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Informações obtidas pela Pública com integrantes do grupo que debate minuta do projeto de mineração apontam Funai como futura representante de “interesses indígenas” na negociação

Reportagem
10 de setembro de 2019
14:27
Este artigo tem mais de 5 ano

Órgão governamental que “coordena e executa a política indigenista”, a Fundação Nacional do índio (Funai) está se afastando de suas atribuições legais para assumir um novo papel: o de mediadora nos empreendimentos de mineração em terras indígenas (TIs). A informação foi obtida pela Agência Pública com um dos integrantes do grupo técnico interministerial que discute a minuta do novo projeto de mineração e confirmada com mais duas fontes. O funcionário pediu para não ser identificado.

A legalização dos garimpos e das mineradoras é parte de uma ofensiva governista e legislativa, patrocinada pela bancada ruralista no Congresso, com a finalidade de abrir as TIs a empreendimentos privados através de mudança constitucional (PECs 187 e 343) que tramitam em ritmo acelerado. Ambas tratam de arrendamento para exploração de recursos agropecuários e hídricos, incluindo a possibilidade de construção de novas hidrelétricas em TIs.

A proposta original é do governo Michel Temer, inspirada num antigo projeto do ex-senador Romero Jucá (RR) que previa apenas a participação das empresas mineradoras. Ao desengavetar o projeto, o presidente Jair Bolsonaro colocou a regulamentação dos garimpos clandestinos como prioridade. Em agosto, ele disse à imprensa que encomendou um estudo para criar “pequenas Serras Peladas” Brasil afora.

Entidades indigenistas alertam, no entanto, que as posições públicas assumidas por Bolsonaro – o presidente também declarou que não vai demarcar mais terras indígenas e ainda rever a extensão de TIs já consolidadas, além de criticar os órgãos de fiscalização ambiental e a própria Funai – está funcionando como autorização a invasores e fomentando conflitos com mortes em regiões mais desprotegidas da Amazônia.

No último dia 6 de setembro, um colaborador da Funai que atuava na base da Frente Etnoambiental do Vale do Javari, Maxciel Pereira dos Santos, foi executado com dois tiros na nuca, à queima-roupa, ao parar sua moto num semáforo da principal avenida de Tabatinga. O condutor de outra moto encostou ao lado de Santos e o carona disparou à queima-roupa, ação presenciada pela mulher e uma criança, enteada da vítima.

O crime tem fortes características de motivação ligada ao trabalho de Santos. Conhecido entre os índios como Maxi, ele atuava há 12 anos nas bases de vigilância do Javari (Ituí, Quixito, Curuçá e Jandiatuba) na contenção de invasores e aguardava a publicação de sua nomeação como chefe da frente, cuja portaria se encontrava, no dia do assassinato, na Casa Civil do Palácio do Planalto aguardando o aval do ministro Onyx Lorenzoni e de Bolsonaro.

“Um amigo dos índios e grande profissional. Sua morte é um alerta sobre o clima de tensão nas áreas em que atuam os servidores mais desprotegidos”, disse à Agência Pública Wino Beto, indígena da etnia Marubo, coordenador da União Nacional dos Indigenista do Vale do Javari (Univaja) que emitiu nota sobre o assunto.

Segunda maior TI do Brasil, com 8,5 milhões de hectares, e área de maior concentração de povos desconhecidos do mundo, o Javari foi alvo de quatro ataques a tiro este ano contra as bases de Ituí e Curuçá, as mais visadas por invasores, e protegidas por índios treinados por sertanistas, já que a Funai não tem servidores no local.

“O governo Bolsonaro planta a ideia de que índio é estorvo ao desenvolvimento e espalha que a Funai é loteada e comprada por ONGs. É uma tentativa de matar a Funai de inanição, cortando recursos e desmontando estruturas, sobretudo as que protegem os povos isolados, em clara opção pelo esvaziamento”, afirma Beto.

Sem recursos e com seus cargos de direção preenchidos pela extrema direita ligada ao ruralismo, a Funai é o retrato da fragilidade na proteção aos índios. Seu novo papel na abertura das TIs para mineração está sendo definido nas discussões do grupo de trabalho interministerial formado pelos ministérios das Minas e Energia, Justiça, Meio Ambiente, Agricultura, Planejamento e Secretaria Geral da Presidência da República. O esboço do projeto será encaminhado ao Congresso provavelmente ainda em setembro pela Casa Civil do Palácio do Planalto.

O grupo tem 30 técnicos que se reúnem periodicamente no Palácio do Planalto desde o início de julho. A Funai só passou a participar desses encontros depois que o Congresso derrubou parte da MP 870, obrigando o governo a retirar a autarquia da estrutura do Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos e devolvê-la para o Ministério da Justiça, a quem a Funai é vinculada desde 1967, quando foi criada. O ministro Sérgio Moro, no entanto, não tem demonstrado qualquer interesse pela política indigenista desde que assumiu a pasta. Procurado pela reportagem da Pública, avisou através de sua assessoria de imprensa que não fala sobre o tema.

Um dos integrantes do grupo de trabalho, que pediu para não ter o nome divulgado, relatou à Pública os pontos mais importantes que devem fazer parte do projeto. Para driblar a legislação – baseada na convenção 169 da OIT – que obriga a consulta às comunidades indígenas, o projeto incluiria uma brecha para que, nos casos de recusa, o governo possa autorizar unilateralmente os empreendimentos sob a justificativa de interesses estratégicos nacionais. Os projetos, um por um, teriam de passar pelo crivo do Congresso.

As questões centrais em discussão passam pela definição da forma de exploração econômica e de captação dos royalties como compensação financeira às comunidades indígenas. É aí que se insere o papel da Funai, que manteria sua atribuição de tutora já prevista em lei, mas faria uma mediação mais intensa entre etnias e os empreendimentos, sempre segundo a mesma fonte.

O grupo deve sugerir a criação de um conselho para gerir os recursos indígenas através de um fundo e acompanhar a execução do empreendimento, retendo já no momento da extração de ouro ou diamante, por exemplo, uma porcentagem estimada entre 3% e 4% do volume bruto extraído. As comunidades criariam associações que fariam o elo com o conselho, que seria formado majoritariamente por indígenas, diz a fonte.

O conselho exerceria controle sobre a exploração, o que ajudaria a evitar o contrabando. As deficiências do governo em fiscalizar levaram Bolsonaro a insinuar em recentes declarações à imprensa que os 720 quilos de ouro roubados no terminal de cargas de Cumbica, no final de julho, tenham origem na exploração ilegal em terras indígenas.

Um dos grandes desafios apontados nos debates é o controle dos garimpos cuja marca é a clandestinidade, frequentemente acompanhada de crimes ambientais e conflitos com os moradores dos territórios que invadem, como acontece em grande escala na Terra Yanomami neste momento. Estuda-se estender a exigência do licenciamento para todos os tipos de mineração e aplicar uma norma, que pode ser uma espécie de caução financeira, a ser usada em casos de abandono de empreendimento para corrigir eventuais passivos ambientais. O grupo estuda taxar os empreendimentos também pelo uso do solo, mas sem converter para os índios os recursos arrecadados.

Segundo o integrante do grupo, é consenso entre eles que, em concessões para grandes projetos, como no caso do provável empreendimento da canadense Belo Sun, na Volta Grande do Xingu (PA), das etnias Arara e Juruna, citado nas discussões, (em área já tomada por garimpos) – caberia às mineradoras expulsar os garimpeiros e evitar novas invasões, já que o governo não teria estrutura de fiscalização para isso. A Belo Sun quer fazer no Xingu, próximo a usina Belo Monte, investimentos da ordem de R$ 1,22 bilhão para retirar, em 12 anos, 60 toneladas de ouro.

Davi Kopenawa e seu filho Dário Kopenawa, do povo Yanomami, e Maurício Tomé Rocha, do povo Ye’kwana, dedicam suas vidas à defesa de seu território: a Terra Indígena Yanomami

Sem interferência de Moro

Paralelamente às discussões sobre o projeto, o governo trocou toda a cúpula da Funai em junho, quando exonerou o general Frankilimberg Freitas, que já havia sido presidente da Funai no governo Temer. Nas duas vezes o general, que entre os dois governos integrou o conselho da Belo Sun, foi derrubado por desagradar ruralistas que o haviam indicado para o cargo.

Dessa vez o general caiu atirando. Disse que Bolsonaro estava muito mal assessorado e que o secretário dos Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia, “salivava de ódio” quando falava sobre indígenas. Presidente licenciado da União Democrática Ruralista (UDR), Garcia discutiu a exoneração de Frankilimberg diretamente com Bolsonaro, que não ouviu o general e nem Moro, a quem caberia a decisão. Procurado através de sua assessoria de imprensa, Nabhan Garcia não retornou.

O novo indicado da bancada ruralista para presidir a Funai, o delegado federal Marcelo Augusto Xavier ocupava o cargo de ouvidor da Funai na gestão de Franklimberg. Em 2016 ele atuou como investigador na CPI da Funai, criada pela união de forças de ruralistas e evangélicos, na prática uma investida contra antropólogos, indígenas, servidores da própria autarquia e dirigentes de ONGs nacionais e internacionais, que atuam em defesa dos direitos dos indígenas.

Conforme levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), uma fila com 4.181 requerimentos de exploração mineral em terras indígenas aguarda decisão da Agência Nacional Mineral (ANM), metade deles pedindo autorização para extrair ouro. Juntos, as áreas reivindicadas totalizam 28 milhões de hectares, o equivalente a 25% da superfície e áreas consolidadas como TI.

Mineradoras e campanhas eleitorais

Mesmo sem participar das discussões que envolvem o destino de suas terras e de seus povos, os indígenas acompanham de perto os movimentos do governo. “Os interessados [no projeto de mineração] são grandes mineradoras que bancaram campanhas eleitorais. É papel da Polícia Federal, assim como fez na Operação Lava Jato, investigar o que há por trás disso tudo”, diz a deputada Joenia Wapichana (REDE-RR), presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas. “A intenção é abrir grandes garimpos. Não é pobre com bateia, não”, alerta. No primeiro encontro promovido pela frente parlamentar, em meados de agosto, em Brasília, entidades indigenistas pediram o afastamento de Bolsonaro do cargo. “Fora xauara!”, gritou a deputada Joenia, usando uma expressão Yoanomami, que significa mente doente. O evento reuniu dirigentes das principais ONGs defensoras das causa indígena-ambiental e marcou o início de uma jornada de manifestações contra o projeto de mineração governamental cujo tambor principal será a Esplanada dos Ministérios, em Brasília.

A deputada federal Joenia Wapichana (REDE-RR), é presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas

“O discurso do presidente dá força aos fazendeiros e sofrimento aos índios. É como um decreto de extermínio. Não queremos mineração. A terra é nossa mãe: ninguém dá, vende ou entrega. A terra tem dono”, disse Wiliam Rodrigues, líder da etnia Mura, do Amazonas, no mesmo evento. “Nos ajudem! Se não tiver autoridade para fazer cumprir a lei, vamos reagir. Chega de invasões e ameaças”, alertou. “Se nossa situação está assim, imagine os isolados, que nem sabem o que é lei”.

De acordo com Cleber Buzatto, secretário executivo do Cimi (Conselho Indígena Missionário, em entrevista à Pública, há uma nova “corrida do ouro” em direção às TIs, estimulada pelo governo, provocando “um aumento de cerca de 40% no número de invasões na comparação com o mesmo período do ano passado”. O maior foco de invasão é na área dos Yanomami, em Roraima, onde o número de garimpeiros subiu de quatro para 15 mil desde que o presidente declarou que regularizaria a atividade. A sete quilômetros do garimpo, segundo sertanistas da Funai, vive um dos grupos de índios isolados, os Moxihateëma. “Bolsonaro está criando forças antagônicas dentro da Funai com o objetivo de esvaziar a estrutura de proteção para atender o agronegócio e as mineradoras”, sustenta Buzatto.

Os antropólogos da Funai consideram que há referência apontando a existência de 114 grupos de índios isolados, distribuídos por Rondônia, Amazonas, Mato Grosso, Acre e Pará, mas apenas 28 já foram reconhecidos pelo governo. São povos que recusam o contato, inclusive com sertanistas, e estão entre os grupos cada vez mais ameaçados pelas invasões.

Para o indigenista Pedro de Souza, que trabalha para o CIMI entre os povos que vivem às margens da BR 319, ligação entre Manaus e Porto Velho, há anos abandonada, a presença cada vez mais constante de garimpeiros e madeireiros ilegais está acuando e expondo os índios isolados. Ele conta que, há cerca de 45 dias, os invasores abriram um ramal vicinal de 28 quilômetros ligando a BR 319 à reserva Apurinã do Iguapé Taumirim, em Lábrea (AM) e lotearam a área para mineração e extração de madeira. Localizada no sul da Amazônia, com taxas inéditas de focos de fogo neste ano, Lábrea está entre os municípios mais atingidos pelo desmatamento.

“As áreas livres estão sendo reduzidas. Os isolados acabam se aproximando dos invasores, que agem com senso de impunidade”, afirma Souza.

Na avaliação do Cimi, caso os outros poderes não adotem medidas urgentes, os conflitos entre índios e garimpeiros podem chegar a níveis extremos. No final de agosto, em meio a repercussão das queimadas na Amazônia, um grupo de nove ex-ministros do meio ambiente apelou ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) que bloqueie os projetos legislativos que abrem as terras indígenas à mineração.

A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.

Crédito da imagem destacada: Instituto Socioambiental (ISA)

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