O médico Nicolas* é um dos tantos profissionais de saúde que formam a linha de frente da batalha contra a Covid-19 em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Em setembro, durante um atendimento, ele foi chamado de “petista”. O motivo: se negou a receitar ivermectina a um paciente que desejava usar o medicamento como forma de prevenção ao coronavírus. “Por mais que eu dissesse que não tinha evidência científica, que eram o isolamento e o uso de máscara e de álcool gel que realmente faziam a diferença, a pessoa não queria ouvir, queria o remédio de qualquer jeito”, narra o médico. “Aí ele me disse: ‘você é petista, você é contra o Bolsonaro’. Isso porque eu nem tenho partido político.”
Nicolas – que pediu para não ter seu nome revelado por temer represálias – atribui o episódio à politização em torno do tratamento medicamentoso da Covid-19. Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirme que até o momento a ciência não encontrou um fármaco comprovadamente capaz de prevenir ou eliminar a doença, o presidente Jair Bolsonaro e outros políticos pelo Brasil defendem que drogas como a hidroxicloroquina e, mais recentemente, a ivermectina têm o poder de derrotar o vírus.
O prefeito de Natal, Álvaro Costa Dias (PSDB-RN), é um deles. Médico e candidato à reeleição, ele tem dito publicamente que a ivermectina “é eficaz para prevenir o coronavírus”. Em 30 de junho, em posts nas redes sociais, anunciou que a prefeitura iniciaria uma “distribuição em massa” do medicamento com “todo o acompanhamento médico necessário”. As declarações motivaram a abertura de uma investigação pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte, que apura se houve propaganda eleitoral antecipada ou irregular nos atos do prefeito.
Numa entrevista à Rede Globo que repercutiu bastante na capital, Dias foi questionado sobre a ausência de confirmação da efetividade da ivermectina contra o coronavírus. Respondeu que “existem estudos in vitro, mas se funciona in vitro, deve funcionar em vivos também”. De fato, uma pesquisa de uma universidade australiana concluiu que a droga poderia eliminar o coronavírus em uma cultura de células in vitro – ou seja, em laboratório –, porém os próprios pesquisadores destacaram que eram necessárias “novas investigações” para testar os benefícios em humanos.
Em entrevista à Agência Pública, o secretário municipal de saúde, George Antunes, contou que no “início” da aplicação do tratamento medicamentoso da Covid-19, a secretaria trabalhou “com estudos observacionais”, mas que um estudo clínico mais consistente sobre a eficácia de ivermectina contra o coronavírus está sendo produzido pelo médico infectologista Fernando Suassuna, presidente do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus, criado pela prefeitura no fim de maio. Suassuna é grande entusiasta da ivermectina – chegou até a defendê-la em uma audiência pública virtual realizada pela Câmara dos Deputados em julho.
Antunes disse ainda que a pesquisa de Suassuna está “em fase bem adiantada”, mas não deu outras informações sobre seu andamento. O médico não respondeu aos pedidos de entrevista feitos pela Pública.
Utilizada em animais e seres humanos para combater verminoses e parasitas como piolhos, pulgas e carrapatos, a ivermectina tem sido empregada na rede de saúde de Natal desde o início de junho para tratar pacientes com o coronavírus. Embora seja considerada um medicamento seguro, pode causar efeitos colaterais que incluem diarreia e náusea, anorexia, tontura, vertigem e tremor, segundo a Anvisa.
O protocolo da Secretaria Municipal de Saúde de Natal prevê também o uso preventivo do remédio por profissionais de áreas como saúde e segurança pública, e por pessoas com fatores de risco para desenvolver estágio grave da Covid-19.
O médico Nicolas chegou a tomar a ivermectina, associada ao antibiótico azitromicina, no início do que seria um quadro leve da Covid-19, em maio. Mas ele diz que a combinação “não funcionou”: nos dias seguintes, seguiu desenvolvendo sintomas típicos da doença, como diarreia, perda de olfato e dores musculares.
Até 8 de outubro, de acordo com o Ministério da Saúde, Natal tinha 24,7 mil casos confirmados e 995 óbitos por Covid-19. É a 14º capital brasileira com maior índice de mortalidade, com 112 mortes por 100 mil habitantes.
Centros criados pela prefeitura oferecem ivermectina
Desde 7 de julho, a ivermectina passou a ser oferecida à população natalense em “centros de enfrentamento à Covid-19” criados pela prefeitura. O primeiro deles foi aberto na zona norte na cidade, em um ginásio municipal.
A quadra foi dividida em setores de triagem, coleta de material para a realização de exames RT-PCR, local de espera com cadeiras distantes umas das outras e mini consultórios onde, após a análise dos sintomas e eventual testagem, os médicos podem prescrever aos pacientes medicamentos que constam em uma lista definida pela Secretaria Municipal de Saúde. Além da ivermectina, estão disponíveis outros 11 remédios, entre eles a cloroquina, a azitromicina e o oseltamivir (indicado para tratamento da gripe).
Outros dois centros foram inaugurados em seguida, nas regiões oeste e leste da cidade, que tem 884 mil habitantes. De acordo com o secretário de saúde George Antunes, nesses locais, pacientes assintomáticos que tiveram contato com pessoas com Covid-19 (os chamados contactantes) podem receber ivermectina como profilaxia, ou seja, como prevenção à doença.
A corrida pela ivermectina
Antes da adoção pela rede municipal, a ivermectina já estava na boca do povo em Natal. Desde que seu uso passou a ser propagandeado, muita gente correu às farmácias para adquirir o medicamento.
Por causa da tamanha demanda, o remédio começou a faltar. Nos primeiros dias de junho, o jornal local A Tribuna do Norte constatou que, em uma das maiores farmácias de manipulação da cidade, o estoque que antes durava quatro meses estava sendo consumido em apenas dois dias. Isso teve impacto nos preços: na segunda semana daquele mês, um levantamento do jornal mostrou que o valor de uma caixa de ivermectina variava de R$20 a R$40 nas maiores farmácias da capital e região metropolitana.
A procura foi tanta que apareceu até caso de venda clandestina. Também no começo de junho, a polícia prendeu dois homens que estavam comercializando caixas de ivermectina por até R$100 perto de um shopping da cidade. Eles haviam feito o anúncio da mercadoria na redes sociais, o que motivou uma denúncia anônima. Segundo a polícia, as 50 caixas em posse da dupla haviam sido compradas em João Pessoa, capital da Paraíba, estado vizinho.
“Político experiente”
O cientista político Daniel Menezes, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), avalia que o Álvaro Dias, enquanto “político experiente que é” – antes de prefeito, foi deputado estadual e federal –, captou a busca de parte da população por um medicamento que trouxesse alguma esperança contra a Covid-19 e apostou na ivermectina. “A minha hipótese é a de que ele, de posse de pesquisas qualitativas, conseguiu mapear muito bem o sentimento da população”, aponta. ”Pensou ‘o pessoal quer remédio? Então remédio eu vou dar. O pessoal quer exame? Então vou dar exame.’”.
Em entrevista à Pública, o secretário de saúde George Antunes admitiu que “a população estava ávida por uma resposta no âmbito tanto da profilaxia como do tratamento [da Covid-19].”
“Antes mesmo de nós falarmos em ivermectina, quando o Brasil começou a falar, o povo já correu nas farmácias”, afirmou Antunes. Ainda assim, ele negou que o protocolo da prefeitura tenha sido “uma questão de demanda popular”. “O Comitê [Científico de Combate ao Coronavírus, criado pela prefeitura no fim de maio] já tinha elaborado essa relação de medicamentos e a justificativa, e eu, como secretário, ainda estava buscando evidências robustas para que tivesse convicção ao aprovar. Esse foi o tempo entre a automedicação da população e a implantação do nosso protocolo”, declarou. George Antunes afirma que o protocolo foi aprovado pelo Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Norte (Cremern) e que, para sua elaboração, foi feita a “revisão científica de todo o quadro da patologia, da sintomatologia e quais os medicamentos utilizados”.
Porém, o protocolo é criticado pela presidente do Conselho Municipal de Saúde de Natal e professora da UFRN, Maria Dalva Horácio da Costa. Ela diz que o órgão não foi chamado a opinar antes de ser lançada a política de tratamento precoce da Covid-19.
Costa conta que a prefeitura de Álvaro Dias iniciou o enfrentamento à pandemia focada em medidas recomendadas pela OMS, como garantir o isolamento social da população e construir um hospital de campanha (inaugurado no fim de maio) para atender os pacientes com Covid-19. Nesse sentido, estava em consonância com a governadora Fátima Bezerra, do PT.
“Depois da implementação do comitê científico – muito alinhado à concepção do governo norte-americano e do próprio presidente da República, na linha dos medicamentos, de que não era preciso radicalizar tanto –, a Secretaria Municipal de Saúde passou a ter uma postura também nessa linha da flexibilização”, afirma Costa. Foi a partir desse momento, de acordo com ela, que o discurso a favor do tratamento medicamentoso ganhou força no executivo municipal.
Menezes analisa que a mudança de rumos do prefeito durante a crise do coronavírus tem base em um cálculo político. “Ele foi sentindo o faro do bolsonarismo e realinhando a estratégia”, argumenta. “Pensou que, se conseguisse se antecipar contra o isolamento social e atendesse à forma de enfrentar a pandemia que o Bolsonaro estava preconizando, conseguiria capturar o eleitorado bolsonarista.”
Foi uma guinada na carreira do político, de linha tradicional, ligado às lideranças mais poderosas do estado, como a família Alves – Dias era vice de Carlos Eduardo Alves (PDT), de quem acabou herdando o cargo quando este deixou a prefeitura de Natal para concorrer ao governo do estado em 2018. A mais recente pesquisa Ibope sobre a capital, divulgada no último dia 6, mostra Dias com 33% das intenções de voto, muito a frente do segundo colocado, o deputado estadual Kelps (Solidariedade-RN), com 12%.
Infectologistas da UFRN questionam uso de ivermectina e cloroquina
O alarde em torno da ivermectina e outros medicamentos como tratamento e até prevenção à Covid-19 tem despertado a preocupação de importantes nomes da medicina no Rio Grande do Norte. Em julho, o Departamento de Infectologia da UFRN divulgou uma carta pública após análise da literatura médica sobre o assunto. Uma das conclusões a que chegaram os professores e pesquisadores é de que não havia dados que justificassem “o uso de qualquer fármaco para evitar a infecção pelo SARS-CoV-2 ou, ainda, que possa impactar na gravidade da doença antes que ela se estabeleça, como por exemplo a ivermectina”.
Referência nacional nas pesquisas sobre a epidemia de zika vírus que atingiu o Nordeste entre 2015 e 2016, o médico infectologista Kleber Luz, chefe do departamento, considera que deveria ter havido maior discussão técnica em relação ao uso de ivermectina e cloroquina contra a Covid-19. “As prefeituras, de um modo geral, poderiam ter ouvido mais as pessoas que se posicionavam contra para poder fazer um juízo de valor”, argumenta.
Luz garante que a prefeitura de Natal em nenhum momento consultou seu departamento sobre o assunto.
“Essa é uma medida sem sustentação científica”, destacou, em entrevista à Pública. “Falo isso como professor. Se a pessoa está usando com outros objetivos, não posso afirmar porque não sei deles. Se o objetivo for uma medida médica baseada na ciência, a resposta é que não tem.”