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Acompanhamos o julgamento que decidiu pela prescrição de ação movida pela família de um jornalista vítima do coronel Ustra – o herói de Bolsonaro – e entrevistamos sobreviventes e familiares de outras vítimas da ditadura militar

Reportagem
25 de outubro de 2018
12:18
Este artigo tem mais de 5 ano

Quando as portas da imponente sala do Tribunal de Justiça de São Paulo se abriram na manhã daquela quarta-feira 17 de outubro em São Paulo, cada centímetro do pequeno espaço destinado ao público foi rapidamente preenchido por jornalistas, defensores de direitos humanos, amigos e familiares do jornalista Luiz Eduardo Merlino. Torturado e assassinado sob o comando do então coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, em julho de 1971, como reconheceu decisão judicial de 2012, o coronel recorreu contra a sentença ainda em 2012 – antes de morrer em 2015. O processo aguardava julgamento da apelação desde então. Nos corredores comentava-se a coincidência do julgamento ter sido marcado inesperadamente entre o primeiro e o segundo turno da primeira eleição, desde a redemocratização, em que a ditadura militar compareceu com força no debate eleitoral. Defendida como necessária por um dos candidatos à Presidência, que tem um general como vice, e relativizada por estrelas da Justiça, como o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal o risco de uma nova ditadura também foi apontado por muitos dos que viveram o esmagamento da democracia – de políticos a artistas, juristas e intelectuais.

Por isso, de uma forma ou de outra, a sessão seria importante e simbólica. O objetivo era julgar a apelação da defesa do coronel Ustra contra a determinação da 20ª Vara Cível de São Paulo de pagar indenização por danos morais à esposa e à irmã do jornalista, torturado e morto nas dependências do DOI-Codi, por ele comandado. Na sentença em primeira instância, a juíza Cláudia Menge afirmou que eram “evidentes os excessos cometidos pelo requerido, diante dos depoimentos no sentido de que, na maior parte das vezes, o requerido participava das sessões de tortura e, inclusive, dirigia e calibrava intensidade e duração dos golpes e as várias opções de instrumentos utilizados”. Na época, a família deixou que a própria juíza fixasse o valor da indenização, já que a prioridade era o reconhecimento da responsabilidade de Ustra no crime por parte do Estado.

A versão oficial contada à família – similar a tantas outras versões comprovadamente forjadas na época – foi que o jornalista havia se suicidado durante uma fuga. Seu corpo teria sido enterrado sem identificação se não fossem as buscas realizadas por seu cunhado, que era delegado de polícia. A família Merlino tentou entrar com outras ações na Justiça, todas negadas, até conseguir finalmente seguir com a ação indenizatória em 2010, vencida dois anos depois e agora novamente em xeque.

Nesse ínterim, o nome de Carlos Alberto Brilhante Ustra voltou aos holofotes através de homenagens reiteradas do candidato à Presidência Jair Bolsonaro. Durante a votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, o então deputado federal dedicaria seu voto à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Em 1970 Dilma foi presa e barbaramente torturada no DOI-Codi sob o comando do coronel. Na última terça-feira (23), em entrevista concedida ao programa Conexão Repórter, do SBT, Jair Bolsonaro voltou a elogiar o coronel, dizendo que Ustra “prestou um grande serviço ao país, ninguém pode negar”.

Tatiana Merlino, sobrinha de Luiz Eduardo, conta que a família foi reconstituindo os fatos ao longo dos anos a partir de depoimentos dados por outros presos políticos, testemunhas e amigos do jornalista. O que sabem é que Merlino, então com 23 anos, foi levado da casa de sua mãe em Santos (SP) por homens armados com metralhadoras para o DOI-Codi em São Paulo; lá ficou preso ao pau de arara por cerca de 24 horas, sendo submetido a sessões contínuas de torturas até que uma de suas pernas gangrenasse. Depois foi mantido em uma cela forte, já em estado grave de saúde, sem poder andar, comer ou urinar sem ajuda, até ser jogado em um camburão e levado ao hospital militar. Uma testemunha conta que, enquanto estava sendo torturada por Ustra, ouviu uma conversa dele com o médico ao telefone, em que deveria decidir se amputavam a perna para salvar a vida de Merlino – mas para isso precisariam avisar a família – ou se o deixavam morrer. “Deixa morrer” teria sido a determinação dada pelo coronel.

Conhecido pelos torturados pelo apelido de “Doutor Tibiriçá”, Ustra foi chefe comandante do Destacamento de Operações Internas (DOI-Codi) de São Paulo no período de 1970 a 1974. De acordo com o relatório final da Comissão da Verdade, participou do sequestro e homicídio de ao menos 47 pessoas, além do desaparecimento de mais de 500 presos políticos. Em 2008, Ustra tornou-se o primeiro militar condenado pela Justiça brasileira pela prática de tortura durante a ditadura, em ação ajuizada pela família Teles em 2005 (veja ao final da reportagem depoimento de Maria Amélia Teles sobre o sequestro de seus filhos pequenos e as torturas sofridas por ela, por seu marido e por sua irmã grávida de oito meses). Em dezembro de 2014, o Superior Tribunal de Justiça confirmou a sentença.

Amelinha Teles era uma das pessoas presentes na sessão que julgaria o seguimento do processo da família Merlino naquela quarta-feira. A algumas cadeiras de distância, estava a socióloga e ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres Eleonora Menicucci, também barbaramente torturada sob o comando do coronel e uma das testemunhas do processo de Luiz Eduardo. Os dois foram torturados juntos. Em entrevista após o julgamento, ela falou da tortura: “Fui conduzida, nua, para uma cadeira elétrica, onde colocaram fios em todos os meus orifícios, para que eu recebesse choques de altíssima voltagem. Ao meu lado, estava Merlino, no pau de arara”. Ela relembrou também o papel de Ustra, que ficava em frente às celas dizendo “arrebenta mais, quero mais choques elétricos, faz urinar, desmaiar”.

E foi diante dessas mulheres, incluindo a sobrinha e a ex-companheira de Merlino, Ângela Mendes de Almeida, que os três desembargadores da segunda instância do TJ, Luiz Fernando Salles Rossi, Milton Carvalho e Mauro Conti Machado, decidiram pela extinção da ação por entender que se encontrava prescrita. A lei civil prevê um prazo de 20 anos nesse tipo de ação. “Dizer que a gente esperou 20 anos para entrar com a ação é muito cruel. Foram 47 anos de muita luta. E eu sinto muito por minha avó ter morrido sem ter visto justiça”, disse Tatiana à Pública, depois do julgamento (veja o depoimento dela abaixo).

Mas o desembargador Salles Rossi foi além. O relator disse que não havia provas e questionou as testemunhas presenciais sobre a participação de Ustra na tortura e no assassinato de Merlino durante a “chamada ditadura militar”. Desconsiderou documentos, produzidos pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instaurada por Fernando Henrique Cardoso (PSDB), da Comissão Nacional da Verdade, instituída por Dilma Rousseff, e da Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo, que reconhecem a responsabilidade do Estado brasileiro e a de Ustra, pessoalmente, pela morte de Merlino. O relator deu crédito ao atestado de óbito, que alegava um atropelamento forjado pela ditadura, e se referiu a Ustra como “suposto torturador”. A própria decisão da prescrição da ação, proclamada unanimemente pelos desembargadores, contraria a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça de que crimes de tortura jamais prescrevem. A decisão vai também na contramão dos tratados internacionais – dos quais o Brasil é signatário – que dizem que crimes contra a humanidade não são passíveis de prescrição, como explica a professora de direito Carla Osmo, da Universidade Federal de São Paulo, especialista no tema. “Esse argumento [da prescrição], que prevaleceu, contraria jurisprudência firme do STJ”, afirmou à Pública. Em julho deste ano, o Estado brasileiro foi condenado pelo Tribunal Interamericano pela falta de investigação, julgamento e punição aos responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog, que completa 43 anos no dia de hoje. De acordo com o tribunal internacional, os fatos ocorridos contra ele devem ser considerados como crime de lesa-humanidade, imprescritíveis portanto. A família Merlino já decidiu que vai recorrer da sentença.

“Como o Brasil é signatário de uma série de tratados internacionais que têm caráter supralegal e, por isso, acima do Código Penal, há um entendimento de que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis. E justamente por conta disso que nós questionamos o alcance da própria Lei da Anistia. Existem algumas ações junto ao STF para que a lei seja revista, para defender esse posicionamento de que os crimes contra a humanidade estão em tratados internacionais, então que agentes de Estado que cometeram esses atos devem ser punidos. Nosso posicionamento é muito firme nesse sentido”, disse à Pública a presidente da Associação Juízes para a Democracia, Laura Benda. Para ela, “a interpretação sobre crimes cometidos durante a ditadura está em disputa, inicialmente se tratava de aplicar apenas a Lei de Anistia, mas há outras interpretações, inclusive do STJ, sobre o próprio Ustra”.

Para Carla, o questionamento da tortura e da própria ditadura pelos desembargadores traz graves consequências políticas para o país. “Quando você começa a questionar esse tipo de coisa, você entra na esfera do negacionismo, como aquele que aconteceu quanto aos crimes do nazismo com relação aos campos de concentração e extermínio. A negação se apresenta como uma divergência a respeito da história, mas no fundo ela tem uma proposta política. Você está questionando a ocorrência de violações gravíssimas de direitos humanos e que deixaram marcas profundas em pessoas e em sociedades inteiras. A negação, nesse caso, tem consequências reais muito fortes, ela atualiza a violência. O negacionismo é uma agressão, além do fato de que é preciso conhecer para ter condições de evitar a repetição.”

Neste momento, em que um dos candidatos à Presidência homenageia o algoz das famílias Herzog, Teles e Merlino, decidimos ouvir algumas das vítimas e familiares de vítimas da ditadura militar. Veja o que têm a nos ensinar sobre a ditadura a viúva de Herzog, o filho de Rubens Paiva, que viu seu pai desaparecer com 11 anos de idade, Amelinha, torturada na frente dos filhos, Tatiana, que conheceu seu tio apenas por um retrato na cômoda do quarto da avó, e a irmã de um operário torturado que nunca mais se recuperou.

Clarice Herzog

Formada em ciências sociais pela USP, viúva do jornalista Vladimir Herzog, preso em 25 de outubro de 1975 – há 43 anos –, torturado e assassinado nas dependências do DOI-Codi em São Paulo. A foto de Vlado, publicada na época para simular um suicídio, tornou-se símbolo desse período de repressão por revelar também as artimanhas dos agentes do Estado para encobrir a violência e a tortura. Em 1978 a Justiça condenou a União e determinou a apuração dos fatos, mas nada foi feito. Tentativas posteriores foram arquivadas com base na Lei da Anistia, de 1979. Em julho deste ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro pela falta de investigação, julgamento e punição aos responsáveis pela tortura e assassinato de Vlado. O tribunal internacional determinou que os fatos ocorridos contra ele sejam considerados crimes de lesa-humanidade e ordenou ao Estado brasileiro que reinicie, com a devida diligência, a investigação e o processo penal de Herzog para identificar, processar e, se for o caso, punir os responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista.

“Eu me lembro que estava na avenida Paulista e ouvi uma pessoa do meu lado falar: ‘Ah, é uma bagunça aqui. Na época da ditadura, era tudo organizado’. E eu disse: ‘O que que aconteceu na ditadura? Você sabe o que aconteceu? Matavam gente!’. Agora a gente tem esse candidato que despreza mulheres, negros, homossexuais e indígenas e ainda tem como ídolo o Ustra, que matou muitos brasileiros, inclusive o Vlado. O Ustra mesmo dizia isso, que torturava. Eles se sentiam tão acima, tão donos de tudo, que declaravam, né? ‘Torturo, mato.’ Eu nunca acreditei que o Vlado se matou, imagina, nunca, nunca. O Vlado nunca se mataria. Nós tínhamos filhos pequenos, ele tinha projetos importantes, fazer cinema era o grande sonho dele. Para vocês verem como eles sentiam que podiam matar, fazer qualquer coisa, eles puseram aquela foto do Vlado pendurado com o pé no chão. Ninguém se suicida, se enforca, com o pé no chão. Não dá, né? Logo em seguida, eu me lembro de que viajei com as crianças, fiquei um mês fora, no Ceará, e, quando estava voltando, abri o jornal no avião e tinha uma foto do Manoel Fiel Filho, e era a mesma coisa do Vlado, só que o Vlado era pendurado com o pé no chão e o Fiel Filho era sentado na privada com a meia no pescoço. Eu não fiquei quieta, entrei com um processo. Outro dia o Ivo [filho do casal] lembrou: eu trabalhava em uma empresa de origem americana e eles disseram: ‘Você escolhe pra onde você quer ir. Eu te arranjo um local em qualquer lugar do mundo. Você vai lá com suas crianças, sai daqui’. E eu falei: ‘Não, não vou sair. Meu lugar é aqui, porque eu tenho que provar que meu marido foi assassinado, que ele não se matou’. E aí entrei com processo e lembro que o juiz, quando terminou o processo todo, exigiu que se fosse ver o que aconteceu com ele, como ele foi morto, e determinou uma indenização. Mas não fizeram nada. Nunca, nunca se manifestaram, ninguém tomou conhecimento, ignoraram. A Corte Interamericana de Direitos Humanos entrou [com a reclamação] agora, mas, por enquanto, a gente não tem nada. Quando falaram ‘a família tem que saber’, eu falei: ‘Não só a família, a sociedade tem que saber o que aconteceu nesse país para evitar que isso volte a acontecer’. Não esperava por isso que está acontecendo agora, mas acho que tudo pode acontecer. A primeira coisa que eu ouvi ele falar foi que não era pra torturar, [era para] matar de cara. E corremos o risco de ele ser presidente do Brasil. E o que nós podemos fazer? Ninguém quis botar a mão nos crimes da ditadura. A nação não quis. Eu nunca tive uma resposta mesmo com determinação da Justiça. A única coisa que o Ivo conseguiu é que o documento de morte do Vlado, que antes dizia suicídio, fosse modificado. Na hora em que o Vlado morreu, as pessoas bem informadas sabiam o que tinha acontecido, mas as pessoas que não eram achavam que o Vlado tinha mesmo se suicidado. Meu pai mesmo encontrou com um amigo que falou para ele: ‘O que aconteceu com seu genro? Casado com a sua filha, com criança pequena, e vai se matar?’. Ele entrou vivo no sábado e saiu morto. Bateram na minha porta, uns grandões e alguns amigos dele já estavam sendo presos. E aí eles falaram: ‘Precisamos falar com o Vlado Herzog’, não lembro exatamente, ‘para que ele tire umas fotografias de um casamento amanhã’. Eu falei: ‘O Vlado não é fotógrafo’. [Aí eles disseram:] ‘Não, mas nós estamos precisando, queremos falar com ele’. Eu disse que ele estava trabalhando na TV Cultura, mas que não tinha o endereço de lá. Em seguida liguei para ele e disse: ‘Eles estão indo praí, vou pegar as crianças – meus filhos eram pequenos, estavam dormindo – e vou correndo porque eles não sabem onde é, pego você e vamos pro sítio para você não ser preso no fim de semana’, porque eu sabia que nada funcionava no fim de semana. Mas quando eu cheguei eles já estavam lá. E aí houve toda uma negociação com o presidente da Cultura de ele se apresentar e não ser durante a noite. Dormiu um cara em casa, no meu sofá. Então ele se apresentou no sábado. Eu nunca pensei que ele fosse morrer, isso nunca passou pela minha cabeça. Eu achei que ele ia ser… Que ia apanhar. Mas acho que ele reagiu e os caras entraram em cima dele. É o que passa pela minha cabeça. Eles arrebentaram ele. E agora vamos esperar que a ditadura não volte nesse país. A gente tem que lutar contra isso. Vocês que são a nova geração precisam ter consciência do que foi esse período para não deixar repetir.”

Marcelo Rubens Paiva

Escritor, dramaturgo e jornalista. Seu pai, o ex-parlamentar Rubens Paiva, foi preso, torturado e morto durante a ditadura militar, no Rio de Janeiro, em 1971. O corpo de Rubens Paiva nunca foi encontrado.

“Estamos vivendo um momento terrível, inacreditável, que mostra que as pessoas não entendem a própria história. Como tem as pessoas que não acreditam em Holocausto, agora tem as pessoas que não acreditam na ditadura militar. A minha teoria é de que a Revolução Tecnológica está criando uma geração de infelizes, assim como a Revolução Industrial criou, que é a das pessoas que não se readaptam aos novos tempos. O fascismo veio de uma insatisfação com a política. Infelizmente quem sofreu na ditadura, quem lutou contra a ditadura, nunca imaginou que isso fosse acontecer. E você não pode chamar de momento autoritário porque eles estão sendo eleitos pelo voto. As eleições são democráticas. O Bolsonaro está sendo eleito pela democracia. O jeito que ele agride os homossexuais, as mulheres, as conquistas sociais… O temor que vai causar aos índios, que vão ser cercados por posseiros, fazendeiros e garimpeiros… O discurso de ‘a maioria vai vencer e a minoria tem que se enquadrar’, o que é isso? Eu sou deficiente físico, eu estou acostumado a lutar pelos direitos das minorias, a batalhar por elas. Agora: líderes responsáveis estão tendo o direito de se isentar diante do que tá acontecendo. O mais assustador é que o Supremo não faz nada. O TSE não faz nada. A OAB está calada. Os juristas estão calados. Grande parte da imprensa está calada. Quer dizer, exatamente como aconteceu antes do golpe de 1964. De fato a ditadura não conseguiu ser explicada, não conseguiu passar de uma fase para outra, e não conseguimos julgar os criminosos brasileiros, os torturadores – e a gente está pagando o preço até hoje. Não foi como na Argentina, em que se prenderam os generais torturadores, os generais ditadores. A sociedade brasileira foi omissa em relação a esse ‘acordão’, que era o que se chamava na época da redemocratização. Tivemos um azar tremendo, que foi a entrada do Sarney, e depois um azar maior ainda, quando entrou o Collor… O Brasil é muito azarado. O momento é de muita tristeza. Nunca vi o Brasil viver um momento tão triste como este – e eu vivi na ditadura –, especialmente porque é uma escolha da população. Não é possível o PSDB, não é possível o MDB, não é possível a Igreja Católica, não é possível que as igrejas evangélicas, não é possível que o STF, o TSE, a ABI, a OAB, a OEA… Não é possível estarem todos em silêncio.”

Maria Amélia de Almeida Teles

Escritora, feminista, diretora da União de Mulheres de São Paulo e coordenadora do Projeto Promotoras Legais Populares. Foi presa e torturada por Carlos Alberto Brilhante Ustra, então comandante do DOI-Codi de São Paulo, em pessoa. Seus filhos, de 3 e 5 anos, foram sequestrados por cerca de dez dias e obrigados a assistir aos pais em sessões de tortura. Sua irmã, grávida de oito meses, também foi presa. Viu companheiros serem assassinados e seu marido entrar em coma em consequência da violência sofrida. Em 2005, a família Teles moveu uma ação declaratória contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, que resultou no reconhecimento dele como torturador. Em 2008, ele foi o primeiro agente da ditadura a ser declarado torturador.

“O que marcou uma distância entre democracia e ditadura, para mim, foi quando a Câmara de Deputados se reuniu num domingo, dia 17 de abril de 2016, para fazer a votação do impeachment contra a presidente Dilma, e Bolsonaro, então deputado, se levantou e disse: ‘Em memória do Carlos Alberto Brilhante Ustra’. Um dos principais torturadores deste país – porque ele não era só da execução de tortura, mas ele estava no comando, ele fazia parte de uma estratégia política de Estado de empregar a tortura, o assassinato, o extermínio, o desaparecimento forçado. Não era qualquer pessoa. E Bolsonaro fala em alto e bom tom: “Em memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor da Dilma Rousseff”. Ele usou essa expressão “o pavor da Dilma Rousseff”. Aquilo não só foi tripudiar sobre a pessoa da Dilma, mas também fazer uma apologia à tortura para o país inteiro. E a falta de reação do Parlamento naquele momento foi assombrosa. Não houve uma reação à altura do significado dessa ofensa. Ali eu entendi que poderíamos trocar a democracia pelo autoritarismo. E essa é a bandeira que vem ganhando espaço na sociedade. Isso foi acumulando força, uma política fascista foi se disseminando, com Bolsonaro à frente. Nós que defendemos a democracia, nós que lutamos contra a ditadura, muitos de nós estamos velhos, cansados, exauridos, e temos o direito de ficar. Mas a sociedade brasileira não se apropriou dessa luta, nós conhecemos muito pouco da nossa história. Eu fui para o pau de arara, fui torturada por defender liberdades políticas. Quando a gente pede para apurar os crimes da ditadura, punir os responsáveis, é justamente para que não se repita. Não é uma vingança pessoal porque o Ustra me torturou, porque o [Lourival] Gaeta me torturou. O Brasil fez algum esforço nesse sentido? Nenhum. O Estado brasileiro fez o esforço no sentido contrário, de não punir, de não investigar. A Comissão da Verdade foi uma luta nossa. E eu acho que nós corremos o risco de viver agora em um modelo fascista de repressão, de extermínio. Existe a possibilidade de ter um estrago até maior do que a ditadura, se é que eu posso te dizer isso, e olha que eu fui vítima e sobrevivente do período da ditadura, eu conheci o pior. Eu assisti a assassinato sob tortura. Meus filhos foram sequestrados e levados para o DOI-Codi, nas mãos do Carlos Alberto Brilhante Ustra, e me viram na cadeira de dragão, sentada, sem roupa – porque a primeira coisa que eles faziam era tirar sua roupa –, desprotegida, fragilizada, urinada, vomitada, evacuada… Eu passei por tudo isso. Vi meu marido entrar em estado de coma. Eu espero francamente que as pessoas raciocinem rapidamente para podermos criar possibilidade de um outro caminho – cheio de espinhos também –, mas ter um fascista na Presidência vai ser uma tragédia para o Brasil.”

Tatiana Merlino

Jornalista e sobrinha de Luiz Eduardo Merlino, torturado e assassinado durante a ditadura militar, em 1971, sob o comando de Carlos Alberto Brilhante Ustra.

“O meu tio era jornalista e militante de esquerda e, em 15 de julho de 1971, com 23 anos de idade, após voltar de uma temporada na França com sua companheira, Ângela, ele foi preso na casa da minha avó, em Santos. Três homens, à paisana, chegaram dizendo que eram amigos dele e, quando abriu a porta, a família viu que eles estavam com metralhadora. Estava a minha avó e a minha mãe. Um desses homens – minha mãe sempre falou muito disso e com muita tristeza – ficava encostando a metralhadora nela e disse: ‘Eu sou semianalfabeto, mas não tenho irmão terrorista’. Elas viram pela janela ele ir embora com eles, o carro era um Corcel. E ao longo desses 40 anos a família foi montando – primeiro foi minha avó, depois minha mãe e agora eu, como terceira geração – esse quebra-cabeça, juntando os relatos de testemunhas. Além do sofrimento, da tristeza, todo trabalho de busca, de investigação, foi feito pela família, e por isso aquela fala do desembargador dizendo que a gente esperou 20 anos para entrar com a ação é muito cruel. Foram 47 anos de muita luta. E eu sinto muito por minha avó ter morrido sem ter visto justiça. Ela entrou com uma ação em 1979. Até hoje o que a gente tem é um panorama feito a partir desses relatos costurados: o Merlino foi levado para a Oban, para o DOI-Codi, e ficou 24 horas no pau de arara. Aí tem testemunhos da Eleonora Menicucci, Otacílio Cecchini, Leane de Almeida, de várias pessoas que foram acareadas junto com ele, torturadas junto. Tem um depoimento da Eleonora que conta que ela estava na cadeira do dragão e ele, no pau de arara. Depois de 24 horas no pau de arara, ele foi colocado numa cela forte, junto com um artista plástico já falecido, chamado Guido Rocha. O Guido contou que eles conversaram muito, e meu tio não conseguia mais andar, era ele que carregava meu tio a fazer xixi, para se mexer. Ele não conseguia comer, ficava vomitando. Eu não sei se foi antes da cela forte ou depois, mas ele foi colocado em cima de uma mesa, na frente das celas, já muito mal, e um dos carcereiros, que tinha o apelido de Boliviano, fez umas massagens na perna dele, e nesse momento vários presos políticos viram. Um deles foi o Paulo Vanucchi, que era estudante de medicina e viu que a perna dele estava superroxa, azul-escura, com gangrena. Os presos ficavam pedindo para que ele fosse levado para o hospital porque ele estava muito mal. Uma das militantes, a Leane de Almeida, que foi torturada junto com ele, conta que subiu no ombro de uma outra presa e viu pelo basculante da janela ele sendo jogado, com vida ainda, no porta-malas de um camburão. E aí, em tese, ele foi levado para o hospital militar. O Otacílio conta que estava sendo torturado no momento em que o Ustra recebeu um telefonema. E pelas respostas entendeu que o diálogo era: ‘Olha, ele tá muito mal. Para salvar a vida dele, tem que amputar a perna. Para amputar, tem que avisar a família’. E aí o Ustra falou: ‘Não, deixa morrer’. Então, além de ter comandado as torturas, o Ustra decidiu pela morte do meu tio. Ele era o comandante que determinava as torturas e fazia o interrogatório. E tem outros agentes que participaram, e a gente sabe o nome: o Aparecido Laertes Calandra e o Dirceu Gravina. Os relatos dizem que, para forjar a morte dele, passaram com um caminhão em cima do corpo já sem vida para ter marcas de pneu. Aí a notícia que chegou para a família foi que ele teria cometido suicídio quando estava sendo transportado para o Rio Grande do Sul para identificar outros presos políticos. Ele teria fugido do carro e sido atropelado. Meu pai era delegado de polícia, o cunhado [do Merlino], e veio de Santos para São Paulo junto com um tio que era médico e conhecia o diretor do IML, chamado Arnaldo Siqueira. Eles chegaram lá e perguntaram: ‘Ele está aqui? O Luiz Eduardo Merlino?’. E esse Arnaldo Siqueira, que estava lá na hora, falou [que] não, não estava. Meu pai entrou na condição de delegado, foi abrindo as geladeiras e encontrou o corpo sem identificação e com muitas torturas. A gente nunca soube qual o real estado do corpo que ele encontrou porque ele nunca falou, nunca contou, e meu pai era aquele homem de direita, não era um homem pró-ditadura, mas era um cara de direita, e o resto da vida ele foi perseguido como “o cunhado do terrorista”. Ele tinha muito medo de que o mesmo acontecesse comigo. E aí, pulando para os dias de hoje, eu tenho pensado muito no meu pai. Ele falava para mim: ‘Para de escrever de Calandra, para de fazer matéria sobre esses caras, para de falar de Operação Castelinho, não escreve sobre isso, eles estão todos aí’. Ele odiava que eu fosse jornalista de direitos humanos e falasse da ditadura e da violência policial. E eu achava que era teoria conspiratória, como já achei de muitos militantes de esquerda, que estavam exagerando. E teve um processo bem importante para mim, que foi o de me descobrir como vítima, porque eu sempre achei que eu fosse só familiar, e descobri que sou vítima também porque eu fui impedida de conhecer meu tio. Eu achava que as vítimas eram minha mãe e minha avó porque eu cresci vendo o sofrimento delas, mas, na Comissão Estadual da Verdade, quando a gente fez uma série de audiências sobre as crianças, “Verdade e Infância Roubada”, que depois virou livro, eu me percebi como vítima também, porque tem as crianças que foram as atingidas diretamente, a criança que foi levada para o órgão de repressão – a Janaína, o Edson [filhos da Amelinha] – mas eu consegui me perceber também como atingida porque meu contato com ele foi aquela fotografia de um menino de 20 e poucos anos. Eu tenho 42 anos e cresci vendo aquela foto na cômoda da minha avó com uma rosa do lado. Era o ‘titio Eduardo’. E aí fica mais forte ainda estar vivendo os dias de hoje. É enlouquecedor. Acho que minha geração tem como responsabilidade não deixar a memória dessas pessoas morrer, mas, agora, como fazemos isso? Porque neste momento não é só deixar a memória morrer, a gente tem que impedir que volte. Porque não é um golpe armado, com tanques na rua. Não é um golpe militar, mas é um novo golpe conduzido pelas vias eleitorais. Embora eu ache que a democracia nem se completou, a gente tem a continuidade da violência do Estado nas periferias e essa autorização que a gente sempre teve com a tortura e extermínio dos pretos e pobres. As instituições não foram reformadas, a atuação da Polícia Militar é a partir da lógica de guerra ao inimigo. Minha avó morrer e ter no atestado de óbito do meu tio um “T”, de terrorista, é muito violento. São muitos anos de violência contínua, né? Porque, além da violência em si, é a violência do não reconhecimento, do não pedido de desculpas, do não trazer a verdade à tona. Essa nova sentença é um retrocesso enorme, um recado de que se tem licença para matar, de que a tortura é permitida. Falar em ‘suposta ditadura’ e ‘suposto torturador’ [como foi dito pelos desembargadores]. Voltar a questionar se houve uma ditadura militar, o que era ponto pacífico, reconhecido pelo Estado. E agora vão reescrever a história? É claro que não vamos desistir do processo, não tem como desistir. Mas minha mãe e minha tia podem morrer antes disso chegar ao fim, percebe? É tudo muito perverso.”

 Neide Abati

Presidente da União Popular de Mulheres das regiões de Jardim Maria Sampaio, Campo Limpo e Capão Redondo. Seu irmão Elídio Martins foi preso e torturado em 1967 durante 20 dias. As sequelas da tortura permanecem até hoje.

“A gente nasceu de uma família que gostaria de ter uma vida com mais direitos. Nós tivemos muita dificuldade para sobreviver. A gente via que o Brasil era um país que tinha bastante recurso, uma terra abençoada, com comida, com gente inteligente, mas fomos entendendo que era também um país atrasado. A gente começou a ter essa consciência na juventude e começou a organizar grupos da paróquia para discutir o que estava acontecendo no Brasil. A gente não sabia que aquilo era política, né? Não tinha essa consciência. Mas tudo isso é política. Fazia essas vivências e se reunia com nossos amigos, nossas amigas, tinha uma juventude bem organizada, não ficava pendurado em novela, em televisão. Nem tinha televisão. Eu tenho 80 anos. Isso fez a gente crescer na consciência sobre direitos, sobre cidadania, embora a gente não falasse muito em cidadania, em democracia. E aí a gente foi vendo que o governo era muito ruim, que mandava embora aqui do Brasil as nossas riquezas, a gente queria defender o Brasil dos governos estrangeiros. E aí meu irmão Elídio foi trabalhar como operário e começou a se interessar pelas lutas do sindicato. Ele tinha 17 anos, estava estudando e ao mesmo tempo trabalhando. Aí um dia ele foi ajudar uma moça, levar ela até determinado lugar, e o carro foi interceptado no caminho. E, no carro, tinha uns folhetos com “Fora Rockefeller”. O Rockefeller era uma pessoa muito rica, que levava riquezas nossas, e a juventude estava fazendo um monte de ações contra isso. Então, levaram ele e a moça e ele foi denunciado por subversão. Torturaram ela nua. Ele foi muito torturado e ele tinha que mostrar quem era do grupo dele, e era o nosso grupo, né? Nosso grupo dava aula de alfabetização, aquelas aulas do Paulo Freire, que era ensinar a partir do que a gente faz, da realidade. Não tinha nada assim de ‘vamos derrubar o governo’, era um trabalho de orientar porque, se a pessoa sabe ler, é uma coisa, mas, se ela sabe interpretar o que a notícia de jornal fala, é diferente. E aí levaram ele. Ele ficou lá uns 20 e tantos dias, torturaram muito ele, muito, muito, no pau de arara, com fio elétrico no pênis, no corpo. Ele ficou muito machucado. E trouxeram ele para a rua Teodoro Sampaio, para ele ficar com os policiais para ver se passava algum amigo dele, porque eles achavam que ele era comunista, subversivo – usavam essa palavra. E ele ficava ali toda a manhã, de pé na esquina, sem comer, com as roupas rasgadas e descalço. Ele falava que não conhecia ninguém, que não fazia subversão. E ele tinha um problema de saúde, convulsão, uma disritmia cerebral. E a gente tentou levar a medicação dele e não conseguimos entrar lá dentro do DOI-Codi. Não tinha direitos humanos organizados. Nós conseguimos um advogado, não tínhamos dinheiro para pagar, mas ele falou que ia levar o remédio lá para ele. Mas esse advogado veio na nossa casa depois da 1h da manhã e falou: ‘Eu vou, mas só se você e sua irmã dormirem comigo essa noite’. E a gente não aceitou, ele ficou sem medicação. Mas aí, depois de uns 20 dias, soltaram ele na rua, sem dinheiro. Ele veio a pé, todo rasgado, todo machucado, se arrastando até a casa de um padre lá nosso amigo, numa travessa da Teodoro Sampaio, e lá eles o acolheram, deram uma roupa, chamaram um médico. E aí o tempo foi passando, mas ele ficou uma pessoa que não falava, né? Ele era muito alegre e se tornou uma pessoa com uma feição triste até hoje. Ele não é o mesmo, sabe? Ficou essa grande marca nele e em nós também. Nós fizemos muitas aulas de alfabetização escondido naquela época. Minha irmã era coordenadora e foi presa, deram uma chicotada nela lá e depois soltaram. Ela está viva, segue lutadora ainda aí. E eu não vou parar. As pessoas hoje acham que com revólver vão matar os que estão aí na vida errada, os bandidos, e não enxergam que esses meninos precisavam ter tido oportunidade e não ficar aí pra cima e pra baixo, como eles ficam, sem estímulo para estudar. Eu sempre trabalhei contra a violência, principalmente contra a violência da mulher, que vem de um monte de falta de conhecimento e do ambiente ruim. Eu não vou parar. Meu pai e a minha mãe me ensinaram a repartir o pouquinho que eu tenho. Eu sou uma profissional aposentada, enfermeira de nível técnico, mas eu tenho conhecimento, então esse conhecimento eu preciso passar. É com essas coisas que a gente constrói um mundo novo, não com arma. É só ódio, principalmente o que está aí na frente… A gente chegou na democracia com muita luta para voltar pra trás agora.”

Fotógrafo:

Colaborou: Carolina Zanatta

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