, o que muitas vezes é verdade. Mas daí esses 4 hectares se transformam em 400 hectares, ou em 4 mil até 40 mil hectares porque os fazendeiros e as empresas negociam com o dono do cartório, que retifica a área”, detalha o promotor Paulo Márcio. “A responsabilidade é do governo do Estado de Minas Gerais, que tem que dar às terras públicas a destinação constitucional: reforma agrária e conservação ambiental”, afirma. “Essa atitude do governo estadual favorece o desmatamento do cerrado e a invasão do território dos geraizeiros, dificultando a sobrevivência das comunidades”, explica.
A obra mais conhecida do governo Aécio Neves no munícipio em que é dono de pelo menos 1730 hectares de terras é um polêmico aeroporto que consumiu 309 mil reais e não tem autorização da ANAC para funcionar. Tornou-se alvo da mídia na esteira das denúncias que divulgaram outro aeroporto construído pelo ex-governador, este em Claúdio, dentro da fazenda de um tio. Montezuma tem cercade 7 mil habitantes, baixo desenvolvimento humano (IDH 0,587) e menos de 30% das casas ligadas à rede de esgoto (Datasus 2013).
O Doutor Aécio
O advogado Aécio Ferreira da Cunha, também diplomado pela Escola Superior de Guerra em 1973, instalou-se no Norte de Minas em 1978, quando exercia o quarto mandato de deputado federal pela Arena, o partido criado pela ditadura militar para apoiá-la. Antes disso, em 1962, ele havia sido eleito deputado pelo PR com verbas do IBAD, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, sustentado por verbas dos Estados Unidos com intenção de derrubar o presidente João Goulart. Depois do golpe, elegeu-se em 1967 pela Arena, partido em que permaneceu até 1983, quando os militares extinguiram o bipartidarismo (Arena e MDB). Foi então para o PDS, que continuou a ser esteio do regime. Mas votou contra o correligionário Paulo Maluf no Colégio Eleitoral que elegeu seu sogro, Tancredo Neves, o primeiro presidente civil do Brasil depois de 20 anos de ditadura militar, embora por eleição indireta.
Fundador do PFL (atual DEM) em Minas Gerais, Aécio Ferreira da Cunha assumiu um cargo no Conselho de Administração na Siderbras, a companhia siderúrgica do governo federal em 1987. Foi também presidente do Conselho de Administração do BNDES, nomeado pelo então presidente Itamar Franco, e membro do Conselho de Administração de Furnas e da Cemig até o seu falecimento. Suas cinzas estão na fazenda da família em Montezuma, “à sombra de um pé de pequi”, contam os vizinhos.
“O doutor Aécio era bom com a gente”, diz Denivaldo Ferreira Carvalho, geraizeiro baiano que conheceu o pai do ex-governador em 1978 e conviveu com ele até a sua morte. “Ele até puxou a luz da Cemig pra nós mesmo não podendo porque aqui já é Bahia”, conta o agricultor, casado com a mineira Edite da Silva Carvalho e pai de cinco filhos. A família tem 15,5 hectares de terra (14,5 herdados do pai dele e um hectare doado pelo irmão de Edite) e um barzinho na frente da fazenda, no ponto em que ela se encontra com a divisa Minas-Bahia.
Eucaliptos no quintal de Miguilim
Na década de 1970, no regime militar, a Ruralminas – então o órgão estadual responsável pela regularização fundiária – arrendou terras no Norte de Minas e no Vale do Jequitinhonha a empresas que ainda hoje cultivam eucalipto para fazer carvão destinado às siderúrgicas do centro do estado. A pretexto de desenvolver o Norte de Minas houve um desmatamento intenso nas áreas de chapada. Muitos geraizeiros foram embora, vendendo suas terras por quase nada. Foi nesse contexto que a Perfil se instalou em Montezuma em 1978 para plantar eucalipto, como quase todos os recém-chegados.
“A gente vivia no desespero”, lembra Antonio José Agostinho, 62 anos, da comunidade geraizeira de Água Boa II, no município de Rio Pardo. “As firmas entravam quebrando (desmatando) a chapada, colocando cerca no cerrado, nas lagoas”, diz. “A gente via as máquinas jogando terra nas nascentinhas, o eucalipto cercando, uma tristeza”, conta o lavrador que criou os cinco filhos na terra onde nasceu e da qual viu muita gente ir embora.
No governo de Itamar Franco no estado (1999 a 2003) o êxodo rural já aparecia claramente nas estatísticas. O município de Rio Pardo de Minas registrou queda de mais da metade da população entre 1992 e 2000. O Iter e a Procuradoria-Geral do Estado passaram a ajuizar várias ações para retomar os imóveis públicos à medida que venciam os contratos de 23 anos de arrendamento assinados até meados da década de 1980 com o Estado de Minas Gerais.
As ações contra as reflorestadoras significavam a retomada de 240 mil hectares de terra, renovando a esperança dos geraizeiros e dos ambientalistas, preocupados com a conservação do cerrado, um dos biomas mais ameaçados do país.
Mas alguns contratos continuaram sendo renovados por preços irrisórios entre 2003 e 2008, apesar dos pareceres contrários da Advocacia Geral do Estado de Minas. “Os pareceres da AGE diziam que não era possível renovar esses contratos, que o Estado tinha que retomar as suas terras e dar a elas a destinação constitucional. Com isso os geraizeiros passam a ser assediados por esses grupos que não querem devolver as terras plantadas de eucalipto, e pelos novos interessados no minério que descobriram por lá”, explica o promotor Paulo Márcio.
Foi quando os geraizeiros decidiram se unir. Em 2006, eles fizeram a I Conferência Geraizeira pelo reconhecimento das comunidades como populações tradicionais com direito a seu território, o que foi obtido com a inclusão no decreto do governo federal do ano seguinte. Nas conferências de 2007 e 2008, fortalecidos pelo reconhecimento de sua identidade, passaram a buscar opções para estancar a grilagem das terras e a drenagem das nascentes, que o governo mineiro não combateu.
“O Estado de Minas usurpou as terras dos geraizeiros e entregou às empresas de exploração florestal que destroem o ambiente do qual dependem para viver. Por isso eles passaram a adotar duas estratégias para se defender: a criação de assentamentos agroextrativistas através do Incra, que foi o caso de Vereda Funda, em Rio Pardo de Minas, e da Reserva de Desenvolvimento Sustentável que permitem proteger o cerrado e as nascentes sem que eles sejam impedidos de exercer suas atividades ”, explica o agrônomo Carlos Dayrell. Ele é um dos fundadores do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, entidade de apoio e assessoramento aos povos e comunidades tradicionais do Norte de Minas e do Vale do Jequitinhonha.
Hoje os geraizeiros do Alto do Rio Pardo reivindicam a criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, a RDS-Nascentes Geraizeiras, compreendendo 38 mil hectares de cerrado nos municípios de Montezuma, Vargem Grande do Rio Pardo e Rio Pardo de Minas. O projeto foi discutido em conjunto com o ICM-Bio e aguarda a decisão do Ministério do Meio Ambiente, que já se pronunciou a favor em reunião com representantes do movimento. No dia 5 de junho passado eles fizeram uma greve “de fome e sede” em Brasília exigindo uma resposta final sobre a data e as condições da criação da reserva ainda pendentes.
Geraizeiros x Grileiros
Enquanto isso, as comunidades de Água Boa, Água Fria, Roça do Mato, Areião e tantas outras decidiram proteger a área de cerrado por sua própria conta. E isso não significa apenas vigiar a terra. Em dezembro 2010, dois agricultores familiares ajuizaram uma ação popular constitucional com pedido de liminar em desfavor do Iter, do Estado de Minas Gerais, do então secretário Extraordinário da Reforma Agrária, e da Gerdau Aços Longos S/A, incluindo dois de seus diretores. O objetivo era anular um contrato de arrendamento de terras devolutas feito entre o Iter e a Cooperativa de Silvicultura e Agropecuária Ltda (Coosarp) com o “claro e deliberado propósito” de obter para a Gerdau a cessão de uso da Fazenda Vale da Aurora numa “bem maquinada contratação firmada com o Estado de Minas (Iter/MG)”, diz o documento.
Essa fazenda estava entre os imóveis com o contrato de arrendamento expirado nos quais a Gerdau plantava eucalipto para fazer carvão e abastecer suas siderúrgicas no centro do estado. Um contrato de compra antecipada de madeira de eucalipto, destinando toda a produção à Gerdau, foi assinado com a participação do Iter já na criação da cooperativa “constituída por vários empresários, políticos, comerciantes e servidores públicos bem estabelecidos nesta cidade (alguns por interpostas pessoas, popularmente conhecidas como ‘laranjas’), bem assim vários empregados e tantos outros empreiteiros da própria Gerdau”, relata a ação que está tramitando na Comarca de Rio Pardo de Minas.
Essa foi uma das três ações populares movidas entre 2010 e 2012 na Justiça Estadual através do escritório do advogado André Alves de Souza. As outras duas foram: contra a Replasa, do empresário Bernardo Paz, também dono do famoso museu-parque em Inhotim, que tramita na Comarca de São João do Paraíso; e contra a família Meneguetti e várias empresas, para anular retificações de área, que também tramita na Comarca de Rio Pardo de Minas.
Os documentos, fatos e depoimentos levantados nessas ações três ações populares que podem ser lidas aqui contribuíram com investigações que já vinham sendo feitas pelo Ministério Público. As denúncias de grilagem acabaram desembocando nas operações da PF “Grilo” e “Praga Verde” que derrubaram o secretário responsável pela reforma agrária Manoel Costa e acabaram por extinguir a pasta e o próprio Iter no final do ano passado.
O órgão responsável pela regularização fundiária voltou a ser novamente a Ruralminas agora subordinada à Secretaria de Abastecimento, Pecuária e Agricultura (Seapa). Consultada sobre a arrecadação de terras devolutas (o processo de titulação de terras estaduais) feitas pelo estado durante o governo Aécio Neves, a assessoria da Seapa respondeu: “Quase não houve ações discriminatórias finalizadas de 2002 a 2013. As arrecadações realizadas foram pontuais e através de dispensa de ação discriminatória, chegando a mais de 20.000 (vinte mil) títulos de regularização”, divididos “em sua maioria, nas regiões norte e nordeste do estado”.
Da feira de Rio Pardo à Água Boa
Rio Pardo de Minas é uma cidadezinha simpática, com praças arborizadas e o encontro de dois rios: o Pardo e o Preto. É ali a sede da Comarca da região do Alto do Rio Pardo, uma das recordistas em emissão de títulos de terras no Estado: 12,85% do total distribuído entre 2007 e 2010, em 853 municípios.
Com os negócios paralisados pela decisão judicial decorrente da “Operação Grilo”, que proibiu o registro de títulos na comarca até o resultado final das investigações, o melhor hotel da cidade, o Pinheiro Palace, está vazio. O dono do hotel e do posto de gasolina é um ex-prefeito do PP, Antonio Pinheiro da Cruz, o Tonão, acusado pela Justiça Eleitoral de usar a máquina pública para favorecer a eleição de seu sucessor, cassado no ano passado pelo TSE.
A feira dos sábados, porém, continua cheia de gente comprando frutas, hortaliças e ervas nas bancas dos geraizeiros. Encontramos ali dona Geralda, com a nora e a neta, vendendo urucum, coentro em flor e outros temperos. É ela que nos indica o caminho de 15 km de estrada de chão até a comunidade de Água Boa II onde vive com o marido, o líder comunitário Antonio José Agostinho.
Recentemente o ex-prefeito Tonão obteve um interdito proibitório para que seu Antonio não se aproxime da sua “propriedade”, vizinha à comunidade. “Ele diz que comprou as terras mas aqui ninguém compra nada que é tudo terra devoluta”, diz seu Antonio. “Falou que vai fazer 15 tanques de criação de peixe! O primeiro [tanque] que ele abriu foi na beira do córrego, a máquina jogou toda a terra lá dentro. Aí ele foi abrindo mais e colocou as mangueiras em dois [tanques]. As mulheres foram lá e arrancaram as mangueiras, jogaram dentro do rebentão”, conta, sem disfarçar o riso.
Ele me serve um copo de água fresca do filtro de barro e diz: “Moça, a gente luta pela chapada não pra ser donos dela, mas pra parar a destruição. Pode ver que desse lado, onde tem mais eucalipto, os córregos estão todos secos, só os muito fortes resistem. E nessa área que nós estamos cuidando, 95% das nascentinhas ainda estão protegidas, algumas podem até estar cortadas na seca, mas bastou chover elas voltam”, arremata.
Seu Antonio tem o título de posse da propriedade de 100 hectares onde vive desde que nasceu,“ao lado daquela capelinha”, diz, apontando para o outro lado da rua. É ele que cultiva sozinho o abacaxi, a laranja, o café e o urucum no quintal, trabalha na roça de mandioca, abóbora, milho, feijão-andu, e divide com a mulher o cuidado das galinhas e da horta, cultivada organicamente. “Quando se usava veneno a gente não tinha um tostãozinho pra comprar e agora a gente sabe que é ruim’, diz, brincalhão.
O terreno onde construiu a casa ao se casar com dona Geralda, há mais de 30 anos, fica ao lado da cooperativa comunitária. É ali que funciona a fábrica de polpas de “frutos do cerrado e do quintal”, uma sala azulejada e muito limpa com freezers e geladeiras onde as mulheres embalam as polpas e a farinha de jatobá, usada para reforçar a dose de cálcio de crianças e idosos. Os produtos são vendidos para aumentar a renda da comunidade às prefeituras das cidades próximas, que os utilizam na merenda escolar – naquele dia havia polpa de laranja, maracujá-de-veado e pequi. Dependendo da época pode ter também mangaba, araçá, murici, morcegueira, cagaita.
O orgulho do seu Antonio é ter conseguido manter os nove netos na comunidade, embora as terras sejam insuficientes para o sustento da nova geração. Quatro filhos moram em terras dos sogros e um deles mantém apenas a moradia no quintal do pai. “Ele, como muitos aqui, trabalha no eucalipto, no maior sofrimento, carregando tora o dia todo para ganhar um salário”, lamenta o pai. O próprio seu Antonio já teve que trabalhar bem longe da comunidade, na colheita de café do sul de Minas. Até hoje, conta, muitos geraizeiros deixam as famílias para trabalhar durante a safra no sul do estado ou no corte da cana de açúcar em São Paulo. “A gente sempre tira o de beber e o de comer, pelo menos por enquanto, mas os filhos vão ficando sem terras”.
E passa a falar sobre a “guerra”, como ele diz. “O que aconteceu pra iniciar isso foi que em 2002 as firmas de eucalipto começaram a invadir de novo, pra além das terras que elas já ocupavam. Aí veio um pessoal comprar mangaba pra levar pra cooperativa do CAA em Montes Claros e eu disse: ‘Ó tem muita fruta, só que agora as firmas pegaram pra quebrar e plantar eucalipto. Aí eles disseram: ‘Tá doido, não pode acontecer isso’, ‘mas tá acontecendo’, eu falei, e contei que lá na comunidade Riacho de Areia já tinha advogado pra parar com isso”.
Foi quando o CAA, entidade que assessora as populações tradicionais do Norte de Minas, começou a articular as comunidades afetadas, o sindicato dos trabalhadores rurais, os advogados, o Ministério Público. Houve uma passeata de protesto contra a grilagem e a seca das nascentes que acabou em frente ao Fórum de Rio Pardo de Minas. As autoridades mineiras não tomaram conhecimento. Depois de muita conversa, os representantes das comunidades decidiram se reunir com os técnicos do ICM-Bio em busca de uma solução. “O governo de Minas e o governo federal criaram vários parques no Norte de Minas. É bom, mas não resolve o nosso problema, porque a gente precisa continuar com o manejo. Sem a água e os frutos do cerrado, a gente não sobrevive”, explica. Foi assim que surgiu a proposta da criação da RDS-Nascentes Geraizeiras, ansiosamente aguardada por ele. “Eu não duvido mas também não acredito”, diz, sobre a concretização do projeto.
Antes da despedida com direito a suco de polpa de maracujá e laranja seu Antonio mostra as fotos do protesto em Brasília e me entrega o manifesto dos geraizeiros com a figura do símbolo do movimento, o pequizeiro. Da árvore, diz, se aproveita tudo, a castanha, o óleo, a polpa, os galhos secos. “Serve todos nós, até aqueles que não gostam da gente”, brinca.
Rebelião na Roça do Mato
Fomos conhecer “o maior pé de pequi do planeta” na comunidade de Roça do Mato no município de Montezuma, o centro da RDS-Nascentes Geraizeiras. É a fotografia dessa árvore que estampa as camisetas dos guardiões do cerrado, usada pelos militantes do movimento. “Esse pequizeiro é uma referência, fica do lado da trilha, é ponto de encontro da comunidade, a sombra em que todos param para descansar”, explica o líder comunitário José da Silva. Os próprios motoqueiros não tiveram coragem de completar o trabalho encomendado pelo fazendeiro, conta. “Eles largaram as máquinas e choraram, são filhos de geraizeiros também”.
No início deste ano dezenas dos geraizeiros de Roça do Mato e comunidades próximas ocuparam uma área de cerrado invadida por uma empresa florestal e cortaram – na foice – 120 hectares de eucalipto. “E a polícia ambiental bateu palmas pra nós”, conta Zé, orgulhoso do feito. “Aqui ninguém mexe mais em nada sem a gente saber”, diz.
Marlene, sua mulher, convida para um almoço tardio na simpática casa da família. No fogão ainda estão a carne de panela, o mexidinho de feijão-andu, arroz, couve. As filhas – são três meninas e dois meninos – estão saindo para a igreja onde fazem cursos e participam do clube de jovens. A mais velha, de 20 anos, está na faculdade de pedagogia, conta Marlene, orgulhosa, depois que a garota saiu na garupa da moto do namorado, também da comunidade. “Depois que começou a luta, nem os jovens querem mais ir embora daqui”, comenta.
Enquanto comemos, Marlene que é servente da escola em que os filhos mais novos estudam, conta sua história. “Eu fui dada pra criar com nove anos de idade para a família dos Costa, importante daqui. Os moços me mandavam desde pequenininha comprar cigarro e cerveja. Nem me chamavam pelo nome, era ‘menina, isso, menina aquilo’ e eu não tinha coragem nem de abrir a boca. Esse tempo de humilhação dos coronéis acabou. Nós, os geraizeiros, somos os donos dessas terras”, diz com firmeza.
Pegamos a entrada para a sede do município de Montezuma onde fica a fazenda da Perfil, a 12 quilômetros do aeroporto municipal. A pousada em frente ao Balneário Municipal está vazia. Há dois anos a maior atração turística da cidadezinha, um conjunto de piscinas alimentado por uma mina de água quente natural, está fechada para reforma. As obras foram interrompidas no ano passado pela cassação do prefeito Erivaldo José Martins, do PSDB, pelo mesmo motivo que o prefeito de Rio Pardo de Minas: abuso econômico nas eleições.
A Pública ligou diversas vezes para os telefones da Perfil Agropecuária Ltda. que constam no endereço informado no catálogo de Belo Horizonte para pedir autorização para visitar a fazenda mas ninguém atendeu. Por isso batemos diretamente na sede da Perfil, na divisa com a Bahia. Tudo parece abandonado por ali – os eucaliptos já foram cortados e não se vê bois nos pastos ressecados. Mas ali também estão a bem cuidada casa da família e a capelinha que homenageia o patriarca.
A cozinheira Cida vem do refeitório dos empregados para dizer que “as terras foram arrendadas” e que só o gerente, que não estava, poderia falar do assunto. Não localizamos o gerente, um ex-policial militar conhecido em Montezuma pela alcunha de Joaquim Soldado, que trabalhava para o pai de Aécio há muitos anos. Também não há nenhum contrato de arrendamento de terras em nome da Perfil no cartório de Rio Pardo de Minas.
Pelos registros obtidos nessa reportagem, a Perfil tem pelo menos 1730 hectares de terra – valiosos, segundo a declaração do candidato Aécio Neves. Que estão em terras públicas, ninguém duvida, como explica o geógrafo Ariovaldo Umbelino, professor de pós-graduação de Geografia Humana: “Não importa se devolutas, discriminadas, arrecadadas ou registradas, são terras públicas”.
O dr. Ariovaldo conhece bem o território geraizeiro, fez um levantamento fundiário em uma região próxima dali, Riacho dos Machados. Sabe o que acontece nos cartórios com os títulos de propriedade de terras. “São fraudes de todos os tipos; o usucapião de terras públicas, por exemplo, está proibido desde 1916”. O mais importante da Constituição de 1988, explica, é “a destinação das terras públicas para reforma agrária porque é a única maneira de garantir sua função social”.
A boa notícia é que as terras devolutas podem ser retomadas pelo Estado em qualquer tempo, segundo a lei. Estejam elas registradas em nome de alguém ou não. “Em qualquer época, em qualquer lugar, em se tratando de terras públicas que não cumprem a determinação constitucional, o estado ou a União mantêm seus direitos sobre elas”, ensina o professor.
A Pública conversou com a assessoria de imprensa do candidato Aécio Neves e foi orientada a mandar por email as perguntas sobre as propriedades e atividades da Perfil e sobre as fraudes e grilagem de terras ocorridas durante o seu governo. A campanha não enviou as respostas até a publicação dessa reportagem.