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Em três semanas de viagem, a reportagem da Pública encontrou indígenas vivendo em palafitas insalubres em Altamira e visitou os Arara na terra indígena mais desmatada recentemente no país

Reportagem
7 de novembro de 2017
09:30
Este artigo tem mais de 7 ano

Lentamente Altamira desperta de seu sonho de barragem. Seis anos após o início das obras, a Usina Hidrelétrica de Belo Monte ainda tem um enorme passivo socioambiental a ser encarado. O leque de desafios é tão grande quanto o volume de concreto da terceira maior hidrelétrica do planeta. Do saneamento básico urbano à implementação de planos de atividades produtivas e de vigilância em aldeias indígenas atingidas; da construção de escolas e postos de saúde a problemas nos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs), os bairros erguidos pela Norte Energia para reassentar 4 mil das 10 mil famílias removidas pela obra, segundo os números do MAB  (Movimento dos Atingidos por Barragens) e do ISA (Instituto Socioambiental) – a empresa diz que são 8 mil famílias removidas. Foram as más condições dos reassentamentos que motivaram a suspensão da licença de instalação da usina em setembro.

Ao todo são 13 terras indígenas afetadas pelo empreendimento. Essas áreas abrigam um contingente de cerca de 4 mil índios sem contar os que vivem em área urbana em Altamira (pouco menos de mil indígenas no censo de 2010, mas não há estatísticas depois de Belo Monte, quando o crescimento demográfico na cidade se acelerou). Por ocasião da obra, foram estabelecidas 31 condicionantes com a Funai, além da consolidação do componente indígena do PBA – um plano de mitigação de danos para as populações indígenas afetadas que tem duração de 35 anos. “Hoje nós temos um PBA que já gastou milhões com os indígenas e com os ribeirinhos nada; e os ribeirinhos estão melhores. Há que se avaliar como chegamos a essa situação”, critica a procuradora Thaís Santi, do Ministério Público Federal (MPF) em Altamira, autora de várias ações judiciais contra a usina, uma delas, ainda não apreciada pela Justiça Federal de Altamira, por etnocídio – assassinato cultural do modo de vida das populações indígenas. Ela entende que as políticas de compensação acabaram causando um impacto ainda maior do que a usina.

De seu lado, a empresa realça a grandeza dos valores investidos na compensação ambiental – mais de R$ 4 bilhões. O valor trouxe ativos para a área de influência da usina, como a construção de três hospitais nos municípios da área de influência direta (Altamira, Anapu e Vitória do Xingu), 30 unidades básicas de saúde e outras 66 obras na área de educação.

A Norte Energia também iniciou a construção da nova sede da Funai na região – hoje um edifício alugado e precário em Altamira – e reforçou o quadro de funcionários do órgão, alvo de cortes em sequência pelo governo federal. “Os índios falam mal porque querem falar, porque pior eles viviam antes. Eles não tinham nada, viviam jogados”, diz a indígena Maria Augusta Borges Xipaia, presidente da Associação Kirinapã, que representa parte dos índios da cidade. “Através de Belo Monte eles hoje têm voadeira, carro, escola”, afirma, na contramão do que pensam os indígenas nas aldeias afetadas pelo empreendimento ou mesmo em Altamira, como Maria Augusta, mas em situação precária, como constatou a reportagem da Pública.

A Pública conta três histórias de dificuldades relacionadas a Belo Monte – duas em terras indígenas e outra na área urbana de Altamira, onde os moradores do bairro da Lagoa, no Jardim Independente I, lutam para entrar na lista de atingidos pela usina.

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Barragem agravou inundações, dizem moradores da Lagoa

Esgoto e lixo a céu aberto: o Bairro Jardim Independente I na região central de Altamira ainda mantêm casas de palafita (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública)

As paredes guardam as marcas da última enchente, que ocorreu em agosto, fora da época de chuvas. O pintor Carlos Alves Moraes, de 52 anos, mostra na régua os níveis que a água atingiu quando entrou nas palafitas. “Ficamos 17 dias morando aqui com os pés embaixo d’água”, relembra. “Essa daí foi uma que ficou com o pé todo cheio de ferida por causa da água”, diz, apontando para a esposa. Na palafita de dois cômodos, Carlos – indígena Xipaia – se aperta com mais dez pessoas. Os móveis estão todos sobre banquinhos, a única proteção contra o próximo aguaceiro.

A casa está sobre mais de 3 metros de água no bairro Jardim Independente I, um dos últimos na área central de Altamira que ainda têm palafitas (casas suspensas em alagamento perene). Na maior parte da cidade, as habitações suspensas foram desaparecendo conforme as obras avançavam dando lugar aos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs) – os cinco novos bairros construídos pela Norte Energia. Ali residem mais de 3 mil famílias, a grande maioria oriunda de baixões e áreas de alagamento atingidas pela usina.

Carlos morava com a família em uma ilha que ficou abaixo do barramento do rio. Quando os peixes começaram a aparecer mortos na porta de sua casa, ele decidiu se mudar para a cidade. “O único lugar que eu consegui foi aqui na Lagoa por causa do preço, né?”, relata.

A insalubridade exala nas palafitas onde residem mais de 500 famílias (46 delas compostas por indígenas) sobre a lagoa, agora um poço de dejetos. Sem nenhum tipo de saneamento básico, o esgoto vai direto para a água embaixo das casas, e o lixo quase chega às portas das pessoas. Nas bordas da área alagada, a reportagem da Pública avistou uma casa abandonada com cerca de 1 metro de água dentro, transformada em um criadouro de mosquitos. A indígena Maria de Fátima Damasceno Curuaia pede para falar. “Eu peguei dengue e nunca mais fiquei boa do meu pescoço. Começou com uma febre alta e depois foi uma dor se espalhando pelo corpo”, diz a costureira sobre a doença que a deixou um mês de cama. Quase todos os entrevistados na região já haviam contraído dengue, que acabara de matar um jovem.

A comunidade luta para ser reconhecida como mais uma atingida por Belo Monte, o que lhe daria direito à mudança para um dos RUCs ou a uma indenização. As mobilizações começaram após a usina ter recebido a licença de operação (LO) do Ibama, em novembro de 2015, quando os reservatórios começaram a encher. Segundo os moradores, nessa época surgiram minadouros e pontos de água mesmo em imóveis nos quais não havia alagamento na área interna. “Essa casa que eu tô aqui, ela foi construída em 1982. Na época, não minava água. Hoje entra água na sala, no quarto, na casa toda. E tem um quarto que está afundando. Aqui não alagava nem no inverno”, conta o piloto de voadeira Raimundo Xipaia Curuaia. Ele nos leva até o quarto em questão: o calçamento do piso faz barulho de oco e aparenta ter uma leve curvatura, como se estivesse cedendo. “Aqui nós esperamos a água bater mesmo pra começar a se mobilizar”, afirma.

O indígena Carlos espera ser indenizado pela Norte Energia (Foto: Iuri Barcelos /Agência Pública)

Os moradores se organizaram com o auxílio do MAB após o bairro vizinho, o Jardim Independente II, ter conseguido a inclusão no reassentamento da Norte Energia. A primeira demanda foi a medição da altura da água – a Norte Energia assumiu o compromisso de reassentar, por risco de alagamento, todos os que viviam abaixo da chamada cota 100 (100 metros acima do nível do mar). Pelas medições da empresa, a Lagoa ficava na cota 102. Em medição própria, a Agência Nacional de Águas (ANA) confirmou: o bairro da Lagoa estava acima da cota 100. Não convencidos, os moradores exigiram da ANA e da Norte Energia o monitoramento do impacto do enchimento do reservatório da usina no lençol freático. Réguas e poços foram espalhados na comunidade. A medição está sendo feita e deve ser concluída neste ano.

A comunidade procurou também o Ibama exigindo uma solução. A argumentação dos moradores baseia-se em dois pontos. O primeiro é que a própria existência de um bairro de palafitas como a Lagoa descumpre uma condicionante de Belo Monte – prover saneamento básico a toda a cidade de Altamira. O segundo é a de que a situação do bairro da Lagoa foi agravada por Belo Monte. Os moradores alegam que a alta do aluguel na área urbana, que chegou a triplicar no início das obras, foi o principal motivador da migração que fez crescer a população da Lagoa. Imagens de satélite enviadas ao MPF também constataram o aumento da ocupação no período de construção da usina, fato que transparece na fala dos moradores. “Eu sou de Belém, cheguei aqui em 2013 para trabalhar na barragem. E todo mundo queria um lugar aqui”, relata Fábio Nunes Magalhães, militante do MAB e morador do Jardim Independente I. “Antes da barragem, você pagava R$ 400 num quarto no centro da cidade e de repente esse valor foi para R$ 2.500, R$ 3 mil. Eram casas destinadas aos encarregados da obra, alugadas pela empresa muitas vezes. O único lugar mais acessível para se morar era aqui na Lagoa”, diz Magalhães.

No fim do ano passado, o Ibama cedeu à argumentação dos moradores e determinou, por ofício, que a Norte Energia fizesse o cadastramento das famílias do Jardim Independente I para averiguar “a temporalidade do afluxo populacional” na Lagoa. No mesmo ofício, o órgão ambiental determinou à empresa que identificasse os ocupantes, a origem das famílias, o tempo e a condição de residência na Lagoa (casa ou palafita) e os motivos que os levaram a morar na comunidade. O escritório do Ibama em Altamira já havia feito anteriormente um parecer relacionando o aumento da população da Lagoa à obra e à consequente poluição do lago formado pela usina. A Norte Energia chegou a acionar o órgão ambiental judicialmente para não ter de fazer o cadastramento, mas após meses de queda de braço a empresa cedeu.

O cadastramento começou no início de setembro deste ano e deve levar três meses para ser concluído pela Norte Energia. “A gente sabe que é só um primeiro passo, mas estamos tendo esse reconhecimento”, consola-se o pintor Carlos Xipaia. Ele espera ser indenizado em dinheiro, não quer uma casa no RUC Pedral – com muitas vagas ofertadas aos indígenas da cidade. Um de seus filhos casou-se com uma ribeirinha que recebeu um imóvel em outro RUC, o Casa Nova, e ele conhece os problemas apontados pelos reassentados. “Lá tem só três anos de uso e as paredes já estão rachando, os pisos levantando. Não dá pra confiar nessas casas”, protesta.

Em visita ao reassentamento, a reportagem constatou o revestimento dos pisos soltando, rachaduras nas paredes e infiltrações nas casas e muitas queixas dos moradores.

“O Jardim Independente I ainda está em processo de análise, estamos avaliando se houve impacto ou não”, diz o coordenador do Ibama em Altamira, Roberto Cabral. “O cadastramento das famílias foi um pedido do Ibama. Os dados serão levantados e entregues ao Ibama. O que será feito depois é uma outra análise.”

Envolvido nas mobilizações, o MAB não duvida do impacto da construção da usina sobre a comunidade que vive na Lagoa. “Pra nós, do MAB, ser atingido não é só ter a casa alagada. Como você ignora uma comunidade desse tamanho sem saneamento?”, pergunta Elisa Estronioli, membro da coordenação do movimento. A Norte Energia não respondeu aos questionamentos feitos pela Pública.

A terra indígena mais desmatada dos últimos anos

Terra Indígena Cachoeira Seca do Rio Iriri é alvo constante de extração ilegal de madeira (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública)

A quilômetros de distância da cidade de Altamira, a reportagem visitou outra grande pendência de Belo Monte: a homologação e extrusão da Terra Indígena Cachoeira (TI) Seca do Rio Iriri – uma das condicionantes estabelecidas para a construção da usina. A terra foi homologada pela ex-presidente Dilma Rousseff nos últimos dias antes do impeachment, mas ficou faltando a parte mais difícil: o reassentamento das mais de mil famílias de ocupantes não indígenas que dividem os cerca de 730 mil hectares da área com os índios Arara e Xipaia. Sem a garantia do usufruto exclusivo aos indígenas, a terra hoje é alvo de um processo feroz de extração ilegal de madeira. A Cachoeira Seca foi considerada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) a TI mais desmatada do país entre 2011 e 2015.

Na viagem de um dia de voadeira para a Terra Indígena (TI) Cachoeira Seca, a partir do porto da Maribel, no município de Uruará, a impressão é que se está em um santuário da natureza. A floresta preservada margeia durante muitas horas o leito do rio enquanto o motor baixa o ronco para passar corredeiras e pedras que dão as caras no tempo de seca, o verão amazônico.

Por um momento as águas se acalmam, o céu e as árvores se espelham no leito enquanto o Sol se põe. A cena paradisíaca ofusca as ameaças sofridas pelos indígenas. Homologada desde abril do ano passado, ainda há mais de mil famílias de ocupantes não indígenas nos mais de 730 mil hectares da Cachoeira Seca, o que contraria o estabelecido na Constituição.

Interditada para estudos em 1985, a TI levou mais de 30 anos para chegar ao estágio final de demarcação. A retirada de ribeirinhos e colonos foi um compromisso assumido pelo Estado entre as condicionantes previstas para a construção de Belo Monte. Antes mesmo da emissão da licença de instalação da obra, que ocorreu em julho de 2011, a Cachoeira Seca já deveria ser de usufruto exclusivo das populações indígenas. Atualmente, há duas aldeias indígenas na TI: a aldeia Iriri, dos índios Arara, e a Cujubim, dos índios Xipaia e Curuaia.

Em maio de 2016, um mês após a homologação da área, os Arara endereçaram uma carta a diversos órgãos federais clamando por uma solução ágil. “Após a homologação, ao invés de nos sentirmos mais seguros, temos percebido uma grande reação dos grupos que têm interesse em nosso território, que começaram a nos ameaçar diretamente. Se a desintrusão e/ou ações de controle não passarem a ocorrer num prazo curto, existe alto risco de intensificação do número de invasões, da extração ilegal de madeira e do desmatamento dentro de nossa área, junto com a piora na nossa segurança”, diz a carta do povo Arara.

Segundo um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), a área da TI Cachoeira Seca sob exploração madeireira cresceu vertiginosamente durante a construção de Belo Monte: passou de cerca de 3 mil hectares em 2011 para quase 14 mil em 2014 – quando o volume total de madeira extraída atingiu 200 mil metros cúbicos, o suficiente para encher uma fila de caminhões entre São Paulo e Belo Horizonte. Em setembro deste ano, a reportagem da Pública viu cinco caminhões carregados de toras enormes de madeira trafegando nas imediações da TI durante a noite.

O cacique Arara, Mobu-Odo: “Sem a mata, não somos nada” (Foto:Iuri Barcelos/Agência Pública)

No último dia 4 de outubro, a Polícia Federal (PF) desmontou uma quadrilha que extraía madeiras nobres da Cachoeira Seca – o dano ambiental à União foi estimado em quase R$ 900 milhões. Segundo a PF, a madeira extraída ilegalmente na área foi para diversos países, como EUA, Argentina, Panamá, França, Alemanha, Emirados Árabes e Coreia do Sul.

“Sempre nós fomos perseguidos pelos brancos aqui. Até hoje tem perseguição, dos madeireiros. Antes era seringueiro, gateiro que matava a gente. Hoje é madeireiro, colono, essas pessoas que têm interesse no que o índio tem”, conta o cacique dos Arara, Mobu-Odo. O subgrupo Arara da Cachoeira Seca chegou a ser reduzido a três indivíduos quando o contato com os brancos se intensificou. Hoje são 88. “Nós, sem a mata, não somos nada. Nós só sabemos viver da mata. Eles matam a gente porque a gente preserva a terra, a mata, o rio”, resume. Um “não” enfático é a resposta quando indagado se acredita que verá um dia seu povo viver sem ser perseguido.

Em setembro, houve mais um episódio de violência em uma das aldeias da Cachoeira Seca, a Cujubim, habitada por indígenas Xipaia e Curuaia. Ao flagrarem um grupo de homens pescando em seu território, os índios tomaram os motores das voadeiras e os equipamentos de pesca dos invasores e exigiram o pagamento de um valor para devolver. O que os índios não sabiam era que havia membros da Polícia Militar de Uruará entre os pescadores. O cacique da Cujubim, Léo Xipaia, foi então jurado de morte. “A gente tem recebido tiros próximo à aldeia, tocaram fogo na nossa porteira, ligaram me ameaçando. Me mandaram um áudio dizendo que minha vida tava custando um valor alto e que iam me apagar”, conta o indígena, entrevistado sob olhares cuidadosos de uma escolta armada. “Isso porque o próprio PBA [Plano Básico Ambiental] tem um plano de proteção das terras indígenas que não funciona”, revolta-se Léo Xipaia.

Entre indígenas e ribeirinhos, amizade e conflito

O colono Firme da Conceição (à direita) vive no território desde 1987  (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública)

Em contraste, a relação é predominantemente amistosa entre índios e beiradeiros (ribeirinhos). Ano após ano, os índios marcam presença nos festivais do rio Iriri – organizados pelos beiradeiros do porto da Maribel, localizado no interior da TI Cachoeira Seca. Indígenas de várias etnias participam das competições de pesca, canoagem e futebol do festival. Ambos os lados defenderam suas posições para a reportagem da Pública, quase sempre demonstrando compreensão com a causa alheia. A maioria dos entrevistados apoiava a garantia do território aos índios e um reassentamento digno para os ocupantes de boa-fé. Os protestos se direcionam mais ao modo como o Estado vem se portando com relação a ambas as populações.

O histórico de ocupação dos brancos no território tradicional indígena é complexo. Os Arara já faziam contato de modo intermitente com os brancos desde o século 19 – um dos primeiros marcos é a abertura de seringais no rio Iriri nessa época. “Meu pai mesmo foi um que veio como soldado da borracha, alistado pelo governo federal”, conta a beiradeira e comerciante Melânia da Silva Gonçalves, uma das principais lideranças dos beiradeiros da TI Cachoeira Seca. Segundo ela, seu pai chegou durante a Segunda Guerra Mundial, período em que a região amazônica vivia o segundo ciclo econômico da borracha. “Quando ele veio pra cá, ele conheceu a minha mãe, que já tinha nascido aqui na beira do rio”, relata Melânia. À época, os Arara circulavam por uma área extensa de mata pelas margens dos rios Xingu e Iriri. Posteriormente chegaram os caçadores, atrás da pele dos gatos-do-mato, em outro ciclo econômico vivido na região.

Transamazônica: dela saem os ramais que invadem a T.I Cachoeira Seca (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública)

 A partir da década de 1970, o processo de ocupação começou a se tornar mais intenso por iniciativa dos militares no poder. A política de colonização da Amazônia estava a pleno vapor e a região da TI Cachoeira Seca foi alvo de várias medidas que visavam promover o desenvolvimento econômico e o “povoamento” da região. Nos anos 1970, o Plano de Integração Nacional (PIN) trouxe para perto do território Arara a rodovia Transamazônica e os projetos de colonização em suas margens. A estrada cortou a terra dos índios ao meio, passando a menos de 3 quilômetros de uma aldeia usada pelos índios na estação de seca, segundo um laudo feito posteriormente pelo antropólogo Márnio Teixeira Pinto. Segundo ele, a rodovia restringiu o deslocamento dos índios no interior do seu território.

Na mesma década, o governo criou o Polígono Desapropriado de Altamira, uma área de mais de 6 milhões de hectares na qual estava inserido o perímetro da TI Cachoeira Seca, destinada a projetos de colonização e reforma agrária. Em março de 1977, a Cooperativa Regional Tritícola Serrana Limitada (Cotrijuí), do município gaúcho de Ijuí, recebeu do governo federal 400 mil hectares dentro da área do polígono. No local, deveria ser implantado um projeto de colonização para 2 mil famílias.

Com o aumento do fluxo migratório para a região, os conflitos entre índios e migrantes passaram a estampar a capa dos jornais. Um ataque de caçadores deixou ao menos 12 indígenas mortos a tiros, e seis funcionários da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), que faziam uma picada no quilômetro 100 da Transamazônica, foram mortos e esquartejados pelos Arara. Meses depois, o colono Pedro Brito Furtado foi morto de maneira semelhante em outro ponto da estrada.

Os conflitos eram a parte mais visível de uma política esquizofrênica do Estado brasileiro, que estimulava a colonização da área enquanto avançava em direção ao reconhecimento do território como área indígena. Em 1971, a Funai montou a primeira frente de atração para “pacificar” os Arara; no mesmo ano, o Incra criou o Polígono Desapropriado de Altamira, destinando parte do território indígena à colonização agrícola.

Índios Arará no porto de Maribel, dentro da T.I Cachoeira Seca (Foto: Iuri Barcelos/ Agência Pública)

E o Incra continuava assentando colonos quando, por meio de um termo de compromisso, formalizou seu aval à construção da rodovia Trans-Iriri pela madeireira Bannach em 1984. A estrada, em território indígena, era um prolongamento do travessão 185 sul da Transamazônica até o rio Iriri, que desemboca no porto da Maribel. No ano seguinte, porém, a Funai interditou 1 milhão de hectares para seguir com a atração aos Arara exatamente na área dos assentados do Incra.

Muitos colonos relataram à Pública ter chegado à região na época da abertura da Trans-Iriri. Era o “tempo do mogno”, e a extração de madeira nobre, comandada pela Bannach, atraiu muita gente à região, como lembra o colono Firme da Conceição, 82 anos, que chegou em 1987: “Naquele tempo, era a Bannach fazendo a picada e abrindo a estrada e o Incra dando autorização pra ir loteando dos dois lados. Aí eu comprei essa terrinha. Nunca tinha ouvido falar que aqui era área de índio, nunca tinha visto um índio aqui”, diz Firme. “Aqui era a madeireira na beira do rio, abrindo a estrada, e no resto era colono trabalhando. Meu irmão entrou primeiro, era terra devoluta. Aí ele tirou um lote e me deu outro”, relata o colono Valdir Soares dos Anjos, que também está ali desde 1987. Até hoje a estrada aberta pela madeireira é o ponto de maior concentração de ocupantes não indígenas.

Foi também em 1987 que a frente de atração estabelecida 16 anos antes pela Funai finalmente conseguiu contato com o subgrupo Arara que hoje habita a TI Cachoeira Seca. Durante muito tempo, os índios se isolavam cada vez mais, fugindo dos brancos. Em 1988, a Funai formou um grupo de trabalho para delimitar o território tradicional indígena, mas a demarcação física só foi concluída em agosto de 2011. Foram muitas idas e vindas do processo, marcado por contestações judiciais de várias partes (prefeituras, madeireiros, sindicatos de produtores rurais etc.) e por manifestações contrárias dos ocupantes não indígenas do território. E o Incra seguiu batendo cabeça com a Funai: em 1997 e 2006, o órgão fundiário criou projetos de assentamento sobrepostos à área indígena.

A Norte Energia prometeu solucionar a questão da extrusão até a emissão da licença de instalação da usina, em junho de 2011, o que não ocorreu. O levantamento dos ocupantes não indígenas da área – que nem sequer foi concluído pela Funai – já antecipa a dificuldade de o Incra finalizar a questão, reassentando os colonos. Só em um dos municípios próximos, Uruará, o órgão conta com uma fila de mais de 1.800 famílias cadastradas para obter um lote da reforma agrária. Isso sem contar o valor financeiro a ser pago como indenização às famílias e a possível judicialização do processo, o que pode torná-lo ainda mais vagaroso.

Em relação aos ribeirinhos, a questão é ainda mais complexa. Como são reconhecidos e protegidos legalmente como população tradicional, o reassentamento deve garantir a continuidade do modo de vida das comunidades. “O ribeirinho só sai do seu lugar se existir um lugar idêntico para ele ir. E não existe um lugar idêntico a onde eles estão hoje”, diz a procuradora Thaís Santi, do MPF em Altamira. “Então, eu realmente acho que eles vão ter que ficar lá”, opina.

Sobrepostos à área indígena, os ribeirinhos ficaram sem acesso a serviços básicos como postos de saúde, escolas, energia elétrica e água encanada. “O município não pode trazer nada pra cá porque é TI. Aí a gente só faz é esperar”, conta a liderança Melânia Gonçalves. “A gente não quer sair daqui. Podem até me dar uma outra terra, mas quem vai me dar um rio desse aqui, onde eu nasci e me criei?”

Do lado dos índios, a frustração com Belo Monte é evidente. Da promessa de solução fundiária e proteção territorial da Cachoeira Seca, restaram obras que andam a passos lentos, reuniões infrutíferas com a Norte Energia e pressões como o desmatamento e o roubo de madeira. Isso em um cenário em que a Funai de Altamira agoniza: o órgão indigenista, que contava com 53 funcionários, tem hoje apenas 17 pessoas para lidar com um emaranhado de problemas em um território de milhões de hectares.

Procurada pela Pública, a Funai não respondeu aos pedidos de entrevista. A Norte Energia afirmou que não se pronunciaria.

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