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Marcelo Roque registrou em redes sociais ampla distribuição do medicamento – sem eficácia comprovada contra Covid-19 – até mesmo em estádio e em uma loja da Havan; tribunais de contas questionam compra de R$ 3 milhões sem licitação

Reportagem
13 de outubro de 2020
12:11
Este artigo tem mais de 4 ano

Um homem de cabelo ruivo penteado para o lado, vestindo uma máscara cirúrgica, olha fixamente para a câmera. Enquanto fala com seus espectadores, entram e saem imagens dele próprio perto de um caminhão cheio de caixas. O homem carrega algumas por um caminho já lotado delas e, de repente, as caixas estão abertas. Em seu interior, há outras várias caixinhas menores, vermelhas. Ele pega duas, a câmera corta.

“Deixo bem claro que não é uma vacina. A ivermectina bloqueia o vírus e impede que a pessoa tenha sintomas mais agudos, evitando enfermarias, evitando assim as pessoas se agravarem para um leito de UTI”, diz. “Queremos centralizar a equipe aqui para distribuir mais rapidamente para a população.”

“Aqui” é a Arena Albertina Salmon, ginásio localizado na cidade portuária de Paranaguá, no Paraná. O homem é o prefeito Marcelo Roque (Podemos-PR), que no vídeo, postado em 16 de julho, anuncia a “distribuição em massa” à população de caixinhas vermelhas com comprimidos de ivermectina. O motivo ele explicou bem: com o remédio – utilizado para matar vermes e parasitas em animais e humanos –, ele espera tratar precocemente e até prevenir a Covid-19, que até dia 8 de outubro, segundo o Ministério da Saúde, já havia atingido mais de 4,2 mil moradores da cidade e matado outros 89. 

Nos comentários do post há muitos votos de parabéns ao prefeito pela iniciativa, desejos de que “Deus o abençoe” e até gente pedindo para que “os agentes de saúde distribuam de porta em porta”. A reação positiva de pelo menos parte da população é importante para Roque, que aos 46 anos está em plena campanha à reeleição.

Mas, ao contrário do que afirma o prefeito, a ivermectina não tem eficácia comprovada contra a Covid-19. Aliás, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a ciência até o momento não descobriu nenhum medicamento capaz de combater a doença – a entidade tem coordenado projetos de pesquisa sobre o assunto, mas por enquanto não se chegou a nenhuma conclusão. Até mesmo uma das principais fabricantes mundiais de ivermectina contraindica seu uso para combater a Covid. 

“Isso é uma tolice”, explica a médica pneumologista Margareth Dalcomo,
pesquisadora e professora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). De acordo com ela, há uma razão muito clara para não se usar em pacientes com coronavírus a dosagem de ivermectina hoje à venda, indicada para o combate de sarna, piolho e lombriga, entre outros. “A ivermectina testada in vitro, em uma dose 13 vezes superior à concentração em vigência nos comprimidos vendidos comercialmente, mostrou uma modesta ação na replicação viral”, explica. “A utilização de comprimidos de ivermectina na dosagem usada para verminose é absolutamente inócua, não tem o menor sentido. Para que tivesse uma tentativa de sentido, precisaria de uma dose 13 vezes superior a essa”, o que não é recomendado, diz Dalcolmo.

Depois da Arena Albertina Salmon, que aparece na foto, prefeito Marcelo Roque criou outros pontos de distribuição de ivermectina pela cidade

Ginásio e até loja da Havan viraram pontos de distribuição de ivermectina

A distribuição de ivermectina no ginásio Albertina Salmon teve início em 17 de julho, oito dias depois de Roque anunciar em suas redes sociais que a medicação seria comprada pela prefeitura. Na postagem, ele afirmou que o objetivo era “imunizar a população paranaguara”, e revelou a possível fonte de inspiração para a medida: a cidade catarinense de Itajaí. “Em conversa com o prefeito de Itajaí, dr. Volnei Morastoni, recebemos informações importantíssimas acerca da sua experiência na aquisição e distribuição do medicamento para população”, escreveu. 

A prefeitura de Itajaí havia começado a distribuir a ivermectina para tratar Covid-19 em 7 de julho, apenas quatro dias antes do post de Roque. No mês seguinte, o prefeito Volnei Morastoni (MDB-SC), médico, ganharia a atenção da imprensa ao sugerir que seria uma boa ideia usar ozonioterapia retal para tratar pacientes com Covid-19 – outro tratamento sem eficácia comprovada contra a doença.

Marcelo Roque documentou minuciosamente em suas redes sociais cada etapa da ação, que funcionou como marketing para o prefeito. Além do vídeo mostrando a chegada dos lotes do medicamento ao ginásio, em diversas ocasiões ele gravou lives diretamente do local, transmitidas ao vivo nas redes sociais, nas quais dava informações sobre o atendimento e convocava as pessoas a irem até lá. “Você que está assistindo, que venha retirar o seu medicamento agora. Aproveite que o sábado está tranquilo, a arena está bem tranquila”, disse em transmissão no dia 15 de agosto, durante o último fim de semana de dispensação de ivermectina no local. “A ivermectina não é uma cura, mas ela faz o bloqueio dos sintomas, evitando que você vá até hospital, evitando até que você vá para o tubo”, reforçou. 

Depois do ginásio, outros pontos de distribuição foram criados pela cidade, um deles na única loja da Havan de Paranaguá. Até as escolas municipais serviram de posto para retirada do medicamento. O prefeito também levou ivermectina pessoalmente às ilhas que pertencem ao território do município, como a Ilha do Mel, um dos principais pontos turísticos do Paraná. Todas as ações estão registradas em vídeos e mais vídeos publicados em seu Facebook. 

Moradores de Paranaguá retiram ivermectina na farmácia da Arena Albertina Salmon

Compra em xeque nos tribunais de contas

Marcelo Roque não é criticado apenas pela aposta em um medicamento sem efetividade comprovada cientificamente. A prefeitura é alvo de uma investigação do Ministério Público do Paraná (MPPR) e de processos nos Tribunais de Contas da União (TCU) e do Estado (TCE) que questionam os critérios da compra de ivermectina. Isso porque foram gastos R$2,9 milhões na aquisição de 1,4 milhão de comprimidos, sendo que a população da cidade é 156 mil habitantes – o que dá cerca de 9 comprimidos para cada morador. O investimento milionário inclui repasses federais, por isso o TCU foi acionado.

Além disso, suspeitas recaem sobre os valores envolvidos na operação. A compra foi feita de um único fornecedor, a empresa Vitamedic, a mesma que vendeu a droga para a prefeitura de Itajaí. Porém, enquanto Itajaí pagou R$1,48 por dose, conforme indica o Portal da Transparência da cidade, Paranaguá desembolsou R$2,12 pelo mesmo comprimido, 43% a mais. 

Em decisão de 19 de agosto, a ministra Ana Arraes, do TCU, cita também que “a média de preços em outros municípios foi de R$ 0,337” por comprimido no mesmo período, e que, no Painel de Preços do governo federal, entre junho e julho, o mesmo produto foi adquirido em média por R$ 1,15. À Agência Pública, a promotora Camila Adami Martins afirmou que o sobrepreço é um dos pontos apurados pelo MP – a investigação já está em fase final.

O tribunal estadual contesta ainda um terceiro aspecto da compra: a dispensa de licitação, prevista pelo governo federal para dar mais agilidades às ações de combate à pandemia enquanto durar o estado de calamidade pública. O tribunal considerou que não houve motivação para a dispensa e chegou a recomendar que a prefeitura interrompesse imediatamente a distribuição de ivermectina em 30 de julho, mas um desembargador da Justiça estadual anulou a medida.

Dados do Ministério da Saúde de 8 de outubro mostram que Paranaguá tem 57 mortes por Covid-19 a cada 100 mil habitantes, taxa menor que a de Curitiba (68 por 100 mil) e do Brasil (70 por 100 mil), mas maior que a do Paraná (41 por 100 mil)

“O governo federal publicou uma normativa que dá autonomia aos municípios dinheiro público para uso exclusivo do combate à Covid. Nesses casos, as compras podem ser feitas sem processo de licitação. A ivermectina, ao nosso ver, não se enquadra nisso”, explica Luciano Costa, diretor executivo da sede de Paranaguá do Observatório Social, ONG que acompanha a aplicação e transparência dos gastos públicos em diversas cidades do país. “Ela foi anunciada como um medicamento que ajudaria no combate à Covid-19, uma maneira de se prevenir. Mas não existe comprovação científica sobre isso”, completa Costa, que junto a outros técnicos da organização elaborou um ofício denunciando a situação na cidade, enviado ao TCE em 18 de julho.

O fato do prefeito municipal propagar uma notícia como verdade, sem nenhum embasamento técnico e comprovação, pode acarretar em diversos prejuízos para a cidade, pois a população poderá acreditar que tomando o remédio estará imune à doença e as medidas de proteção poderão ser diminuídas ou deixadas de lado”, diz o documento.

Em nota pública de 20 de agosto, a Prefeitura de Paranaguá informou, sobre o processo do TCU, que o preço máximo da aquisição de ivermectina foi definido após “ampla pesquisa de mercado, na qual sete distribuidores de medicamentos apresentaram seus preços”, e que mais de quinze “empresas do ramo foram convidadas a cotar seus preços, porém, não atenderam ao chamado por não terem a ivermectina disponível em seus estoques em virtude da grande procura no mercado”.

A prefeitura não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem sobre os processos relacionados à compra do medicamento ou sobre os estudos utilizados por Roque para embasar a sua utilização contra a Covid-19. A Pública também solicitou entrevista com o prefeito Marcelo Roque e com a secretária municipal de saúde Lígia Regina de Campos Cordeiro, mas os pedidos não foram atendidos.

Cinco anos e 15kg

Em grande parte das aparições nas redes sociais, o prefeito faz questão de destacar que as caixinhas vermelhas só são entregues depois que os pacientes passam por triagem e avaliação médica. A prefeitura informou à Pública que seu protocolo de uso da ivermectina contra a Covid-19 tem “intenção profilática” – ou seja, de prevenção à doença –, e é aplicado em pessoas a partir dos cinco anos de idade e com mais de 15kg. A dosagem depende do peso: o recomendado é um comprimido a cada 30kg.

O aposentado Mauro da Silveira, que trabalha como entregador de uma rede de perfumarias, passou pela experiência. No início de agosto, ouviu no rádio uma propaganda sobre a distribuição do medicamento e pensou que seria uma boa forma de se proteger do coronavírus, mesmo não apresentando sintomas. “Tenho 70 anos, estou na idade de risco, então achei por bem pegar”, conta. 

Mauro foi então a um dos pontos de distribuição e, após triagem, cadastro e uma rápida consulta médica, saiu de lá com comprimidos suficientes para três doses – a primeira tomou naquele mesmo dia; a segunda, depois de duas semanas; e, passado o mesmo intervalo de tempo, veio a terceira, conforme indicado pela prefeitura. “Me deram os remédios numa sacolinha com as instruções todas”, lembra.  Seu maior medo era pela esposa de 63 anos, diabética e hipertensa. “Ela está na zona de risco, me preocupo com isso”, diz. Então Seu Mauro buscou de novo o medicamento, dessa vez para a companheira – os dois foram juntos no Albertina Salmon. “Ela gostou porque não demorou muito. Em 10, 15 minutos a gente já estava saindo”, afirma.

Embora parte da população de Paranaguá tenha aderido à ivermectina como prevenção ao coronavírus – segundo a prefeitura, até 5 de outubro mais de 73 mil pessoas já haviam passado pelos postos de atendimento e quase 1,2 milhão de comprimidos haviam sido dispensados – a médica e pesquisadora Margareth Dalcomo considera “absurda a distribuição desses medicamentos feita politicamente em um momento de eleição”. “O uso é demagógico e político”, frisa. 

Kits de ivermectina separados de acordo com o peso dos pacientes
Infografista: ,

Colaboraram Giulia Afiune e Raphaela Ribeiro

Reprodução/Facebook
Reprodução/Facebook
Bruno Fonseca/Agência Pública
Reprodução/Facebook

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