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Guarani-Kaiowá recuperam território enquanto ruralistas comemoram indenização milionária

26 de setembro de 2024
17:20

Na última quarta-feira (25), uma audiência de conciliação realizada no Supremo Tribunal Federal (STF) marcou um passo importante na tentativa de resolver o prolongado conflito territorial envolvendo a Terra Indígena Ñanderu Marangatu, localizada no município de Antônio João, no Mato Grosso do Sul (MS).

O conflito, que se arrasta há quase 30 anos em processos judiciais, envolve a disputa pela posse de 9 mil hectares de terras entre a comunidade indígena Guarani-Kaiowá e fazendeiros locais.

Foram cerca de 7h de negociação para chegarem a um acordo que prevê R$146 milhões em indenizações aos fazendeiros, entre outros pontos como:

  • Pagamento pelas benfeitorias: os proprietários de terras que fizeram melhorias nas propriedades, como construções, plantações etc. terão direito a ser pagos por essas benfeitorias, que foram avaliadas em aproximadamente R$28 milhões pela FUNAI e o governo deve pagar isso imediatamente.
  • Saída dos fazendeiros: Depois que o governo fizer o pagamento desses R$28 milhões, os fazendeiros terão 15 dias para desocupar a área.
  • Terra nua: Existe uma discussão sobre o pagamento por “terra nua”, que significa o terreno sem benfeitorias (sem construções, plantações etc.). Apesar dessa divergência, o governo se comprometeu a pagar R$102 milhões para os proprietários, mas via precatório — pagamento de dívidas do governo que pode demorar mais tempo.
  • Ressarcimento do Estado: o governo federal ainda deixou claro que pode tentar recuperar esse dinheiro depois, pedindo que o Estado de Mato Grosso do Sul pague ou reembolse essa quantia. O Estado do Mato Grosso do Sul, embora discorde do direito de regresso da União e, também, da obrigação de indenizar a terra nua, concordou em antecipar o pagamento de R$16 milhões por meio de depósito judicial, que será deduzido do valor final que ainda será negociado entre os entes federativos. Esse montante não inclui as compensações pelas benfeitorias feitas nas propriedades. 

Extinção de todos os processos 

O acordo também prevê a extinção de todos os processos em tramitação nas instâncias do Poder Judiciário — abarcando eventuais recursos e petições em outras instâncias envolvendo os mesmos processos — que discutam posse e domínio das áreas abrangidas pela terra indígena Ñanderu Marangatu. 

“A vitória se mistura com a dor, com a tristeza. Até o momento eu ainda não chorei, eu não consegui. Parece que tem um nó na garganta. Passamos por muitas lutas, enfrentamos fome, sede, e ainda estamos nessa batalha. Ocupar nosso território custou sangue, vidas foram perdidas nessa luta. Agora a comunidade indígena Ñande Ru Marangatu pode pensar na paz”, disse a Kaiowá Inaiê Lopes dos Santos, que participou da audiência.  

“Vamos continuar lutando, agora por políticas públicas dentro do nosso território, para oferecer um atendimento melhor à nossa comunidade. Queremos que nossos jovens tenham a oportunidade de explorar seu território tradicional e viver em paz, morar em paz, sem medo de conflitos, sem o temor de que alguém venha queimar suas casas, como vivemos amedrontados durante todos esses anos”, afirmou Inaiê, que é membra da Aty Guasu e vereadora (PSDB) em Antônio João. 

O assessor jurídico da Aty Guasu, Anderson Santos, afirmou que irá se manifestar somente após a publicação da sentença de homologação onde contemplará todos os aspectos que fundamentam a resolução do caso.

A audiência foi presidida pelos juízes auxiliares Diego Viegas Véras e Lucas Faber de Almeida Rosa, do gabinete do Ministro Gilmar Mendes, relator do processo. Também estiveram presentes representantes da Procuradoria-Geral da República, Advocacia-Geral da União, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Ministério dos Povos Indígenas, Ministério da Justiça, além de representantes do Estado do Mato Grosso do Sul, proprietários rurais e lideranças da comunidade indígena Guarani-Kaiowá.

Ruralistas beneficiados

Entre os maiores beneficiários do montante da indenização estão Pio Silva e Roseli Ruiz, com um total de aproximadamente R$12 milhões. O casal receberá cerca de R$4,73 milhões pela Fazenda Barra, R$3,61 milhões pela Fazenda Cedro e R$4,98 milhões pela Fazenda Fronteira – todas estão dentro da área indígena delimitada. 

Pio e Roseli são pais da advogada ruralista Luana Ruiz, que é quem representa o caso do casal na Justiça. Ela também é assessora especial da Casa Civil do governo do estado e tem histórico de militância contra a demarcação de terras indígenas. Luana foi candidata à Câmara Federal nas eleições de 2022 pelo Partido Liberal (PL) e já atuou como secretária adjunta no Ministério da Agricultura durante o governo de Jair Bolsonaro.

No acordo firmado, outros fazendeiros foram beneficiados com indenizações. Altamir João Dalla Corte e Nair Dalla Corte, proprietários da Fazenda Morro Alto, receberão aproximadamente R$1,19 milhão. Carlinda Barbosa Arantes, dona da Fazenda Primavera, será indenizada em cerca de R$6,71 milhões, enquanto o espólio de Jamil Saldanha Derzi, da Fazenda Piquiri Santa Cleusa, terá direito a cerca de R$1,38 milhão. 

Além deles, o espólio de Nery Alves de Azambuja, da Fazenda Itá Brasília, receberá em torno de R$330 mil. Já José Pilecco, da Fazenda Piquiri Santa Vitória, será compensado com aproximadamente R$380 mil. Regina F. Alves Correia Iglesias, proprietária da Fazenda Pérola do Vale, receberá cerca de R$2,48 milhões, enquanto Rosário Congro Flores, da Chácara do Campestre, terá direito a R$58 mil, e Waldemar Souza Barbosa, da Fazenda Ita, será indenizado em cerca de R$1,19 milhão.

“Vitória de gosto amargo”

Movimentos indígenas e indigenistas veem o acordo como uma “vitória de gosto amargo”, pois temem que o pagamento pela terra nua possa estabelecer um precedente para outros processos. 

“Temos recebido críticas. Estão dizendo que não deveria ter sido assim. Que os fazendeiros não deveriam sair milionários de lá [da audiência], que a gente vendeu o nosso território. Porém, não é isso. As pessoas não vivem dentro do território, não sabem da dor e tristeza que enfrentamos. Se alguém errou foi o Estado, quando entregou nosso território aos colonos”, desabafou Inaiê. 

“É uma vitória com gosto amargo. Mas a gente tem que dar dois passos para trás, para dar quatro para frente. Se a União e o Estado se comprometeram a dar paz à comunidade, que eles se resolvam. É importante a comunidade ter seu território de volta e reconhecido com terra ancestral”, concluí a Guarani-Kaiowá. 

Juliana Batista, advogada e membro da Comissão Arns, afirma que o pagamento da terra nua é, de fato, uma novidade. A advogada explica que, originalmente, a Constituição fala em pagamento apenas das benfeitorias de boa-fé. Contudo, no ano passado, o STF fixou critérios para o pagamento da terra nua, como: ter título legítimo de posse ou de propriedade expedido pelo poder público, inexistir comprovação de que a comunidade estava na área na data da promulgação da Constituição ou que foi expulsa de modo forçado da região. 

“Há quem concorde e quem discorde da decisão judicial, mas, como o caso é dotado de efeito vinculante, ele passa a ser de observância obrigatória por todas as instâncias do Poder Público”, afirma a advogada.

Batista acredita que o acordo foi um passo importante, porque a terra estará na posse exclusiva dos indígenas, com alto potencial de resolução dos conflitos violentos que ocorrem na região. 

“Entendo que existam críticas, mas também acredito que são necessárias medidas que permitam aos indígenas viverem em segurança. São medidas que privilegiam o direito à vida e à segurança pessoal. Nada mais importante para que os grupos étnicos brasileiros persistam enquanto coletividades diferenciadas do restante da sociedade hegemônica. Não há indígenas sem terra, em todas as acepções que esta frase pode ter”, afirmou Batista

Respeito à cultura

Na audiência, foi decidido que 300 membros da comunidade Guarani-Kaiowá poderão acessar a Fazenda Barra no dia 28 de setembro, das 6h às 17h, para realizar um ritual cultural em homenagem ao jovem Kaiowá Neri da Silva, assassinado pela Polícia Militar do MS. A cerimônia, que incluirá a colocação de uma cruz no local do crime, contará com o apoio da Funai e da Força Nacional, apesar da oposição da advogada Luana Ruiz. 

Embora os indígenas tenham solicitado a retirada da PM do território, ficou definido que, até a saída da família Ruiz do imóvel, a Polícia Militar do Mato Grosso do Sul ficará responsável pela vigilância da Fazenda Barra e da estrada que garante a saída e entrada do local.

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