Foto: Thomaz Silva/Agência Brasil
Apesar de se tratar do principal meio de transporte do Rio de Janeiro, quando o assunto é planejamento e gestão do sistema de ônibus, a prefeitura fica à mercê dos empresários. Essa é a conclusão da auditoria feita pela PricewaterhouseCoopers (PwC) entre 2014 e 2016 para a gestão do ex-prefeito Eduardo Paes (PMDB).
Pela primeira vez, a Pública disponibiliza os materiais da auditoria, obtidos com exclusividade pela reportagem. Em meados deste ano, a Secretaria Municipal de Transportes (SMTR) da gestão de Marcelo Crivella (PRB) se negou a trazer o estudo a público. Baixe aqui os principais documentos.
A perícia demonstra por que são os empresários que dão as cartas no transporte carioca. Por meio dos consórcios ou sindicatos patronais, como a Rio Ônibus, eles “propõem a maior parte das alterações em linhas e frota”. Por sua vez, a secretaria “tem dificuldade para avaliar solicitações dos consórcios e mais ainda para propor alterações”. O documento, datado de 24 de junho de 2014, vai além: “No reajuste das tarifas e análise de resultado dos consórcios, não existe pessoal com formação em contabilidade/economia para conseguir fazer análises e discussões mais robustas em respostas às solicitações do consórcio”, constata a equipe da PwC.
Além disso, no Rio são os próprios operadores do ônibus que fazem a administração do dinheiro que circula no sistema, algo fora do padrão de outras grandes cidades analisadas, como São Paulo, Bogotá e Londres. O carioca sente o resultado no bolso, já que o valor da passagem é definido com base em “custos que não são controlados e acabam por elevar a tarifa”, segundo auditores.
No início de setembro de 2017, a tarifa caiu vinte centavos por causa de uma decisão da Justiça, que considerou ilegal o aumento dado três anos antes, na gestão de Eduardo Paes, com justificativa de instalar ar-condicionado na frota. Já naquela época, em 2014, a prefeitura tinha em mãos uma série de medidas propostas pela Price que poderiam forçar a passagem para baixo, compensando custos da climatização – como a otimização da operação e da malha dos ônibus e a cooperação entre as empresas na negociação com fornecedores.
Realizada como desdobramento das manifestações de 2013, a auditoria demonstra em detalhes a razão da insatisfação das ruas com o alto preço da passagem, a péssima qualidade do serviço e o poderio dos empresários. O estudo conclui que os principais problemas se reduzem a três grandes causas: delegação de poder excessiva às empresas, estímulos que favorecem a “maximização da receita em prejuízo da eficiência” e, por fim, o fato de toda concessão atual ter sido construída sobre um “legado” anterior.
O diagnóstico foi produzido entre 2014 e 2016, a partir de entrevistas com a equipe da prefeitura, funcionários das empresas, trabalho de campo, análises dos resultados financeiros das empresas, dados de localização dos ônibus (GPS), entre outros. A auditoria possui milhares de páginas e traz um retrato detalhado do transporte rodoviário carioca.
Prefeitura se nega a fornecer dados
Sob comando do vice-prefeito e especialista em transporte Fernando MacDowell, a atual gestão da secretaria foi procurada pela Pública e questionada sobre as principais mudanças realizadas em termos de planejamento, fiscalização e gestão dos ônibus. Perguntamos também se as medidas sugeridas pela auditoria serão incorporadas.
A assessoria limitou-se a responder de forma genérica sobre a fiscalização. Em nota, informou que “realiza monitoramento eletrônico com base no GPS; fiscalização em garagens; fiscalização nos terminais; operações ao longo de corredores BRS; gestão contratual dos consórcios”.
Com base na Lei de Acesso à Informação, a Pública havia solicitado à prefeitura o conteúdo da auditoria em fevereiro. Cinco meses após o prazo legal, o acesso aos relatórios foi negado, pois a secretaria o considerou sigiloso. A decisão foi contestada no dia 11 de agosto. O prazo legal para resposta da secretaria já expirou, mas o órgão ainda não se manifestou.
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Empresas declaram lucro menor do que o esperado
Nem mesmo essa auditoria, que custou pelo menos R$ 10.429.125,00 para os cofres municipais, conseguiu acesso completo aos números do sistema de ônibus. Não foram identificados, por exemplo, os ganhos com investimentos financeiros da RioCard usando recursos da tarifa, nem o lucro obtido com outras atividades adicionais, como venda de publicidade. Ainda assim, a partir de números informados por boa parte das empresas, os peritos conseguiram analisar detalhadamente sua saúde financeira – ou a falta dela.
Quanto ao lucro dos empresários, representado na Taxa Interna de Retorno (TIR), a perícia relata que os números verificados ficaram abaixo dos valores projetados na proposta comercial dos consórcios. Ou seja, de acordo com os dados oficiais, eles teriam lucrado menos do que o esperado. Porém, é importante notar que os cálculos iniciais foram bastante vagos, uma vez que o edital nem sequer trazia o projeto básico do BRT (Bus Rapid Transport, ônibus com faixa dedicada). Além disso, como a Pública noticiou recentemente, também há suspeitas de lucros não declarados oficialmente por meio de itens que constam como despesa, como os gastos em aluguel do terreno usado para garagens – o esquema foi detectado em uma empresa de Jacob Barata na CPI dos ônibus de Niterói.
Segundo Vitor Mihessen, economista e coordenador da Casa Fluminense, esses números devem ser vistos com cautela. “O fato de essa taxa ser definida pelo próprio empresário a torna um pouco questionável. Se eles podem definir sua margem de lucro, para a tarifa ser menor, eles poderiam ter escolhido uma taxa de retorno mais baixa na proposta inicial. Mas o empresário não vai fazer isso nunca”, analisa.
Dívidas contraídas e investimentos feitos nos anos iniciais são apontados como possíveis justificativas para o lucro menor que o esperado. Em muitas empresas, as dívidas chegam a representar 80% de seus bens, de acordo com os dados obtidos pela PwC na época. A viação Santa Maria era a líder, com 93% nesse índice. A empresa faliu este ano. Outras, como a Litoral Rio, chegaram a dedicar aos juros das dívidas mais de 10% de sua receita líquida.
O custo total de operação em 2012 foi de R$ 1,8 bilhão, e combustível e motoristas representam quase 60% desse gasto. Naquele ano, no final das contas, o caixa ficou negativo em R$ 25 milhões. Mas os auditores sublinham que os níveis de investimento pareciam “acima da média esperada para o longo prazo”.
Individualmente, as empresas possuem performances diferentes. Com dados financeiros de 41 viações, a auditoria identificou que apenas cinco delas (Jabour, Pégaso, Real, Redentor e Futuro) concentraram quase um terço da receita do sistema em 2013. Líder, a Jabour pertence à família Barata. O vice é o português Orlando Pedroso, representante do Consórcio Santa Cruz, que controla a Pégaso junto com outros sócios.
Jacob Barata Filho é investigado na Operação Lava Jato por envolvimento no esquema de corrupção durante o governo de Sérgio Cabral (PMDB). O empresário chegou a ser preso, mas foi solto após polêmica decisão do ministro Gilmar Mendes, no Supremo Tribunal Federal. Em agosto, publicamos um levantamento de todos os proprietários das empresas de ônibus, que podem ser acessados navegando pelo mapeamento feito pela Pública.
“Transporte é um serviço público operado por empresas privadas, então temos de ter transparência sobre as empresas também. Quando aparecem estes resultados, nós vemos que algumas não possuem uma saúde financeira razoável. A tarifa na ponta fica à mercê dessa gestão. A saúde das empresas é imprescindível para o usuário final”, comenta Mihessen.
Os peritos da PWC também consideraram ilegal a cobrança de taxa de 3,2% para recarga dos bilhetes eletrônicos, que era aplicada em alguns postos de empresas parceiras, como a Ponto Certo. Responsável pelo sistema, a RioCard informa que os pontos credenciados não estão mais autorizados a aplicar essa taxa.
Em 2014, os auditores estimaram que, apenas com a recarga, as receitas da Ponto Certo eram de quatro a cinco vezes maior que seus custos. De acordo com a auditoria, além de ser gratuito em outras grandes cidades, o serviço é obrigatório nos consórcios cariocas, que já são remunerados através da tarifa.
Caos no trânsito
Os auditores da PwC encontraram um sistema complexo, com 541 linhas e 8.819 ônibus, mas também altamente ineficiente. A gestão é descrita como “concentrada na solução dos problemas emergenciais” sem atuação proativa e “voltada para o planejamento das ações”.
Desde a auditoria até agora, o sistema de ônibus do Rio já passou por uma reorganização das linhas e de seus trajetos, principalmente na zona sul, na chamada “racionalização” da gestão de Eduardo Paes. O atual secretário de Transportes, Fernando MacDowell, desaprovou as mudanças e anunciou que faria novas mudanças na malha. Mas, após uma série de adiamentos, a Secretaria de Transportes já não dá mais prazos para elas acontecerem. Apenas afirma que está “revisando o processo” e fazendo um estudo “minucioso” de pesquisas de campo e registros do 1746 e demandas recebidas pela Ouvidoria.
A falta de planejamento da prefeitura fez com que, em 2014, fossem encontradas 278 linhas – ou 54% do total – com mais da metade de seu trajeto sobreposto. E os deslocamentos mais rápidos são os que utilizam um único ônibus, sem baldeação. Isso se traduz em “gargalos de trânsito”, com grande quantidade de ônibus que se aglomeram nas avenidas principais da cidade, segundo o estudo.
A falta de um planejamento eficiente faz com que muitas linhas não sejam financeiramente sustentáveis. Pela análise da Price, em 2013, 38% delas “parecem não ser rentáveis considerando-se o nível de utilização atual”. Outro dado mostra que o ônibus era o principal meio de transporte da cidade, concentrando oito em cada dez passageiros.
A distribuição das pessoas nos ônibus encontrada foi bastante irregular: 70% dos viajantes ficavam literalmente espremidos em apenas um terço das linhas.
Para piorar, monitorando o GPS dos veículos durante três dias em março de 2014, os auditores descobriram que 59% das linhas não cumpriam a determinação do tamanho de frota – o número mínimo de ônibus combinado. No trânsito, isso significa poucas linhas de ônibus concentrando muitas pessoas, enquanto outras operam praticamente vazias.
A velocidade é lenta nos horários de pico, mas quase todas as linhas ultrapassam em algum momento o limite permitido de 80 km/h, especialmente à noite. Os intervalos mínimos entre os ônibus também não são obedecidos pelas empresas, e a prefeitura peca na fiscalização, segundo os analistas da Price.
Possíveis soluções
Após o diagnóstico, a auditoria avaliou quais mudanças deveriam ser feitas para melhorar o transporte por ônibus. Ao contrário de São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Curitiba – onde existem empresas externas que administram o transporte –, no Rio o serviço está sob responsabilidade direta da prefeitura.
A PwC sugere que seja criada uma empresa pública no futuro, mas considera que por ora é mais importante reorganizar a secretaria. As principais recomendações: fortalecer o planejamento, gestão e fiscalização da malha, para criar uma “nova Secretaria Municipal de Transportes”. Na prática, isso implicaria contratar mais funcionários qualificados, ainda que análises mais complexas ou trabalhos de campo pudessem ser terceirizados. Também envolveria um redesenho completo da pasta, centralizando funções relacionadas ao trânsito na Companhia de Engenharia de Tráfego do RJ (CET-Rio), fortalecendo mecanismos de transparência e dando mais importância à Ouvidoria da Secretaria.
Também são feitas sugestões para que a secretaria separe a função de bilhetagem e operação dos ônibus. Estudando o sistema de transporte de Bogotá, Londres e Santiago, a PwC mostra que, ao contrário do Rio de Janeiro, “a administração da receita e pagamento nunca é feita pelos operadores”. E a concessão é realizada por linha de ônibus, de modo que os operadores competem entre si em cada licitação. No Rio, a concorrência pública foi feita com base em quatro grandes regiões, representadas em consórcios de empresas. E há indícios de formação de cartel entre os competidores da licitação, segundo o Tribunal de Contas do Município.
Outro problema sério, segundo a Price, é que “não existe acompanhamento da destinação das tarifas”. A auditoria considera “crítico” a prefeitura definir regras e acompanhar de forma “diligente” a bilhetagem, o que não ocorre.
No modelo atual, além de controlarem a bilhetagem, as empresas de ônibus não veem seu caixa impactado pelo serviço que prestam. A má qualidade do serviço pode acarretar multas; porém, segundo os auditores, as penalidades contratuais “são excessivamente altas e as multas do código disciplinar são pouco efetivas”. A PwC sugere que, em vez de ser baseada na quantidade de passageiros pagantes, a remuneração aos consórcios leve em conta também a frota disponibilizada e os quilômetros percorridos, pois isso iria “incentivar os consórcios a focar na eficiência da gestão de ônibus reduzindo custos”.
Comparando dados de 17 cidades do Brasil e do mundo, os peritos afirmam que “o nível de utilização do sistema de transporte de ônibus do Rio de Janeiro é baixo quando comparado com outras grandes cidades”. A tarifa tem um alto custo relativo ao poder econômico (PIB) da cidade, acima de capitais bem maiores como Londres ou São Paulo.
A auditoria mostra ainda que seria possível reduzir a tarifa consideravelmente apenas com medidas de redução de custos e mais eficiência no planejamento, como, por exemplo, adequação de horários, frota, combates a fraude. Os peritos estimam uma redução entre R$ 0,30 a R$ 0,80 com mudanças do tipo. Já a estimativa do desconto que a revisão integral da malha poderia trazer à tarifa é de R$ 0,75 a R$ 1,25. Ou seja, com as medidas, a PwC estima que a tarifa – que era de R$ 3 à época – poderia diminuir de R$ 1,05 a R$ 2,05.
Por outro lado, medidas sugeridas para melhorar o sistema poderiam aumentar a tarifa de R$ 0,45 a R$ 0,60. Além de colocar ar-condicionado nos veículos, tais ações incluiriam melhorar as condições de trabalho dos motoristas, modernizar a frota e contratar seguro para todos os veículos.
A auditoria sugere também que a administração pública se encarregue da manutenção dos pontos de ônibus, já que não há referência explícita a essa função no edital da concessão. Segundo a PwC, a falta de estrutura dos pontos finais é uma das principais reclamações dos motoristas, ao lado do salário baixo, jornada de trabalho excessiva, dupla função cobrador/motorista e irregularidades no pagamento de benefícios previstos em lei.
Fraudes sob investigação
A PwC constatou também diversas irregularidades no banco de dados do bilhete eletrônico. Havia 24.648 beneficiários com mais de um cartão com passe livre ativo, de um total de mais de 2 milhões de cartões. Isso equivale a pelo menos um em cada cem registros de usuários com gratuidade. Havia também 453 cartões não autorizados, que tinham registros de 3.452 transações de gratuidade. Faltou até mesmo uma verificação simples de validação das informações, pois 17.010 cartões tinham CPF inválidos, segundo o estudo.
Foram identificadas também brechas no sistema do bilhete eletrônico. O diretor de tecnologia da organização Coding Rights, Lucas Teixeira, analisou o relatório sobre o assunto, a pedido da Pública. “As credenciais de acesso e a troca de dados com os portais de administração do RioCard e da Fetranspor poderiam ser interceptadas por alguém que estivesse na mesma rede do usuário. Agora, aparentemente, vulnerabilidades mais graves já foram corrigidas. Porém, na época, certamente o sistema ficou exposto a roubo, manipulação dos dados e acesso indevido à administração do sistema”, atesta o especialista em segurança da informação.
Uma das medidas recomendadas pela Price incorporadas pela prefeitura foi a adoção de câmeras de reconhecimento facial dos passageiros para combate à fraude no uso do bilhete eletrônico. Antes disso, com base em dados de outras cidades, fornecidos pelos fabricantes, a auditoria estimou que as transações de gratuidade possivelmente irregulares poderiam chegar até 30% do total. Acopladas acima do leitor do RioCard, as caixinhas azuis instaladas no ano passado possuem câmeras para checar a real identidade dos portadores dos cartões.
Em agosto, a Operação Lava Jato no Rio apreendeu os computadores da Riocard, empresa responsável pelo sistema. Para o Ministério Público Federal, “há indícios de que o sistema de bilhetagem eletrônica e as ordens de ressarcimento de valores às empresas que participavam da arrecadação para a ‘caixinha’ da propina da Fetranspor possam ter sido manipulados”.
Em agosto, foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Vereadores dedicada a investigar irregularidades na concessão dos ônibus. Mas o trabalho está “marcha lenta”, segundo o vereador Tarcísio Motta (Psol). Ele afirma que, apesar dos esforços de Eliseu Kessler (PSD) e de sua atuação, os demais integrantes da Comissão estão com o pé no freio. Os três outros membros são Alexandre Isquierdo (DEM), Rogério Rocal (PTB) e Dr. Jairinho (PMDB).
Quase um mês após seu início, a CPI dos Ônibus passou quase despercebida no noticiário carioca. Ninguém foi convocado para depor. Nenhum pedido de informação foi solicitado. E as perspectivas para seus próximos três meses de funcionamento, por enquanto, são parecidas. Algo que faz lembrar o malsucedido histórico de CPIs do transporte no estado do Rio, como a Pública relatou.
O próximo encontro da CPI dos Ônibus acontece amanhã, terça-feira (12/09), às 13h. Técnicos do Tribunal de Contas do Município irão à Câmara para apresentar suas conclusões sobre os principais problemas da concessão atual. As reuniões são abertas ao público.
Atualização: A reunião do dia 12/9 foi cancelada. A próxima reunião da CPI foi reagendada para a próxima quarta (13) às 13 horas